"Pode haver mais casos de reinfeção não detetados. Só testes serológicos podem dar essa informação"

O primeiro caso de reinfeção por covid-19 foi detetado agora em Portugal. No mundo, e comprovados cientificamente, apenas se tem conhecimento de cinco em diferentes países. Mas Manuel Santos Rosa, professor catedrático e especialista em imunologia, afirmou ao DN que podem existir mais casos não detetados. Como diz: "O mundo da reinfeção é mais uma incerteza em relação ao SARS CoV2. E só os testes serológicos nos podem dar algumas respostas".
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Uma mulher de 48 anos foi identificada com uma reinfeção pelo novo coronavírus. Até agora, é a única situação que se conhece no nosso país, tendo sido detetada num dos laboratórios Germano de Sousa que já está "a estudar o genoma do vírus detetado nesta senhora para se tentar perceber se se trata de uma reinfeção provocada por uma mutação ou se se trata de uma reinfeção devido a uma depressão do sistema imunitário", confirmou ao DN o próprio diretor da cadeia de laboratórios, Germano de Sousa.

A notícia foi avançada nesta quarta-feira (18 de novembro) pelo jornal Público que referia tratar-se do primeiro caso de reinfeção no nosso país. Este caso em Portugal junta-se assim ao de outros cinco países que reportaram situações aceites pela comunidade científica, nomeadamente ao primeiro caso no mundo, identificado a 24 de agosto, num paciente de Hong-Kong - cuja reinfeção foi identificada num teste aleatório de rastreio realizado no aeroporto e quando se preparava para viajar - ao de um doente dos Estados Unidos da América e a outros da Bélgica, da Holanda e do Equador.

O médico Germano de Sousa explicou ao DN que "este é o primeiro caso no nosso país, não tenho memória de mais alguém ter registado uma situação destas", salvaguardando que "tal também foi possível por ter sido no nosso laboratório que a senhora fez o primeiro teste, em julho, e o segundo, em outubro. Temos um sistema informatizado que nos permite detetar estas situações".

O patologista, ex-bastonário da Ordem dos Médicos, referiu ainda que a doente é da área da Grande Lisboa e que terá tido contacto pela primeira vez com o vírus logo na primeira fase da pandemia. Na altura, "dirigiu-se a um serviço de urgência com alguns sintomas e não ficou internada, por se tratar de sintomas ligeiros. A doente estava com febre, tosse e fadiga. Mais tarde fez o teste num dos nossos laboratórios e o resultado foi positivo. Em outubro, voltou a ter sintomas, como ausência de olfato e paladar, voltou a fazer o teste e deu positivo de novo, mantendo-se, salvo erro, positiva cerca de 12 dias".

A situação está agora a ser estudada, embora reconheça Germano de Sousa que "todo o material de que dispõem a nível de sequenciação do genoma do vírus possa não ser suficiente para se perceber exatamente se estamos perante uma situação de mutação do vírus ou de uma situação que deixou o sistema imunitário desta senhora muito frágil e permitiu a reinfeção". No entanto, e conforme disse ao DN, "não há conhecimento de que a senhora em causa sofresse de outras patologias".

Ao DN, o professor catedrático em imunologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, Manuel Santos Rosa, diz mesmo, e apesar de até agora as situações de reinfeção não serem frequentes a nível mundial, que poderão existir outros casos não detetados. "Pode haver mais casos de reinfeção que não foram detetados e só os testes serológicos é que nos vão dar essa informação, porque só quando fazemos um teste serológico e detetamos anticorpos contra o vírus é que temos a certeza de que as pessoas já contactaram com o vírus. E muitas destas pessoas certamente que não tiveram sintomatologia, mas ficamos a saber que contactaram com o vírus", explica.

O professor da Faculdade de Medicina de Coimbra explica que "o vírus pode estar nas células destas pessoas em pequenas quantidades, não lhes está a dar problema algum, mas está lá, não está totalmente inativado. Só os testes serológicos é que nos vão dar estas certezas", sublinhando que é exatamente por este facto "é que é muito importante que os testes serológicos sejam feitos à população. Assim poderemos perceber a percentagem de pessoas que já contactou com o vírus".

Para o especialista em imunologia a área das reinfeções em relação ao SARS CoV2 é uma das áreas que não tem sido muito estudada até aqui, mas é normal, pois este vírus, que inunda o mundo desde o final do ano passado, desde que foi identificado pela primeira vez na província de Whuan, na China, ainda tem agarrado a si uma série de incertezas. "É um caminho a desbravar, pois pode não parecer, mas é uma situação fundamental que o façamos", argumenta.

DestaquedestaqueQuando se fala de reinfeções poderemos estar a falar de uma mutação do vírus ou de uma situação que ocorreu pela depressão do sistema imunitário dessa pessoa.

Manuel Santos Rosa considera que há vários itens a ponderar quando se fala de reinfeções, nomeadamente se esta acontece devido a uma pequena variante do vírus ou se acontece devido a uma depressão do sistema imunitária do indivíduo.

Questões que, na sua opinião, devem ser estudadas aprofundadamente, pois, "quando falamos de reinfeções não sabemos se estamos a falar exatamente do mesmo vírus, com uma estrutura genética que é exatamente a mesma, ou se estamos a falar de uma outra que tenha já alguma modificação. E isto é muito importante, porque, quando houver casuística suficiente que nos permita perceber esta situação também saberemos até que ponto a vacinação terá uma cobertura mais alargada ou menos alargada".

Ou seja, continua, "imaginemos que o vírus faz uma pequena mutação, se for pequena, à partida, a cobertura vacinal estará assegurada com eficácia para essa mutação, mas se for uma mutação mais significativa, a vacina pode já não ser eficaz".

Até agora, a forma que temos para detetar a infeção é através do teste habitual, PCR, que é o mais fidedigno, mas há uma outra questão que se coloca e que tem muita probabilidade de também estar na origem das situações de reinfeção. "A probabilidade de a imunidade do indivíduo ser transitória é uma questão que também se coloca, porque no caso do SARS CoV2 ainda não podemos falar de uma vacinação ou imunização de longo tempo - esta é aliás uma das questões que tem sido muito debatida -, podemos estar a falar de uma imunização de curto tempo".

Uma imunização de curto tempo que pode advir do próprio vírus e pelas suas pequenas variações, mas que também pode acontecer pela "própria situação das pessoas. Por exemplo, pode ser uma pessoa que teve de fazer outras terapêuticas por corticoides, que deprimem o sistema imunitário, ou até por outras situações, que, por vezes, nos esquecemos, e que fazem parte do nosso quotidiano, que é o caso do stress, que deprime imenso o sistema imunitário".

À questão sobre se o stress poderia estar então no aparecimento de mais reinfeções, o professor de Coimbra diz ainda não haver literatura científica que o explique, mas, acrescenta: "Há situações de reinfeção por outros vírus quando o stress baixa o nosso sistema imunitário. Hoje sabemos perfeitamente que o stress, quer agudo quer crónico, leva a uma incidência maior de infeções graves e até de tumores malignos. Veja este caso: quase todos nós estamos infetados com o vírus banal do herpes, no entanto o nosso sistema imunitário vai mantendo uma resposta que não vai deixando o vírus fazer qualquer manifestação patogénica, mas se deprimirmos ele ganha a oportunidade de proliferar e de fazer essa manifestação. Isto acontece com o herpes, como pode acontecer com o SARS CoV2".

Sendo assim, e embora ainda seja um caminho a desbravar, já se pode dizer que "as principais hipóteses de termos uma reinfeção estão relacionadas com a modificação genética do vírus ou com uma depressão do sistema imunitário".

DestaquedestaqueDinâmica de testes de rastreio mis centralizada permitiria detetar mais facilmente situações de reinfeção.

Por isto, o médico também defende que outros casos possam ainda a vir a aparecer quer em Portugal quer em outros países. "Estes casos não têm sido frequentes, mas em tantos milhares de pessoas infetadas podem não ter sido detetados". Sublinhando: "É claro que isto também só se começa a perceber quando a dinâmica de testar começa a ficar bastante centralizada, porque senão só sabemos se é uma reinfeção se o indivíduo o menciona e essa garantia é dada em laboratório".

No caso da doente agora detetada, há essa segurança já que fez o primeiro e o segundo teste no mesmo laboratório, mas esta situação transporta-nos para uma outra questão que o médico considera de extrema importância e que tem a ver com os doentes assintomáticos. "Imagine que uma pessoa esteve em contacto com o vírus mas que foi assintomática, não foi testada e ninguém deu conta disso. É reinfetada é testada e percebe-se que já tinha contactado com o vírus. Esta questão também é muito importante para percebermos qual é o nível de erradicação do vírus".

DestaquedestaqueEstudar os assintomáticos é importante para se perceber se houve mais situações de reinfeção.

Em relação a outros vírus, "já se sabe que abaixo de uma determinada carga viral a pessoa já não consegue transmitir esse vírus, mas para o SARS CoV2 ainda não sabemos. O indivíduo pode estar negativo em relação ao teste habitual que se faz, mas não quer dizer que não tenha o vírus acantonado em outros pontos do seu organismo que até não são o ponto de colheita", alerta.

"Vamos imaginar que o vírus está acantonado no tubo digestivo ou no nosso intestino, que tem células onde pode estar, e que não é através de uma zaragatoa que o vamos conseguir detetar". Por outras palavras, sublinha, "o indivíduo tem o vírus, mas dá negativo. A dúvida é se está infetante ou contagiante ou não. Partimos do princípio que não, mas não se sabe".

Após, oito meses de pandemia em Portugal, Manuel Santos Rosa não tem dúvidas de que "o trajeto do vírus e a sua dispersão só acontecem se ele tiver hospedeiros para evoluir, neste momento, acabamos por ser hospedeiros sintomáticos ou não sintomáticos. Por isso, a questão da reinfeção e dos assintomáticos é muito importante para se perceber que, afinal, esta pandemia ainda vai demorar mais algum tempo e que temos de ser todos muito prudentes. Não podemos, de repente, pensar que isto acabou. Não acabou. Irá acabando lentamente, porque há muitas incertezas que temos de ir trabalhando cientificamente. E a ciência não dá resultados de um dia para o outro".

A questão de reinfeção pelo SARS CoV2 tem sido abordada em alguns artigos nas revistas científicas. A revista Lancet lançou um estudo sobre esta questão, deixando claro que as dúvidas e as incertezas sobre este vírus e sobre a imunidade exposta ainda são muitas.

Começando pelo facto de mundialmente haver apenas cinco casos reportados como de reinfeção, em Hong.-Kong, EUA, Bélgica e Holanda e Equador, apesar de já vários investigadores de outros países, como da Coreia do Sul e de Israel, terem descrito situações idênticas. Ao todo, poderão existir menos de 20 possíveis reinfeções, o que quando comparado com os mais de 50 milhões milhões de infetados no mundo é uma ínfima parte.

No entanto, um dos autores deste estudo, Mark Pandori, que acompanhou o doente norte-americano, admite: "Não significa que não haja mais", ressalvando a questão dos assintomáticos. "A confirmação de que se trata de uma reinfeção também implica uma análise genética das amostras retiradas de cada uma das infeções, para verificar se estão, ou não, em causa duas estripes diferentes do vírus".

Quanto a consequências para os doentes, o estudo também deixa claro que "as consequências de uma reinfeção variam de caso para caso". Em relação às situações conhecidas, os casos dos doentes dos EUA e do Equador foram detetados porque tiveram uma segunda infeção mais grave do que a primeira, o que não se verificou nos outros casos.

Outra situação detetada foi a do paciente de Hong-Kong que já tinha sido infetado com sintomas e que na reinfeção não teve sintomas, tendo sido esta situação só detetada por um teste de triagem aleatório no aeroporto. Ao mesmo tempo esta situação parece ter sido um bom sinal para os investigadores, "o seu sistema imunitário aprendeu a defender-se após a primeira infeção".

DestaquedestaqueEm Portugal, neste dia foram registados mais 5891 casos e 79 mortos. Ao todo, há no país 236 015 casos de infeção e 3632 mortes.

Quer para o professor Santos Rosa quer para os autores do estudo publicado na Lancet, no momento atual, mesmo com reinfeções e com todas as incógnitas que ainda existem em relação a este vírus, "a vacinação continua a ser um dos melhores meios de prevenção e de proteção contra a covid-19, mesmo que não garantam imunidade vitalícia e que sejam necessários reforços".

E enquanto estas não estão no mercado, o médico português defende que "a única forma de nos protegermos do vírus, porque ele não faz nada a não ser que nós lhe permitamos que nos infete, é ter uma atitude responsável para se ir diminuindo a cadeia de transmissão".

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