SIRESP. Presidente do Tribunal de Contas chamado ao parlamento. Alegadas informações falsas do MAI em causa

A quatro semanas de terminar o contrato assinado há 15 anos entre o Estado e a SIRESP, S.A., empresa que gere a rede de comunicações de emergência, restam interrogações sobre pagamentos de milhões, manobras contabilísticas, "toupeiras" e, principalmente, porque o negócio nunca muda de dono. O PSD quer ouvir o juiz conselheiro José Tavares
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O presidente do Tribunal de Contas (TdC), juiz conselheiro José Tavares, foi chamado ao parlamento pelo PSD para explicar que medidas tomou sobre as informações alegadamente falsas prestadas a esta entidade pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna (SG-MAI), tutelada pelo ministro Eduardo Cabrita, para justificar um pagamento de 15,5 milhões de euros às empresas privadas que prestam serviços ao SIRESP, a rede de comunicações de emergência, com destaque para a Altice. Em causa estava o reforço da capacidade da rede, na sequência das falhas graves de funcionamento nos incêndios de 2017.

Apesar de o requerimento da bancada social-democrata, que deu entrada na semana passada e ainda terá de ser votado ma próxima quarta-feira pelos outros partidos, não afirmar expressamente que a SG-MAI faltou à verdade, é isso que está implícito na descrição de factos feita no pedido "urgente de audição".

O TdC chumbou o pedido de visto para este pagamento , feito em 2018, porque no seu entender não estava fundamentado e continha "vícios procedimentais invalidantes do contrato celebrado" - logo à partida pela "violação da lei do Tribunal de Contas que impede que atos e contratos sujeitos à fiscalização prévia com um valor superior a 950 mil euros produzam efeitos financeiros antes do visto ou declaração de conformidade", é lembrado no requerimento.

No entanto, no recurso dirigido ao TdC (e que foi também chumbado), a SG-MAI surpreendentemente afirma que foram os privados a decidir o investimento.

"O parceiro privado, face à necessidade reconhecida quanto a dotar o sistema SIRESP de soluções de redundância, iniciou a implementação das soluções por iniciativa unilateral. Os atos praticados por iniciativa e risco do parceiro privado, em momento anterior à pronúncia do Tribunal de Contas em sede de fiscalização prévia, não poderão dar lugar a qualquer tipo de compensação financeira por parte do Estado sem a obtenção do referido visto", alegou este organismo tutelado por Eduardo Cabrita.

Esta declaração é claramente contraditória quer com afirmações públicas do CEO da Altice Alexandre Fonseca, quer documentos oficiais da própria SIRESP, S.A..

"Na sequência dos incêndios de 2017 o Estado solicitou à SIRESP, S.A. diversos estudos e propostas para implementação de soluções que melhorassem a resiliência da Rede SIRESP. Os diversos estudos apresentados culminaram com os documentos "Redundância de transmissão da Rede SIRESP" e "Reforço da autonomia de energia elétrica da Rede SIRESP", ambos de 26 de março de 2018, que conduziram ao Aditamento ao Contrato SIRESP, o qual foi assinado em 30 de abril de 2018", é referido no Relatório e Contas de 2019 da empresa.

Por seu lado, disse Alexandre Fonseca na altura em que veio a público o segundo chumbo do TdC que a Altice "sempre considerou que a rede SIRESP se reveste de grande relevância para o país" e "vinha defendendo a necessidade de investimentos adicionais em soluções de redundância, que planeou, desenhou e implementou, nomeadamente através da Rede de Transmissão via Satélite e de Redundância de Energias após solicitação da SIRESP S.A. em consequência de pedido direto do Ministério da Administração Interna".

Quem disse a verdade, quem mentiu? O DN pediu esclarecimentos ao Gabinete do ministro da Administração Interna e à Altice, mas não obteve ainda resposta.

Na verdade, o TdC concluiu no seu acórdão "subsistirem sérias dúvidas se as medidas de redundância, sejam elas quais forem, necessárias ao pleno e permanente funcionamento, sem interrupções, do sistema de comunicações SIRESP, não constituíam uma obrigação da Operadora SIRESP, por força do Contrato inicial, celebrado em 4.07.2006, no montante de cerca de 463 milhões de euros ".

Perante a recusa do TdC, e apesar de ter alegado que tal tinha sido iniciativa dos privados, o governo teve de procurar outra forma de os ressarcir, pelo menos em parte, fintando assim os inevitáveis chumbos. Depois de ter adquirido, em 2018, 33% da SIRESP, S.A. por 2,7 milhões de euros, em 2019, o Estado passou a deter totalmente a empresa, através da compra de mais 67% do capital, com encargos adicionais no valor de 7,9 milhões de euros, suportados pela Direção-Geral do Tesouro e Finanças. "Estas aquisições não estavam sequer orçamentadas", assinala o PSD.

Na altura, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, alertou para as "acrescidas responsabilidades do Governo, a partir de agora, na direção e orientação de uma entidade que terá capitais inteiramente públicos".

Com esta aquisição, próxima do fim do contrato - que termina a 30 de junho próximo - e conforme ficou definido do decreto-lei que a oficializou (81-A de 2019) - o Governo devia ter preparado a transição para um novo modelo de comunicações de emergência para suceder ao velho, dispendioso e suspeito esquema de negócio herdado do passado e que chegou a ser investigado e arquivado pelo Ministério Público.

Mas não o fez e, apesar da insistência das perguntas do DN e, no Parlamento, de deputados do PSD e CDS (cujos governos iniciaram o SIRESP), Eduardo Cabrita nunca esclareceu porquê.

Só em março último o ministro assinou um despacho a ordenar a execução das conclusões de um grupo de trabalho por ele criado, tardiamente em outubro de 2020 (a oito meses do fim do contrato), para propor alternativas a um negócio que já custou mais de 600 milhões de euros ao Estado (aos contribuintes) e que tem tido sempre o mesmo principal protagonista na prestação de serviços - no início a Portugal Telecom, agora designada Altice.

Se há mesmo alternativas não se sabe, porque apesar de saber que o contrato estava a chegar ao fim, o Governo não submeteu o SIRESP a concurso público.

Alternativas essas que o próprio TdC, no Acórdão em que chumbou pagamento referido, tinha questionado: "a inexistência do relatório final e de evidências documentais sobre o processo negocial impede verificar se o resultado final da negociação representa uma efetiva partilha de riscos e de benefícios pretendido pelo Novo Regime Jurídico das Parcerias Público Privadas, ou se representa tão só uma adesão do Estado às propostas apresentadas pelo parceiro privado, nomeadamente quanto ao acréscimo de custos, no montante global de €15.580.000,00".

E onde fica o interesse público defendido? Um estudo interno do MAI concluiu que a rede de comunicações de emergência podia custar ao erário público no máximo 14 milhões de euros, confirmou ao DN fonte daquele ministério que tem acompanhado este processo.

No entanto essa não foi a solução preparada para o pós 30 de junho e o atraso na decisão de Eduardo Cabrita acabou por impor um prolongamento do contrato por mais 18 meses - em condições que ainda não são conhecidas - com as empresas, as mesmas, prestadoras de serviços, com a Altice, à cabeça.

Apesar de no MAI haver quem entendesse que seis meses chegaria para pôr no terreno a nova solução, Alexandre Fonseca veio logo refutar e contrapropor mais ano e meio - mais uma vez "tão só uma adesão do Estado às propostas apresentadas pelo parceiro privado", no caso ano e meio em vez de meio ano?

Idêntico desfecho teve um estudo encomendado pelo próprio governo a peritos nacionais, cujos resultados foram divulgados em 2019. As recomendações que implicavam uma menor dependência dos atuais parceiros privados da SIRESP, S.A. e uma maior resiliência da Rede, foram arrasadas pelo CEO da Altice e não chegaram a ser executadas.

Na sequência dos incêndios de 2017, com falhas nas comunicações registadas (segundo o Tribunal de contas em junho de 2017, o sistema esteve inoperacional durante 72 horas e em outubro do mesmo ano durante 386 horas, em ambos os casos em plena ocorrência de graves incêndios, afetando a operacionalidade de serviços críticos presentes nos teatros de operações), não houve qualquer penalização contratual, porque essas falhas estavam dentro do limite de indisponibilidade na rede previstas no contrato, como lembrou a SIRESP, S.A, corroborada pelo próprio governo.

Isto apesar de o próprio primeiro-ministro, António Costa, ter acusado a, na altura ainda, PT pelo colapso da rede de comunicações de emergências em plena situação de emergência.

É um facto que o DNA da Altice é marcante quer na SIRESP, S.A., quer na própria Secretaria-Geral do MAI. Para presidir à SIRESP, S.A. já na esfera pública, em substituição do tenente-general Manuel Couto que pediu a demissão em março, Eduardo Cabrita escolheu Sandra Perdigão, ex-diretora de Operações da Altice, que era vogal do Conselho de Administração.

Na SG-MAI estão como "consultores SIRESP" dois quadros com origem na Altice, conforme se pode ler nos currículos publicado nos despachos de nomeação: Luís Mendes, chefe de divisão, e Rui Chaves. O seu aconselhamento, que terá começado logo em 2009, segundo testemunharam ao DN fontes daquele departamento, foi formalizada só em 2016 com a nomeação para comissões de serviço de três anos (até 2019).

Contactados pelo DN através da lista oficial de telefones do MAI , Rui Chaves não atendeu, mas Luís Mendes confirmou que se encontrava ao serviço da SG-MAI, "em situação de pré-reforma" da Altice e que o seu colega estava "reformado".

Questionado sobre porque não tinha sido publicado no Diário da República um novo despacho para a renovação da comissão de serviço, afirmou pensar que é "automaticamente renovável por mais três anos" - ou seja, até 2022. De acordo com a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, não está prevista renovação automática neste género de contratos a termo certo.

O contrato feito em 2006, com uma alteração em 2015, tem 47 anexos (dos quais 10 secretos) e boa parte de cada um destes anexos, com mais de uma dezena de adendas.

De acordo com um extenso dossier a que o DN teve acesso, pareceres jurídicos, recursos, avaliações e relatórios foram recorrentes nos 15 anos que dura o contrato entre o Estado e a SIRESP, S.A., e contam com a assinatura de algumas das maiores sociedades de advogados do país, como a de Vieira de Almeida , a de Sérvulo Correia e Associados, a Link Latters, esta no tempo em que era sócio o atual ministro Adjunto e da Economia Siza Vieira, ou de Eduardo Paz Ferreira, autor do recurso chumbado pelo TdC.

Na semana passada foi aprovada uma transferência de 11 milhões de euros do Estado para a SIRESP, S.A. para fazer face aos encargos, por seis meses, com o ainda não concretizado prolongamento do contrato e preparação do tal novo modelo - como vai ser pago os restantes 12 meses não é referido na Resolução de Conselho de Ministros.

Na passada quinta-feira, em entrevista à RTP 3, o próprio Alexandre Fonseca reclamava da falta de informação sobre o enquadramento jurídico desta renovação e afiançava que o MAI lhe iria enviar um "caderno de encargos" nesta semana. Questionados o porta-voz da empresa e do MAI sobre esta matéria, não responderam.

[Notícia corrigida às 11:47 com correção do nome do advogado Eduardo Paz Ferreira.]

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