Na hora de desconfinar, o que se sabe (e ainda se desconhece) sobre a covid-19

Estamos em lento regresso à vida social, mas a covid-19 não desapareceu. O Sars-cov-2 continua à espreita, à espera de nova oportunidade para se transmitir em larga escala. Afinal, o que se sabe (e ainda se desconhece) sobre este vírus a doença que provoca?
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Controlado, ao que tudo indica - e até ver -, este primeiro embate com o Sars-cov-2, estamos em lento regresso à vida social. Algumas atividades e comércio reabriram com todas as cautelas a 4 de maio e estamos na contagem decrescente para mais um passo nesse sentido, com a reabertura prevista, dentro de uma semana, de creches e turmas do secundário, ou de restaurantes a 50% da capacidade, entre outros setores.

Face aos desafios que este regresso coloca à sociedade, e passados mais de cinco meses sobre o surgimento do Sars-cov-2 na China, eis o que já se sabe (e ainda se desconhece) sobre o vírus e a doença que ele provoca.

Como se transmite a doença?

Tal como acontece com outras doenças respiratórias, a covid-19 transmite-se através de gotículas de saliva provenientes de espirros e tosse de uma pessoa infetada que ficam no ar e se depositam nas superfícies à sua volta. O contágio, segundo os cientistas, faz-se sobretudo através do contacto com estas superfícies contaminadas, quando as pessoas tocam com as mãos infetadas na própria boca, nariz e olhos. Mas persistem incertezas.

Estudos preliminares em laboratório apontam para que o Sars-cov-2 se mantém infeccioso em diferentes tipos de superfícies. Aquelas em que persiste viável durante mais tempo são o plástico e o metal, perdurando aí por 72 horas, ou seja três dias. Seguem-se o papel e o cartão (um dia) e o cobre (quatro horas). Mas nas condições da vida real pode não ser exatamente assim. Por isso se deve seguir a recomendação de lavagem frequente das mãos, já que estamos rodeados de todos estes tipos de superfícies nos mais diversos objetos.

Não está excluída também a possibilidade de contágio pela inalação de gotículas ou aerossóis (de menor dimensão) libertadas pelos espirros e tosse de uma pessoa infetada. Em condições laboratoriais verificou-se que os vírus podem persistir ativos por cerca de três horas em suspensão no ar, o que aponta para que este tipo de contágio poderá ser mais importante do que se pensava, pelo que a investigação continua. Enquanto não existe uma resposta mais clara, manter as distâncias dos outros (dois metros é o mais seguro) é a palavra de ordem.

Outra incógnita diz respeito à possibilidade de contágio por via sexual ou através das fezes e da urina. E a resposta é: não se sabe. O que os dados disponíveis mostram é que, seja qual for a forma como isso acontece, cada doente contagia em média 2,3 pessoas, um valor superior ao da gripe, que é de 1,3.

Por que motivo é tão contagiosa a Covid-19?

Vários fatores conjugados tornam esta doença muito contagiosa. Um deles é o facto de o período de incubação ser muito longo, podendo estender-se entre dois e 14 dias - é exatamente por isso que a sua quarentena está estipulada em 14 dias. A juntar a isso, as pessoas portadoras do vírus podem transmiti-lo a outras mesmo que ainda não tenham desenvolvido sintomas, e há mesmo estudos que indicam que a fase assintomática é especialmente contagiosa. Ou seja, as pessoas não sabem sequer que estão doentes - para ter a certeza teriam de fazer o teste - e já estão a contagiar os outros.

Além disso, sabe-se agora que uma vasta percentagem dos infetados não chega sequer a desenvolver sintomas. A Organização Mundial de Saúde estima que até 60% das infeções sejam propagadas por doentes assintomáticos.

Por que motivo são poucas as crianças infetadas?

Aqui reina, de novo, a incerteza. É um facto que as crianças parecem menos suscetíveis à doença e praticamente não há registo de mortes pela doença nas faixas etárias infantis, mas na verdade não se sabe por que motivo isso é assim.

Sabe-se que as crianças têm muitos menos recetores para este vírus nas células do seu sistema respiratório, em relação aos adultos, e por isso os médicos e cientistas colocam hipótese de isso ser determinante para que sejam pouco suscetíveis de infeção pelo Sars-cov-2. Mas poderá haver também outros fatores envolvidos.

As crianças podem transmitir a doença?

Também aqui não há certezas. A ideia dominante tem sido a de que as crianças não são transmissoras eficientes do vírus, mas os resultados em sentido contrário de dois estudos publicados na semana passada por diferentes centros de investigação suiços, vieram lançar uma grande dúvida sobre essa assunção, e mostrar que, no fundo, estamos preante uma incerteza. São dados a ter em conta, num momento em que as creches se preparam para reabrir no país.

As pessoas podem ser reinfetadas, ou adquirem imunidade?

Eis uma pergunta a para a qual ainda não há uma resposta exata. Há notícia de alguns casos na China e no Japão de pessoas que já depois de curadas voltaram a ter testes positivos para o vírus, mas não se sabe se foram mesmo reinfetadas, se tinham ainda alguma carga viral residual ou se, simplesmente, houve erro nos testes. Para se dizer com toda a certeza que pode haver reinfeção será preciso que se observem mais casos do que aqueles que foram identificados até agora, estimam os especialistas.

A questão da imunidade é a outra face desta moeda carregada de incógnitas. Como este é um novo vírus, há uma única certeza: a de que a humanidade, que nunca antes se tinha cruzado com ele, não tem imunidade para lhe dar resposta. Mas, tal como acontece com muitos outros vírus, tudo indica que os doentes de covid-19 que sobrevivem à doença desenvolvam imunidade contra o vírus.

Neste ponto, a grande questão é a de se saber se o organismo de uma pessoa que foi infetada pelo Sars-cov-2 desenvolve imunidade de longa duração ao vírus. No caso de outros coronavírus que provocam constipações benignas, por exemplo, a imunidade dura apenas entre alguns meses e um ano, ou dois, e as pessoas podem depois ser reinfetadas por eles - e são. Ou seja, não há ainda uma resposta definitiva para esta questão, simplesmente porque ainda não passou o tempo suficiente para se perceber se haverá imunidade a longo prazo para este vírus - o vírus surgiu há pouco mais de cinco meses.

De acordo com os especialistas, tudo aponta para que as coisas se passem de forma muito semelhante ao que acontece com os outros coronavírus, que provocam uma imunidade de curta duração. Mas a partir do momento em que se atinja uma imunidade de grupo, a pandemia termina.

Porque é que mais de 80% das pessoas tem sintomas ligeiros, ou não tem sintomas?

Isso decorre das características do próprio vírus, que é muito muito contagioso, mas pouco virulento. Na prática, o Sars-cov-2 provoca uma infeção ligeira, muitas vezes assintomática, em cerca de 95% da população.

Há, no entanto, pessoas que não pertencem aos já conhecidos grupos de riscos para a doença - os idosos e as pessoas imunodeprimidas ou com doenças crónicas, como as respiratórias, cardiovasculares, diabetes ou hipertensão - que desenvolvem pneumonias graves, respostas inflamatórias exacerbadas e falência orgânica que terminam na morte dos doentes. Não se sabe ainda porque isso acontece.

Quanto tempo leva em média um doente para recuperar da infeção?

Nos casos em que se trata de uma infeção benigna, os doentes podem recuperar em duas ou três semanas. Nos casos mais graves, a recuperação pode levar seis semanas ou mais. Há relatos de que uma parte dos doentes experimenta sintomas de fadiga ou dores ósseas durante mais tempo, e não se sabe se esses efeitos são passageiros ou se tornarão crónicos.

Qual é a taxa de letalidade do novo coronavírus?

A Organização Mundial de Saúde estimou em março que esse valor é de 3,4% - a gripe sazonal, por exemplo, tem uma mortalidade média de 0,1%.

Mas esta taxa aumenta com a idade. A partir dos 65 anos as pessoas são mais vulneráveis, sobretudo se tiverem doenças crónicas como a diabetes, doenças cardiovasculares, respiratórias e hipertensão, e acima dos 80 anos a taxa de letalidade sobe para 14,8%. Esta população mais idosa tem também em geral associados diferentes problemas de saúde.

Os valores também diferem consoante os países. A Itália, por exemplo, registou uma taxa de letalidade mais alta, em torno dos 10%, enquanto em França essa taxa foi de 5% e na Alemanha 0,5%. Em Portugal esse valor está nesta altura nos 4,1%, mas nas pessoas com mais de 70 anos ele chega aos 15,1%.

Estas disparidades entre países têm a ver com múltiplos fatores: as medidas tomadas e o seu timing - ao contrário de Portugal, Espanha e Itália, por exemplo, atrasaram-se a tomar medidas de contenção neste primeiro embate da pandemia -, o cumprimento rigoroso (ou não) da quarentena por parte dos cidadãos ou ainda o perfil demográfico das respetivas populações.

Itália, por exemplo, tem uma das populações mais envelhecidas do mundo com 23,1 % acima dos 65 anos, e esse será um dos motivos porque a taxa de letalidade foi ali das mais altas.

Tudo indica, por outro lado, que a doença já estaria a circular silenciosamente em Itália antes de o governo ter imposto medidas de quarentena, que uma parte dos cidadãos não terá, aliás, respeitado. Com a doença em descontrolo, os serviços de saúde não puderam dar resposta a todos os doentes que precisavam de ventilação, o que também terá contribuído para aumentar a mortalidade naquele país.

Outro fator que emergiu entretanto como podendo estar associado à alta letalidade no norte de Itália foi a poluição atmosférica, que é aliás a mais alta em toda a Europa.

Este vírus veio para ficar?

Não restam dúvidas sobre isso. Ele está em todo o mundo e já se tornou endémico. Trata-se agora de gerir a situação em termos de saúde pública para, passo a passo, tentando evitar novas vagas de grande dimensão, construir a imunidade de grupo, de forma que a pandemia possa ser travada. Quando é isso acontecerá é que ainda não se sabe.

A epidemia poderá abrandar com o tempo quente?

Os estudos feitos até agora parecem apontar no sentido de um abrandamento do contágio no verão, mas os dados disponíveis indicam também que esse efeito será mínimo e que isso, só por si, não será suficiente para travar a pandemia.

Quando poderá haver uma vacina?

Ao que tudo indica, na melhor das hipóteses, dentro de um ano, ou mais. Neste momento há mais de uma centena de potenciais futuras vacinas a serem desenvolvidas por todo o mundo, nas bancadas de inúmeros grupos e laboratórios, e algumas já iniciaram ensaios clínicos. Mas este é um processo moroso que tem de passar por várias fases bem definidas de testes laboratoriais e de ensaios clínicos de segurança e eficácia, para poderem vir a ser utilizados um dia nas populações humanas.

Mas há sempre a hipótese de não ser possível desenvolver uma vacina., como alertam os especialistas. Não faltam, aliás, exemplos de vírus para os quais nunca foi possível desenvolver uma vacina.

O que esperar dos ensaios clínicos em curso com medicamentos já aprovados para outras doenças?

Procurar uma solução entre os medicamentos que já estão aprovados para a prática clínica é uma estratégia expedita para acelerar a possibilidade de encontrar uma molécula com efeitos benéficos contra a covid-19.

Nesse sentido decorrem dezenas de ensaios clínicos com diferentes medicamentos, entre os quais se contam o remdesivir, usado para oébola, e até agora com resultados mistos para o Sars-cov-2.

O laboratório que produz este composto anunciou no início de maio que doentes de covid-19 tratados com ele recuperaram mais depressa. No entanto, os resultados de outro ensaio clínico com o mesmo medicamento e que foram publicados na mesma altura na revista The Lancet foram classificados como dececionantes, já que os doentes não apresentaram melhoras significativas em relação a doentes tratados com um placebo. Os estudos continuam.

Decorrem igualmente ensaios clínicos com outros antivirais para o VIH/sida e ainda com a cloroquina ou derivados, que são utilizados para tratar a malária, mas ainda não há resultados definitivos a indicar que funcionam no contexto da covid-19.

Enquanto isso não acontece, os serviços de saúde dos vários países estão a optar por usar algumas dessas drogas como recurso para tratar os doentes internados com covid-19. É o caso de Portugal, onde os doentes hospitalizados com a doença estão, desde o final de março, a ser tratados com os medicamentos da malária e do ébola que ainda estão em investigação, seguindo uma norma da Direção-Geral da Saúde, e de acordo com as recomendações da OMS.

Que resultados poderão ter os tratamentos experimentais como o plasma de doentes recuperados?

Sem vacina ou medicamento específico, esta pode ser a possibilidade mais imediata de proporcionar um eventual tratamento aos doentes de covid-19 que necessitam de hospitalização.

O princípio baseia-se no facto de o plasma dos doentes recuperados de covid-19 conter anticorpos contra o Sars-cov-2 que foram produzidos pelo organismo dos próprios pacientes, e que se espera que possam atuar quando esse plasma é administrado a outras pessoas infetadas.

Isso está a ser testado em vários países, com resultados positivos confirmados por exemplo na Áustria, que anunciou há dias a cura de mais três pacientes na sequência desse tratamento com plasma. Os especialistas admitem no entanto que isso não resulte para todos os doentes.

Em Portugal, o Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) anunciou a 1 de maio que arrancam ainda este mês ensaios clínicos com plasma de sangue de doentes recuperados da covid-19 em 10 hospitais de todo o país

Por que se fala de uma segunda e terceira ondas da epidemia, depois deste primeiro embate?

Depois desta primeira onda, e com os primeiros passos de desconfinamento já em marcha, persiste a possibilidade de novas ondas de covid-19. Enquanto houver uma população maioritariamente suscetível à infeção, essa hipótese amntém-se. Só não se sabe quando isso pode acontecer.

Manter o número de casos de covid-19 suficientemente baixo para eles serem geríveis do ponto de vista da capacidade de resposta do Sistema Nacional de Saúde, dependerá muito da forma como ocorrer o regresso gradual à vida social. Manter o distanciamento na interações nas interações e as medidas de higiene, que passam pela lavagem frequente das mãos, será determinante para evitar eventuais segunda ou terceira vagas de covid-19 atinjam grandes proporções.

Quando poderá terminar esta pandemia?

Neste momento ninguém sabe. Tudo vai depender de quando se atingir a imunidade de grupo nas populações, o que significa ter entre 70 e 80% da população imunizada, e da forma como se vai lá chegar.

A necessidade de achatar a curva epidémica para os serviços de saúde não colapsarem sob um número exorbitante de doentes ditou as medidas de contenção que desaceleraram o contágio e a propagação da epidemia. Mas isso também contribui para prolongar a situação no tempo, podendo uma situação de quarentenas intermitentes, com a libertação lenta e progressiva das pessoas já imunizadas durar muitos meses. Na verdade, ninguém sabe.

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