"Passei metade da vida a estudar a perseguição aos judeus na Europa"

Tudo começa no romance com um tiro que uma jovem judia ouve ser disparado durante a madrugada. Está-se em Pitigliano, uma terra da Toscana conhecida como A Pequena Jerusalém em que o segundo maior conflito da história do século passado vai alterar as vidas de todos.
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O autor de Um Tempo a Fingir não tem largado uma área de trabalho em que a história ainda é muito recente - o século XX - e ao terceiro romance sobre as questões judaicas, as da civilização em perigo durante os anos da II Guerra Mundial, "viaja" até uma pequena localidade da Toscana. O ano de 1937 é o polo que atrai várias personagens perdidas ou em desconstrução, sem nunca as deixar tombar num vazio que não aquele a que lhes é impossível escapar.

Escolhe um título, Um Tempo a Fingir, que pode enquadrar-se em várias épocas da história da humanidade ou aquela que serve de cenário a este romance é a mais apropriada?
O título refere-se ao fingimento enquanto tábua de salvação, neste caso o recurso a que uma jovem judia marcada pela tragédia recorre para manter vivas as suas ambições. A época que serve de cenário ao romance é, pelo contrário, um momento de lucidez, um período em que, pelas circunstâncias históricas, o homem se denuncia com uma clareza brutal.

O tempo e o local dos romances que escreve têm sido fora do âmbito da sua própria vivência. É mais "fácil" escrever sobre o distante ou uma obrigação?
Só o pano de fundo é distante. O passado é a lente mais fidedigna para escrutinar o presente. Ao escolher aquele tempo, regresso a uma Europa que deixa cair a máscara, que nos exibe o sorriso, mas também os dentes podres. Que melhor palco para mergulhar na natureza humana e, falando do homem de então, perceber o homem de hoje?

Conseguiu contornar as explicações habituais sobre este período da história de Itália em 1937 ou está tudo esclarecido?
Nunca está tudo esclarecido, mas, a certa altura, a historiografia converge e pacifica-se em torno de certas questões cruciais. No meu livro, que não tem a ambição de ser um romance histórico, nunca quis ir além disso. Mais do que nos anteriores, neste romance desço à escala do homem comum, das famílias e das relações que se geram numa pequena cidade toscana à sombra do fascismo. São os vícios e as virtudes no quadro de uma organização social que nos é familiar, pois há traços comuns ao Portugal do Estado Novo. É essa face da história que pretendi pôr a nu.

A figura de Mussolini criou-lhe dificuldades de interpretação ou o seu papel ficou muito claro?
Ainda que eu não lhe dê corpo ou voz, a figura do Duce acompanha-nos do início ao fim do romance. Nem poderia ser de outra maneira, pois, naquele período, ela impôs-se esmagadoramente no dia-a-dia dos italianos. Há referências explícitas à doutrina fascista e ao antissemitismo oficial, às ambições imperialistas de Mussolini, ao oportunismo com que se aliou a Hitler e entrou na guerra, à sua queda e ressurgimento, já como fantoche do Reich na República de Salò, e é tudo. Nada pretendi dessa personagem que o consenso histórico não tenha validado há muito tempo.

A investigação é a pedra fundamental para evitar erros tão habituais nestas construções literárias do passado. Como depurou as falsas teorias que sempre se apresentam ao escritor?
Pagando o preço da espera. No meu caso, um preço elevadíssimo, já que passei metade da minha vida a estudar a perseguição aos judeus na Europa, o tempo que me impus antes de começar a escrever sobre o assunto. Ao longo de tantos anos, tornou-se inevitável tropeçar em contradições, paradoxos ou interpretações diversas sobre alguns momentos da história. Isso pede releitura, muitas vezes discussão com quem também os estudou, até ter entre mãos a versão mais plausível.

Tem estado envolvido numa polémica com um autor português, José Rodrigues dos Santos, sobre o que considera estar errado na elaboração de um romance sobre os campos de concentração alemães. Era-lhe impossível não reagir às afirmações dele?
Não questiono, seja a que nível for, a qualidade de livros que não li. A discordância vem das declarações públicas proferidas num canal público de televisão. Sempre que ouvir alguém, referindo-se a Auschwitz, evocar a capacidade do ser humano para se adaptar às situações, eu sugiro-lhe que leia Primo Levi. Aí aprenderá que a adaptação no Lager é moral e animalista, sempre menos decisiva do que a sorte; a sorte de se ser posto a trabalhar debaixo de um teto, ou a falta dela quando se sai para a rua sem comida no estômago e se passa o dia inteiro debaixo de neve, com vinte graus negativos e um pijama listado. Sempre que alguém afirmar que o genocídio nazi serviu um propósito altruísta - não só salvar a Alemanha e o Reich dos Mil Anos, mas salvar a humanidade -, ou se atrever a sugerir que o uso do gás na chacina dos judeus teve uma raiz de compaixão, não conte com o meu silêncio.

No seu caso, reformulou alguma vez o texto para evitar situações que lá estivessem e que pudessem induzir o leitor em erro?
Não faço outra coisa enquanto escrevo. Já prescindi de palavras, há sempre uma ou outra que range, mas, ao fim de três romances, nunca desisti de uma frase. O desígnio do romancista, do poeta ou do contista é esse mesmo, é dizer tudo, mas nada mais do que tudo. É essa ambição que nos prende a um parágrafo, por vezes dias a fio, para dizermos ao leitor estritamente aquilo que queremos.

A questão da repressão aos judeus é posta sem rodeios nesta frase: "Judia? E então? Quem não é fiel ao seu Duce não é fiel ao seu deus."
Essa frase é dita pela Maestra, uma professora fascista que se dirige à aluna judia e lhe ordena que pendure um crucifixo na parede da sala de aula, entre os retratos do Duce e do rei Vittorio Emanuele. Mais do que um insulto ou mera provocação, há um tom acusatório, pois, como refiro no romance, a imagem é perfeita: ali estava uma judia, descendente em linha reta dos assassinos de Cristo, a pendurá-lo outra vez.

No último ano foram publicadas centenas de livros sobre Auschwitz a nível mundial e muitas dezenas traduzidos em Portugal. Até que ponto esta "vulgarização" é benéfica ou banaliza um dos piores exemplos do que foi o Holocausto?
Mais do que a quantidade, título ou tema desses livros, preocupa-me o conteúdo, pois é aí que a banalização se pode concretizar. Não os li, não os sei avaliar, mas lembro que as estratégias editoriais e opções dos autores correspondem a um interesse crescente face à tragédia do Holocausto. É isso que me intriga. Se o leitor vai à procura de um compêndio de atrocidades, perde a oportunidade de se comprometer com a história, pois tão terrível como os corpos empilhados à porta das câmaras de gás é o que temos em comum com muitos dos seus carrascos. Para nos lembrar disso, temos os livros, os bons livros, claro.

Utiliza várias vozes neste romance. Conseguiu que cada uma exprimisse como queria a "mensagem" própria da sua personagem?
Acredito que sim. Importante é perceber se as personagens concordam. Criamo-las como queremos, damos-lhes rosto e tudo o que precisam para decidir por si, mas depois levamo-las à rédea. Enquanto ato criativo é irresistível, mas já viu que risco? A personagem que deixa de se parecer consigo mesma é tão exasperante como um quadro torto.

A protagonista é, mais uma vez, uma mulher...
É o que acontece sempre que escrevo na primeira pessoa - e este livro só podia ser escrito na primeira pessoa. A exceção acontece em Os Loucos da Rua Mazur, mas só em pequenos excertos e, mesmo assim, tive de inventar um escritor para o fazer por mim. O "eu" pode ser desconfortável, um travo confessional que detesto sentir enquanto escrevo. Quando o faço, a pele de mulher não é mais do que um manto para escrever sem ser visto. Por outro lado, acho irresistível a distância que me afasta de tudo o que Annina representa, a especulação de falar por uma jovem rapariga que vive nos confins da Toscana há mais de oitenta anos.

Como é o esforço para estruturar uma narrativa deste género de forma a conseguir convencer os leitores do presente a regressarem a um passado que muitos já esqueceram?
Dou-lhe o exemplo de Perguntem a Sarah Gross, o meu primeiro romance, em que conto a história de Oswiecim, a cidade que os alemães rebatizaram como Auschwitz, e como se transformou num lugar demoníaco. Se a ficção literária nunca se debruçara sobre o que ali havia antes de o campo se instalar, a literatura académica fizera-o pela rama. Isso obrigou-me a viajar - fui lá três vezes -, a falar com as pessoas, a ler testemunhos e a procurar debaixo das pedras aquelas pequenas coisas de que os livros de História se esquecem. Falo de anos de pesquisa, mas foi dos que precisei para evitar anacronismos.

O que se passa com os mais jovens. Também os tem como leitores?
Não faz ideia de quantos pais já me disseram que Perguntem a Sarah Gross foi o único livro que os filhos leram até ao fim - e é um calhamaço. Sou professor, entrei na escola há 50 anos e nunca de lá saí; luto todos os dias para que os meus alunos acreditem no poder insubstituível da leitura e é fácil imaginar o que sinto quando ouço uma coisa destas ou vejo os projetos escolares em torno dos meus romances, de norte a sul do país. É incrível a abertura que os jovens têm para o tema do Holocausto, e o vínculo que se gera à volta desse pedaço da história pode ser um bom pretexto para se tornarem leitores.

Este romance não é um corte radical com a temática que o tornou conhecido. Sente obrigação em manter-se neste registo ou no próximo tudo será diferente?
Não sinto qualquer obrigação nem sei como será o próximo. A repressão aos judeus da Europa durante o século XX tem mais facetas do que as que abordo nos meus romances; há outros lugares da história onde nos podemos colocar para melhor observar o que aconteceu e como aconteceu. Sei que vou voltar ao assunto, pois há muito por contar, resta saber se é para já.

UM TEMPO A FINGIR
de João Pinto Coelho,
editado pela D. Quixote.
399 páginas

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