"Queremos ouvir a palavra mágica: Vacina. Mas as pessoas pensam em religião, precisam de conforto"
À Universidade de Yale chegou como bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), depois passou a professora. Funções que desempenhou mais tarde na Brown University, na Columbia University e na UMass-Lowell. Foi ainda investigadora da FCT na Universidade de Évora, visitante académica da Faculdade de História da Universidade de Oxford, e hoje é investigadora principal no Centro de História da Universidade de Lisboa através do programa de Emprego Científico da FCT (CEEC). Aos 44 anos, Ana Travassos Valdez diz ter uma cruzada pela frente: perceber como é que as expectativas de fim de mundo, de cariz apocalíptico, continuam a ser vividas no século XXI, e a justificar atos de violência, como ataques terroristas.
Está a liderar um projeto mundial, Pandemics and Apocalyptics. O que é concretamente?
Este projeto, sediado no Centro de História da Universidade de Lisboa, é o resultado de um ataque de frustração. Ou seja, o que é que um cientista social que trabalha com religião e com teorias de fim de mundo, a dita "apocalíptica", e que está neste momento a trabalhar sobre expectativas apocalípticas e violência no século XXI (terrorismo), poderia fazer num momento de pandemia como aquele que estamos a viver? Para mim foi muito claro: teria de informar as pessoas para pararmos as Fake News; depois, desmistificar e desconstruir preconceitos e ideias, especialmente no que diz respeito à religião.
Mas qual é o objetivo do projeto e quem está a participar nele?
O objetivo concreto é fornecer a qualquer pessoa, em português ou inglês - porque o projeto é bilingue - pequenos textos escritos por historiadores, teólogos, especialistas em literatura, em saúde pública e em demografia com informação precisa, direta e sucinta, sobre as várias "pragas" que ocorreram ao longo dos séculos, explicando em paralelo qual foi o papel da religião em cada evento e como é que esta foi utilizada: se foi bode expiatório ou não. É um projeto interdisciplinar e colaborativo à escala global, que começou no início de abril e que vai decorrer pelo menos durante um ano.
E têm financiamentos ou não?
Financiamento não há. O que está a tornar este projeto possível é só a boa vontade e a colegialidade de todos os que pelo mundo fora quiserem participar nele e o apoio institucional da FLUL e do Centro de História da Universidade de Lisboa. Mas até ao momento já contamos com a colaboração de parceiros dos cinco continentes, da Nova Zelândia ao Brasil, passando por Amesterdão, Cambridge, Haifa, St. Andrews, Oslo, Helsínquia, CNRS, Yale, James Madison, Notre Dame, Brasília, UFSP, Stellenbosh, e de muitos outros, sem esquecer os portugueses.
Referiu o mundo das Fake News, onde, por vezes, é difícil destrinçar o falso do verdadeiro. Foi isto que a levou a avançar já com um projeto sobre esta pandemia?
A covid-19 e o nosso sentimento de impotência apenas nos serviram de mote, especialmente quando notámos que o argumento religioso começava a ser utilizado. Falo no plural, porque o meu parceiro principal neste projeto é Bert J. L. Peerbolte da Vreije Universiteit em Amesterdão, com quem eu dirijo um grupo de investigação na Society of Biblical Literature - Apocalypse Now. Mas pensamos ser necessário que as pessoas tenham a noção que o mundo foi desde sempre constante e sistematicamente sujeito a doenças, incuráveis à época, com forte impacto sócio-económico, e que, não raro se responsabilizou a religião em sentido lato. Podemos falar de covid-19, da Peste Negra ou da Gripe Espanhola. Mas não podemos esquecer a Lepra, as pragas bíblicas, as pestes Antonina e Juliana, as que assolaram Paris e Londres, as doenças que levámos para o Novo Mundo, a tuberculose, a H1N1, o Ébola, etc. A todas esteve sempre ligada uma visão de cariz religioso.
E como foi vista a religião nestas pandemias?
Na maioria dos casos, a religião foi o bode expiatório, mas também foi vista como salvação em alguns momentos: a marginalização dos leprosos é um exemplo bíblico de aplicação dos princípios básicos de saúde pública. É provavelmente o exemplo mais antigo de confinamento. Daí a necessidade de oferecer informação precisa que qualquer pessoa possa compreender. É aqui que as Humanidades e a sua capacidade de gerar colaborações internacionais são fundamentais. Gera-se conhecimento a partir da experiência do passado e, ao mesmo tempo, combate-se a desinformação e descodificam-se ideias e mitos que deturpam a realidade, especialmente, quando falamos de religião.
Quando é que se pode ter acesso à informação recolhida por este projeto?
Espero poder apresentar o website do meu projeto principal, onde o projeto sobre as pandemias vai ficar alojado, nos próximos dois meses e já com um conjunto razoável de entradas. Estará no site www.apocalyptic.letras.ulisboa.pt , que neste momento está em construção. É um projeto de fundo, cujos resultados podem ser inesperados e fascinantes. Aliás, já são, porque já estamos em parceria com outros dois projetos, um a sair de Israel sobre o conteúdo dos textos rabínicos sobre doenças, e outro de Amesterdão, chamado Resilience in Crisis. Creio que outros projetos se irão seguir e que todos juntos vamos poder oferecer uma visão mais completa deste tema.
E o que já se sabe dos projetos de investigação de Israel e da Holanda?
Estes dois projetos vêm também colocar a ênfase na relação entre religião e doença. O projeto israelita vai oferecer às pessoas o contacto direto com as fontes primárias (é um projeto de Humanidades Digitais), e vai permitir estudar os ditames dos rabinos sobre como lidar com a doença. Qualquer um de nós vai poder ler o que foi escrito há séculos sobre estes temas. O holandês, explora a questão da resiliência humana em tempos de crise, partindo do momento de pandemia que vivemos e focando-se em como é que a religião pode ser promotora de resiliência em momentos tão difíceis como aquele que atravessamos.
As consequências sociais da covid-19 já a permitem enquadrar num cenário religioso e de expectativas apocalípticas?
Diria que todos nós temos medo do que vai acontecer hoje, amanhã, a nós próprios, aos nossos e aos demais. Sonhamos com o acordar de um pesadelo e de nos reencontrarmos num mundo bom e próspero, que reconheçamos. De certa forma, a apocalíptica é isso: uma mensagem de esperança anunciada através da destruição do mundo comezinho em que vivemos. Neste momento, estamos todos ansiosos pelo anúncio da palavra mágica: "Vacina." Mas as pessoas vão pensar em religião, porque precisam de conforto e de se convencerem que depois da tempestade vem a bonança. Em Portugal, a visão de um santuário de Fátima vazio de pessoas, mas cheio de significado para muitos, marcou este cenário desolador da pandemia. A reabertura controlada de Meca foi outro momento marcante em tempo de Ramadão, tal como a reabertura do Muro das Lamentações em Jerusalém.
Considera que as decisões tomadas pelas três religiões abraâmicas, cristianismo, judaísmo e islamismo, no sentido de respeitarem as medidas de saúde pública podem reforçar a tolerância religiosa?
Estava em Roma a trabalhar quando deram a notícia de que a pandemia tinha fechado a cidade de Milão. E pensei que poderia acontecer o pior em termos religiosos. Isto é, que as pessoas corressem para as igrejas, sinagogas, mesquitas e templos, tal como no passado. Estou a pensar na Peste Negra. Mas pela primeira vez em 2000 anos, a Igreja conseguiu acertar o passo e tornar-se virtual: entrou em casa de todos os que precisaram sem que os fiéis se aglomerassem nos seus espaços. É um momento histórico. As outras religiões, mesmo com o Ramadão e a Pesach (Páscoa Judaica) a acontecerem, foram na mesma direção. Houve em todos os lados discussões e quebras de regras, nomeadamente por grupos mais ortodoxos. Mas na maioria prevaleceu o sentido de responsabilidade social. Todos os credos adotaram as mesmas medidas, apesar da existência de apelos de líderes no continente americano para que os fiéis se dirigissem aos templos Evangélicos cujos pastores prometiam a cura. Se as questões de saúde pública derem o mote para que o diálogo inter-religioso e a tolerância sejam promovidos a sério, prefiro-o a ter que discutir esses mesmos temas no âmbito da justificação de ataques de terrorismo.
Mas no mundo mais afetado pela doença parece que o confinamento não levou a uma escalada de violência...
Ousaria dizer que nós é que não vemos a violência. É verdade que não vimos muitos tumultos nas ruas nem destruição de propriedade privada durante estes meses, mas a situação nos EUA e no Brasil é significativa. Quando um Presidente diz aos habitantes de um país que vão para as ruas lutar contra as políticas de confinamento impostas pelos Governadores dos Estados, a situação é, no mínimo, volátil. Ao mesmo tempo, há um sem número de coisas que não sabemos por causa das diferenças entre regimes políticos. A par disto, temos toda a violência escondida, aquela de caráter doméstico e a provocada pela deterioração da situação económica de algumas famílias. Fiquei chocada quando li no início do Estado de Emergência que se tinha criado uma expressão para se pedir ajuda nas farmácias. Não me vou esquecer das "Máscaras-19".
Por tudo o que referiu esta ou outras pandemias não podem ser estudadas só pela ciência pura e dura, terão de passar também pelo olhar das ciências sociais e humanas...
O mundo só pode ser entendido de um ponto de vista global. Os meus colegas de ciências duras podem encontrar uma vacina, mas compreender como é que o mundo perceciona a ação de um vírus desta natureza que se espalhou em tão pouco tempo e como lida com isso do ponto de vista histórico, isso é trabalho de todos e as Humanidades têm aqui um papel fundamental. Como disse antes, cabe-nos a nós informar e ensinar sobre o passado para que se possam tirar lições para o futuro. Dos 14 anos que passei no estrangeiro há uma coisa que aprendi: não se faz nada se não se trabalhar de forma interdisciplinar e em colaboração. O mundo hoje é muito pequeno, está à distância de uma chamada de Zoom. Mesmo com fusos horários à mistura! Dou-lhe um exemplo: a minha ideia louca para este projeto começou numa quarta-feira à noite, e no domingo já estava a funcionar e com uma quantidade de especialistas de renome a bordo, após ter enviado um simples e-mail a colegas e amigos.
Estudou com John J. Collins, em Yale, o que aprendeu com ele e que mensagem tenta hoje passar aos seus alunos?
Estudar com o John foi um privilégio e, continuar a trabalhar com ele, um duplo privilégio. O John Collins continua a ser o grande nome da literatura apocalíptica bíblica. Fui por seis meses em 2005 para começar o doutoramento e passei 11 anos em Yale. Poder-se-ia dizer que estou obcecada pela apocalíptica e não é por causa dos filmes de fim do mundo que nos entram todos os dias pela casa adentro. É porque a apocalíptica é uma mensagem de esperança e que não deve e não pode ser manipulada para justificar violência. Deixe-me explicar de uma forma muito simples: todos queremos que o amanhã seja melhor, não é verdade? Pois essa é a mensagem da apocalíptica. Tento sempre ensinar isso aos meus alunos. Que a destruição que lêem, por exemplo, num Livro do Apocalipse, é só um meio para atingir o mundo perfeito, mas é uma violência onde o Homem não intervém, é simplesmente um ator passivo. Isso é fundamental. Um apocalipse é todo um conjunto de coisas, ou melhor, de etapas, que ao serem percorridas levarão a Humanidade até esse mundo perfeito tão cobiçado. Isso pode ser espelhado na nossa vida pessoal. Neste momento, podemos pensar que a pandemia é uma provação, mas que melhores dias virão para desfrutarmos da companhia dos amigos e das praias... E pense lá, se não vamos desfrutar muito mais depois de todas estas provações? Se tudo o que provarmos não vai ter um sabor mais intenso, as gargalhadas e as lágrimas não vão ser mais sentidas?
Então, há esperança para além da pandemia...
Há sempre esperança! Somos simples seres humanos. =