Outra vez Ihor? Sim, outra vez. Desculpem incomodar
Nunca houve em Portugal um caso de violência policial com as consequências do da morte de Ihor Homeniuk.
Nunca antes tinham sido demitidas chefias, nunca tinha sido proposta a extinção de uma polícia, nunca tinha havido uma indemnização tão elevada, nunca a Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI), a entidade que fiscaliza as polícias, tinha levado a sua investigação até à exposição do encobrimento (e tantos outros casos houve em que se verificou encobrimento) e das falhas e vícios organizacionais ou tinha proposto, como fez relativamente ao responsável hierárquico máximo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras no aeroporto de Lisboa, a expulsão da função pública.
E tudo isso aconteceu, reconheça-se, porque ao contrário do que é costume o responsável da tutela assumiu desde cedo - ou, melhor dizendo, desde que o caso foi conhecido publicamente, e muito antes de as opiniões pública e publicada acordarem para ele - a gravidade do ocorrido, ordenando a dita investigação à Inspeção Geral da Administração Interna e indo ao parlamento por duas vezes, em abril e dezembro de 2020, prestar esclarecimentos, declarando: "Determinante é apurar toda a verdade, e extrair as necessárias conclusões."
Devia ser sempre assim, sem dúvida - mas nunca foi. E se Eduardo Cabrita merece críticas por vários aspetos da sua governação, ele e o governo do qual fez parte merecem igualmente reconhecimento por terem feito, face a um caso gravíssimo de violência policial, aquilo que nunca outros fizeram.
Isto dito, ser muito melhor do que de costume não chega. E, ao contrário do que o ex-ministro garantiu, nem se apurou ainda toda a verdade nem, tão-pouco, se extraíram as necessárias conclusões do que foi apurado.
O DN noticiou este fim de semana que resulta dos depoimentos na IGAI da ex-diretora nacional, Cristina Gatões, e do ex-coordenador do departamento de inspeção interna do SEF, João Ataíde, que várias informações dadas por Cabrita ao parlamento a propósito de Ihor, nomeadamente a de que o SEF abriu uma investigação interna logo no dia a seguir à morte, não correspondem à verdade.
Note-se que o DN não acusou o ex-governante de ter mentido; mentir implica saber que se está a dar uma informação errada. O normal seria pois que, confrontado com um desmentido, procurasse esclarecer. Optou por não o fazer.
Claro que, não estando já Eduardo Cabrita no governo e tendo até havido eleições legislativas há uma semana, para a maioria das pessoas este assunto não tem interesse nenhum - na verdade esta morte de um homem sob custódia de uma polícia, em circunstâncias atrozes (lembremos que o deixaram algemado, sozinho, deitado, mais de oito horas) nunca foi, como se sabe, algo que realmente interessasse os portugueses, e até os media em geral, pelo que se houve um breve assomo de indignação oito meses depois do óbito e o julgamento dos três inspetores acusados, em 2021, teve bastante atenção, a respetiva condenação encerrou o assunto para a maioria: muito pouca gente quer saber da tal "toda a verdade", muito menos de "extrair as necessárias conclusões".
E no entanto devia ser isso o mais importante: uma morte com estas características, ocorrida no seio de uma organização policial, não deve ser apenas imputada a quem tenha sido o fautor imediato; nunca poderia ter ocorrido se não existissem as condições para tal em termos de cultura de violência, de desrespeito pela lei e pelos direitos humanos, e de encobrimento, mas também de ausência de sindicância e de mecanismos eficazes de apuramento de responsabilidades.
É certo que o relatório da IGAI, conhecido no final de setembro de 2020, descreve o quadro de incúria, desumanidade e ilegalidade do funcionamento do SEF do aeroporto; mas é preciso perguntar como foi tal possível. E tal foi possível não só porque a cultura organizacional do SEF o permitiu, mas também porque a instância fiscalizadora - a mesmíssima IGAI - não fez o seu trabalho.
Como o DN noticiou, a IGAI, que pode proceder a inspeções sem aviso ao SEF, nunca as fez ao centro de detenção para estrangeiros não admitidos em que Ihor morreu - mesmo se este estava há muito sinalizado pela Provedoria de Justiça e pelo Mecanismo Nacional de Prevenção de Tortura como um local de risco.
É também evidente - pelo menos para mim - que houve desde o início do caso, e até por parte da IGAI, uma delimitação das responsabilidades: no citado relatório, a direção nacional do SEF não é tida nem achada, nomeadamente quanto a uma questão fundamental - quando e como soube da morte e o que fez a seguir. O DN procurou obter esse esclarecimento desde a primeira hora, mas só nas últimas semanas conseguimos, através do depoimento de Gatões e Ataíde à IGAI, saber qual a narrativa da ex-diretora nacional - descrita na notícia que publicámos este domingo.
Tão espantosa pelo menos como essa narrativa - Gatões continua a dizer que nunca suspeitou de que pudesse ter existido crime, que ninguém lhe disse que a PJ começara a investigar quatro dias depois da morte (a brigada de homicídios esteve no SEF do aeroporto a 16 de março, o que dificilmente não seria comunicado à direção) e chega até ao ponto de afirmar que não viu um mail enviado, a 19 de março, para a PJ com seu conhecimento - é a IGAI não ver motivo para agir disciplinarmente sobre uma responsável policial que não só não lhe comunicou de imediato, como era sua obrigação, a morte (e soube dela pouco depois de ocorrer), como nada fez para perceber o que se tinha passado. E é aqui que ganha relevo a certificação do ministro de que houve uma averiguação interna, averiguação que Eduardo Cabrita até asseverou ser "obrigatória". Tão obrigatória é que nunca existiu - nem da parte do SEF nem, num primeiro momento, da IGAI.
É que nem a própria IGAI abriu, quando finalmente foi informada (primeiro, soubemos agora, por telefonema de Gatões para a inspetora-geral, a juíza desembargadora Anabela Cabral Ferreira, a 16 de março, e depois por carta, a 18), qualquer inquérito à morte, ficando à espera que o SEF lhe desse informação - sendo assim surpreendida pela revelação de que a PJ detivera três inspetores por suspeita de homicídio. Para que serve a obrigatoriedade de comunicação de mortes em custódia à IGAI se esta fica sentada à espera de que as polícias lhe digam se há suspeita de abuso?
A passividade da IGAI neste caso torna-se ainda mais escandalosa quando, além de não ver motivos para agir disciplinarmente sobre a então diretora do SEF, se constata que a dirigente máxima desta inspeção não se eximiu de "ilibar" Gatões quando o inquérito disciplinar em que esta prestou depoimento ainda decorria. A 2 de abril de 2021 - três meses antes de o inquérito ser finalizado com proposta de arquivamento, e a certificação de que não se encontrara matéria disciplinar contra Gatões, e escassas semanas após a ex-diretora do SEF ser ouvida (foi-o a 19 de março) -Anabela Cabral Ferreira deu uma entrevista ao Público dizendo que achava que não havia lugar a responsabilidade disciplinar no caso de Gatões e que acreditava que esta não estava a mentir quando disse que não sabia de nada.
"Sinto-me completamente enganada", cita a IGAI na súmula do depoimento de Gatões. Há muita coisa que ainda não se sabe sobre o caso Ihor, e por este andar talvez muita dela nunca se venha a saber. Mas se a diretora nacional do SEF foi "completamente enganada" foi porque quis - e com ela todos nós.