O mundo está parado à espera da América

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As eleições da próxima terça-feira, 3 de novembro, nos EUA não são apenas, como gostam de dizer os democratas, as mais decisivas da história recente do país, são também fundamentais para o futuro imediato do mundo. Imagino, pois, que naquela noite (madrugada em África e na Europa e manhã na Ásia) todos nós estaremos em suspenso, à espera dos resultados.

Quando terminei este texto, o rival de Trump, o candidato democrata, Joe Biden, estava à frente em todas as pesquisas, mas isso não é garantia da sua vitória dentro de quatro dias. Estamos todos recordados de que, nesta mesma altura, há quatro anos, a candidata democrata, Hillary Clinton, também estava à frente. Seja como for, a atual diferença entre Biden e Trump, nesta altura, é superior à que existia em 2016 entre Hillary e o então candidato republicano. Segundo os jornais, é a maior diferença entre dois candidatos nos últimos 24 anos.

Mas a lição de 2016 ficou. Todos insistem, por isso, que nada está garantido. Além da falibilidade das pesquisas, o sistema eleitoral norte-americano torna qualquer previsão mais difícil. Como se sabe, o princípio "um homem, um voto" não é aplicado nos EUA, onde o presidente é eleito por um Colégio Eleitoral. Assim, não é imperioso, rigorosamente, ter mais votos a nível nacional, é preciso apenas obter a maioria de representantes no Colégio Eleitoral, o que pode ser conseguido vencendo somente em alguns estados, desde que a soma dos seus representantes no referido Colégio seja suficiente para eleger o presidente.

Além disso, há dois outros fatores que podem contribuir para que o resultado final das eleições presidenciais na América não corresponda, genuinamente, à expressão da vontade popular: a tradicional estratégia de voter supression, que visa dificultar sobretudo o exercício do direito de voto pelas grandes minorias, e o eventual papel do próprio Tribunal Supremo.

Nos EUA, a administração eleitoral é exercida pelas autoridades estaduais e locais revelando a prática que, nos estados e municípios governados por republicanos, as autoridades tudo fazem, desde desenhar os círculos eleitorais de acordo com os seus interesses até limitar as estações de recolha dos votos antecipados, entre outros, para dificultar a vida aos potenciais eleitores democratas.

A estratégia de voter supression é, realmente, uma maka séria nos Estados Unidos. De tal maneira que o conhecido jornalista Fareed Zakaria perguntou no último domingo, no seu programa na CNN: "Isto é a América ou uma República das Bananas?"

Quanto ao Tribunal Supremo, este acaba de dar um exemplo de favorecer os republicanos, ao proibir o alargamento do prazo para a contagem dos votos pelo correio recebidos após o dia das eleições em vários estados-chave. Os republicanos estão a exercer toda a pressão para limitar a contagem desses votos, que tradicionalmente são votos democratas. De recordar que, em 2016, Trump ganhou num desses estados - Wisconsin - por apenas 23 mil votos.

Em suma, o que se está a passar na América é inimaginável: além das estratégias acima mencionadas, o próprio presidente está a fazer recurso de todas as manobras possíveis, incluindo apelos aos seus correligionários para irem armados aos centros eleitorais, a fim de tumultuar a votação, sem esquecer a sua ameaça de não aceitar os resultados, caso seja derrotado. Trump fala em "fraude", mas quem está a tentar fazê-la abertamente é ele. Se isso acontecesse num país africano ou latino-americano, quais seriam as manchetes da imprensa mainstream mundial?

Caso Trump seja reeleito, haverá desde logo um risco concreto de retrocesso, por muitos anos, de alguns dos direitos históricos adquiridos pela sociedade americana. Esse risco é tanto maior quanto acaba de ser confirmada para o Tribunal Supremo dos EUA - que joga um papel talvez excessivo no funcionamento do sistema democrático americano - uma juíza ultraconservadora indicada a dedo pelo atual presidente do país. A correlação de forças do referido tribunal ameaça direta e explicitamente direitos cívicos e sociais adquiridos pelos cidadãos americanos após décadas de lutas.

Do ponto de vista externo, uma provável vitória de Donald Trump na próxima terça-feira implicará a aceleração, com consequências imprevisíveis, do processo de deriva mundial iniciado com a sua vitória, em 2016. Perante a pretensão de outros países, como a China, no sentido de se assumirem como a principal grande potência, uma América autoisolada e errática não ajudará a estabelecer aquilo de que, estou certo, a humanidade precisa e há de precisar sempre: uma liderança mundial verdadeiramente compartilhada, capaz de manter o equilíbrio global.

Outro risco de uma eventual reeleição de Trump será a possibilidade de aprofundamento e alargamento da contra - revolução ultradireitista em curso, assente no questionamento e desmantelamento do sistema democrático, no supremacismo identitário, no racismo, no negacionismo da história e da ciência e na utilização da polarização e do ódio como arma política. Ou seja, o triunfo da sociedade incivil.

Jornalista e escritor angolano. Diretor da revista África 21.

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