"Militares portugueses morrem de fome porque se esquecem deles em cubatas"
Que contributo é que este livro, estas novas investigações trouxeram sobre o papel dos militares portugueses em África nessa altura?
Nuno Lemos Pires (NLP) O nosso livro tem uma dimensão comparativa. Não nos limitámos a analisar o que fizeram os portugueses em África. Analisámos a Grande Guerra [GG] em África e fomos ver as grandes operações conduzidas na parte aliada, onde estão belgas, britânicos e dentro dos britânicos está a União Sul-Africana. Ao vermos o esforço de guerra e os quatro anos de evolução de guerra, comparámos com aquilo que foi a ação dos portugueses. E essa dimensão comparativa praticamente não estava feita.
Por exemplo?
NLP A ofensiva contra aquilo que era o sudoeste africano, mais ou menos a atual Namíbia [então colónia alemã], é feita em 1915 com grandes meios: 40 mil homens, artilharia, metralhadoras. Em Portugal havia a ilusão que também podíamos fazer ofensivas contra os alemães. Com quê? Com expedições de 4000 ou 5000 soldados, sem metralhadoras e sem apoios. A dimensão comparativa é uma das grandes novidades que trazemos neste livro.
O que mais os surpreendeu nesses documentos inéditos de arquivos estrangeiros?
António Telo (AT) Uma das coisas mais interessantes é a teia política que está por trás das operações militares. A GG é, sobretudo em África, uma operação político-militar. Há interesses cruzados e intenções cruzadas. Por exemplo, a Bélgica estava praticamente toda ocupada pela Alemanha e tem uma clara intenção de ocupar Cabinda. Quer Cabinda ligada ao Congo Belga e coloca isso, inclusive, como preço para participar na campanha contra os alemães. Preço que a Inglaterra nunca aceita. A União Sul-Africana tem a sua intenção tradicional, que é ter todo o Moçambique a sul do Zambeze. Há estes interesses cruzados e vão-se refletir na manobra militar. Por exemplo, em 1916/17, quando a manobra militar em Moçambique está sob o comando geral de um general sul-africano, há algumas cascas de banana postas aos portugueses.
Como?
AT Enviá-los para operações impossíveis, onde necessariamente as coisas iriam correr mal. Isso favorecia a tese sul-africana de que os portugueses são incompetentes, incapazes de lutar contra os alemães, para justificar as suas ambições no final da guerra. Do mesmo modo que, em 1918, é a habilidade diplomática de Sidónio Pais que consegue associar, a um acordo para entregar a gestão de todo o norte de Moçambique - civil e militar - aos aliados para combater as forças alemães, a reafirmação do tratado de 1703 que garante a integridade de Moçambique. E a Inglaterra aceita, porque também não está interessada em que as ambições sul-africanas se concretizem. Esta trama política é bastante diferente do que normalmente aparece.
É esse papel de Sidónio Pais que permite recuperar o Triângulo de Quionga?
AT Não. O Triângulo de Quionga era uma zona minúscula. O seu significado estratégico, económico ou outro era praticamente nulo. Era uma questão simbólica, mais que qualquer outra coisa. Quionga é mais uma das cortinas de fumo que existem neste conflito em África. É apresentado depois da guerra como 'Estão a ver? Tivemos uma vitória. Conseguimos recuperar o Triângulo de Quionga'.
NLP Há uma dislexia entre o pensamento político e o parecer militar. Nunca a divisão foi tão grande: o que vinha de Lisboa para Moçambique ou para Angola, em termos de instruções políticas e intenções, nada tinha a ver com aquilo que quem estava no terreno ia propondo e avaliando. E quando digo os que estavam no terreno, eram tanto portugueses como os aliados. Porque toda a gente tinha a noção do que era um von Lettow-Vorbeck, o general alemão que fazia estas campanhas e que nunca perdeu qualquer batalha contra mais de 100 mil aliados. E nós pensámos, aqui de Lisboa, que mandando uma expedição com 4000 ou 5000 homens íamos conseguir fazer ofensivas contra ele.
Então não foi só uma questão de tropas mal equipadas, mal preparadas e mal armadas, como na Flandres...
NLP Acaba por ser tudo. Quando muitas das unidades enviadas para Moçambique são unidades punidas... foram batalhões como de Penamacor ou o batalhão de Marinha, no final, que são punidas e enviadas para África. Veja bem a moral de quem desembarca. Quem chega ao território não tem nada preparado para esta ofensiva, porque o tal realismo proposto por quem está no terreno nunca foi cumprido. O estar mal preparado é um fator mas não é o fundamental. A questão principal é a dislexia entre os objetivos políticos e aquilo que é feito militarmente. E quando existe um divórcio tão grande, é difícil.
AT A principal causa do desempenho militar em África é política. São campanhas que se passam num clima de guerra civil interna. Ocorrem em Portugal nove golpes, três revoluções, distúrbios na rua com intervenção da força de segurança e da força militar. É um clima de guerra civil, à volta precisamente da beligerância. É o ponto central. Ora, o que é que acontece? Os que provocam a beligerância têm contra si a maioria dos oficiais do Exército e não têm generais competentes. Os bons comandantes em África, que também há alguns, são nomeados por governos antiguerristas ou onde os antiguerristas estão presentes. Nomeiam Alves Roçadas, Massano de Amorim, Garcia Rosado e no final, embora não tenha lá chegado durante a guerra, Gomes da Costa. Os outros são nomeados pelos guerristas, pelos radicais, são os incompetentes. E mesmo esses, ao chegarem lá, dizem: 'O que vocês pedem é impossível'. Simplesmente, Lisboa insiste. E eles cedem e acabam por abrir o caminho ao desastre. Este choque, esta entrega de missões impossíveis aos militares é a principal razão do que vai acontecer em África. E com uma agravante: quando as coisas correm mal, os políticos que entregaram as missões impossíveis dizem: 'A culpa é dos militares'.
Os colonos e os nativos africanos participaram também no esforço de guerra?
AT Sim. Duas das melhores unidades que atuaram em Moçambique e Angola são de recrutamento local. São os Dragões de Angola e a companhia de segurança de Lourenço Marques, que é a GNR e é parcialmente de recrutamento local. Essas unidades são as melhor adaptadas e por uma razão fácil de entender: os colonos são os que têm mais resistência às condições de saúde e sanitárias. Ora a grande causa de baixas nestas campanhas são as condições de saúde, sobretudo em Moçambique. Por alguma razão todos os poderes europeus travaram esta guerra com forças africanas, à exceção de um que se chamou Portugal, que travou esta guerra com forças vindas de Portugal e sem qualquer experiência de África. Chegam a África e caem doentes passado pouco tempo.
É isso que explica que em Moçambique tenha havido seis vezes mais baixas do que em Angola?
AT Não. Ajuda a explicar, mas a principal razão é a total incompetência da saúde militar em África, em particular em Moçambique, que não tem nada a ver com o passado do Exército português. Mostra claramente que é uma questão política. Repare, Portugal tinha feito muitas campanhas de soberania naquela região anos antes e tinha em média 5% a 10% de baixas por razões de saúde. Era o normal. O que vai acontecer durante a guerra é que são 50% de baixas por razões de saúde. De 10% passa-se para 50%. Isto é arrasador. E mesmo aqueles que não são declarados oficialmente baixas por razões de saúde são afetados pela doença. Os relatórios no final da guerra que aparecem de fontes mais ou menos isentas, nomeadamente inglesas, dizem que numa força avaliada em 5000 homens que os portugueses têm, no norte de Moçambique, 1000 no máximo estão aptos para operações. Isto é uma razia tremenda, que não tem nada a ver com o que era a tradição do Exército português na mesma região, com o mesmo clima, com tudo igual à exceção do regime político e desta guerra civil que existia.
Na área da Saúde também foram escolhidos responsáveis incompetentes?
AT Não só. O que marca muito estas campanhas é a extrema corrupção da máquina administrativa e da máquina militar. A corrupção grassava. São conhecidos casos em que os soldados recebem comprimidos que são farinha. Se tomam um comprimido que é farinha para o paludismo, apanha-se paludismo. Não há hipótese. Do mesmo modo que são feitas grandes fortunas em termos da administração e da logística. Este regime radical era extremamente corrupto e a corrupção é uma das principais causas do colapso do sistema de saúde militar. Depois é um sistema de bola de neve, muito difícil de corrigir. O que se corrigiu minimamente foi no final da guerra, quando Massano de Amorim, entretanto nomeado governador de Moçambique, pura e simplesmente pediu ajuda britânica para a saúde militar. Os britânicos, quando entraram nos hospitais portugueses, não queriam acreditar. Chamavam àquilo campos de morte. Passam-se coisas incríveis, há militares portugueses que morrem porque se esquecem deles em cubatas. Eles estão demasiado fracos para sair de lá e morrem de fome. Pura e simplesmente. Não se conseguem mover por si, estão doentes, morrem de forme e são esquecidos. Isto é o cúmulo da incompetência em termos da saúde militar: militares portugueses encontrados mortos de fome por causa disto. É difícil conceber a incompetência a este grau extremo.
NLP É profundamente grave e basta pensar no último ano da guerra, já a entrar em 1919, quando é o abandono sobre os abandonados. Já com a guerra terminada, nos navios que transportam os últimos feridos e mortos de Porto Amélia para Lourenço Marques, muitos são mandados borda fora porque morrem durante a viagem. Ao princípio, ainda há algum cuidado em lhes fazer uma sepultura no mar. No final atam-lhes um ferro aos pés e mandam-nos borda fora. Chegando a Lourenço Marques, em 1919 são apanhados soldados a pedir no meio das ruas. Até são escondidos quando o general Gomes da Costa chega para não os ver. Claro que ele depois descobre isso e, com Massano de Amorim, conseguem inverter isto. Mas demonstra bem ao ponto que chegou o abandono político do soldado que foi muitas vezes contrariado, outras vezes punido, sente tudo aquilo que é o dia a dia e, no fim, sente o tal abandono político permanente que é ninguém querer saber deles. Nem sequer os repatriamentos.
Em termos comparativos, também houve diferenças no emprego de nativos?
NLP Os outros países perceberam rapidamente que qualquer solução que não fosse com forças nativas era má. Os ingleses, logo em 1914, enviam uma força expedicionária da Índia com oito mil militares e vão ter um grande choque. Eles contam isso como um dos grandes desastres do Exército britânico. À frente da defesa de Tanga está o general von Lettow-Vorbeck e os britânicos param para pensar, porque morrem muitos e o desembarque corre mal. Uma das questões levantadas é a da impreparação de forças vindas do exterior para atuar num território que é extremamente agreste, tem crocodilos nos rios, hipopótamos, girafas, abelhas e moscas tsé-tsé, paludismo, grandes regiões desérticas. Conclusão dos britânicos: 'Só voltamos a sério quando tivermos criadas as condições'. E vão criá-las à volta daquilo que são unidades com forças nativas: Os King's African Rifles [Atiradores Africanos Reais]. Isto fazem os britânicos, faz a Bélgica, os alemães.... e nós fazemos o contrário. Nós não conseguimos olhar para o lado, ver o que estava a acontecer com os outros e aprender.
Por usarem sempre as mesmas táticas?
AT Continuam a aplicar em 1918 as mesmas táticas que já tinham corrido mal em Naulila, no começo da guerra. Sendo que, em 1918, os alemães em Moçambique são melhores e mais experientes que os de 1914 em Angola. Fazem descargas conjuntas à ordem do oficial, formam linhas de atiradores, o oficial distingue-se facilmente à distância... muitos dos oficiais portugueses caem nos primeiros minutos de combate justamente porque se expõem demasiado. As táticas portuguesas obrigavam os oficiais a isso. São alvos fáceis e do outro lado estão atiradores excelentes. Os askaris [nativos africanos] alemães são dos melhores atiradores, apontam para os oficiais portugueses e estes expõem-se. Os alemães, pelo contrário, não estão identificados como oficiais, metem lama na cara e nos braços para ao longe parecerem que são africanos. É muito difícil distingui-los como alvo. Ocultam-se, atuam em pequenos grupos, disparam em tiro isolado... tudo o contrário do que os portugueses fazem. Os portugueses, no essencial, vão usar as táticas das campanhas de soberania contra um inimigo muito diferente. Os alemães têm um princípio muito simples: em termos de direção estratégica, centralização total; em termos da manobra tática, descentralização total. Eram uma força muito moderna e diga-se que a guerra principal do século XX; a guerra de guerrilhas, nasceu na GG com a ação do famoso Lawrence da Arábia, na Arábia, e com a ação de Lettow-Vorbeck em Moçambique.
Que impacto é que a aposta na Flandres, em 1916, teve no apoio logístico e operacional aos militares em África?
NLP Não é o envio do CEP para a Flandres. É a soma de dois fatores que é importante: o esforço principal de um país depauperado de meios e grande dependência do aliado para ir para a Flandres, ao mesmo tempo que recebe más notícias daquela ideia heroica de tirar grandes dividendos das campanhas africanas. A soma aumenta o abandono daqueles que estão de facto a lutar em Moçambique.
AT São duas situações muito diferentes. A força que vai para a Flandres está enquadrada no sistema logístico britânico. Os britânicos dão tudo. A única coisa que vai de Portugal são os uniformes, é o café e algum vinho. Fora isso, é tudo dado: alimentos, munições, armamento, equipamento, tudo. Para África não. O esforço é fundamentalmente português, o que significa que todos os problemas, nomeadamente de corrupção, se refletem em cheio em África. Só no final é que vemos um enquadramento logístico britânico e apoio, nomeadamente na saúde militar.
Em relação a África não houve divisões internas, como houve para a Flandres? E tendo estado em África, Portugal podia eximir-se a apoiar os aliados na Europa?
NLP A questão de África não é uma questão de defender África. Não havia ninguém que pusesse em causa a necessidade de defender Angola e Moçambique. Era visto dentro da GG por os alemães a norte de Moçambique e a sul de Angola poderem atacar e a defesa ter de ser assegurada. Isso era consensual. O que não era era a necessidade de atacar, passar para norte do Rovuma e fazer uma ofensiva contra os alemães ou passar a sul de Angola e atacar... a ideia de provocar a beligerância é que não foi consensual de todo. Os aliados nunca nos pediram para atacar a Alemanha, pediram-nos para defender Moçambique, para defender Angola e estar pronto a colaborar.
AT Mesmo a defesa é uma questão que divide os portugueses. A Alemanha não tinha nos seus planos atacar Angola. Mas o governo radical em Lisboa, antes de [o tenente-coronel] Alves Roçadas desembarcar e tomar conta do governo do sul de Angola, envia um telegrama para as forças que estão mesmo na zona de fronteira, dizendo para prenderem e levarem sob prisão uma delegação de seis alemães que tinha vindo para negociar. É disto que sai o incidente de Naulila [dezembro 1914]. Portanto, o ataque alemão nasce de uma divisão entre portugueses. Um dos grandes problemas de África é o clima de guerra civil, em que uma parte da administração portuguesa combate a outra parte. Quer a civil quer a militar. Isto aparece constantemente em África: profundas divisões, desconfiança total, um clima de falta de equipa e de cooperação. Um segundo ponto: era perfeitamente possível que os portugueses tivessem combatido em África sem terem ido para França, porque os aliados não queriam os portugueses em França. A começar pela Inglaterra.
E como é o Exército viu a escolha de comandantes incompetentes para as forças em África?
NLP É normal o não reconhecimento do militar que é imposto, não por conhecer bem o terreno, conhecer o combate, mas porque veio de cima uma ordem para o colocar. Em Moçambique são nomeados seis comandantes: três altamente competentes, três obviamente com grandes deficiências. Só que os três grandes comandantes militares nomeados nunca combateram os alemães: Pedro Massano de Amorim porque não chegou a haver operações, Garcia Rosado não chegou a desembarcar e Gomes da Costa chegou no fim da guerra. Isto afeta profundamente, porque há sempre grande identificação com o líder.
No subtítulo do livro distinguem "os que inovam, os que se adaptam e os outros". Porquê a distinção?
AT Deixe-me pegar na pergunta anterior para responder a esta. Os bons comandantes portugueses inovam. O que vai acontecer é que estas propostas sistematicamente feitas não são apoiadas pelo governo e não são aplicadas na manobra militar. Em contrapartida, quem é que vão nomear? Indivíduos com fama de disciplinadores. E isto é considerado um grande mérito. Vai-se dar aqui uma contradição muito curiosa, em que os oficiais nomeados por terem fama de disciplinadores vão indisciplinar a força no terreno. Porque aplicam uma manobra completamente errada para as circunstâncias e não têm prestígio junto dos homens. São encarados como incompetentes nomeados politicamente. Isso é uma das principais razões porque não há inovação.
Esses são os outros... e os que inovam e se adaptam?
NLP Os que inovam são os alemães, que estão permanentemente a aprender com os próprios erros. Von Lettow-Vorbeck vai sempre alterando procedimentos, diminui a cauda logística, vai utilizar as armas dos navios como artilharia de costa. Vai utilizar o reabastecimento com as forças que consegue e vai capturar as armas do inimigo.... é um inovador. Os que se adaptam são os britânicos e os sul-africanos, porque começam com grandes desastres. A União Sul-africana, em 1914, também tenta fazer uma primeira ofensiva no sudoeste africano que lhe corre muito mal e, como tal, só o volta fazer quando adapta a manobra. Os britânicos fazem a operação de Tanga com a força da Índia e dizem 'nunca mais'. Vão apostar nas forças nativas. Os belgas também tiveram problemas no Lago Niassa... todos os poderes aliados vão-se adaptar face á inovação do von Lettow-Vorbeck.
Porque é que o envolvimento português na GG em África tem sido tão pouco estudado?
NLP O teatro africano sempre foi o mais esquecido e isso é natural: é muito pouco significativo para aquilo que é a GG em termos de números, efetivos, dinheiros, interesses envolvidos. É sempre um teatro secundário em termos mundiais. Em termos portugueses interessava esquecer.
AT Não é por acaso que isto acontece. Portugal tem, de todos os beligerantes, a ideia mais deturpada do que foi a sua beligerância. Não tem comparação com a historiografia inglesa ou francesa ou alemã ou qualquer outra. Não conheço nenhum em que a deturpação seja tão grande e há razões muito fortes para isso. A primeira e mais importante é que isto se passa num clima de guerra civil. No final da guerra, estamos no regime de Sidónio Pais. Era um convicto e profundo antiguerrista e é o primeiro a dizer 'não quero discutir isto agora porque vai-nos criar problemas, nomeadamente na relação com a Inglaterra'. A Inglaterra também não está interessada, porque apoia Sidónio Pais. Há um primeiro consenso do manto de silêncio. Depois da guerra acontece algo semelhante. O Exército, nesta altura, já tem alguma unidade à volta de uma figura, Garcia Rosado. É o comandante do CEP e é um oficial prestigiado. Mas vai ser nomeado chefe do Exército até 1925 e há um acordo entre ele e os republicanos moderados, onde a principal figura do acordo é o presidente António José de Almeida: não se fala de tudo o que seja negativo em relação à primeira guerra. O que se exalta é o esforço patriótico, tudo o resto é escondido. Isto tem a ver com o conceito de História que vai prevalecer em Portugal durante todo o Estado Novo e está por trás da visão deturpada que os portugueses têm sobre a GG: os manuais continuam a dizer que participámos na guerra a pedido da Inglaterra, continuam a dizer que Sidónio Pais era um germanófilo - exatamente o contrário da realidade. Este conceito vai prevalecer na ditadura e vai-se manter por inércia depois. Hoje em dia é que começa, em larga medida pela pesquisa em arquivos estrangeiros, a aparecer uma outra visão. Mas há uma guerra muito forte à volta da memória da guerra. Qual é o conceito de História que queremos que prevaleça? É o da ditadura, que é a História-esponja, ou é o da democracia, que é a História-explicação? Neste momento há um combate muito importante entre a História da democracia - explicação, verdade - e a História-esponja, E esta domina e é dominante.
Que figuras representam cada uma dessas correntes?
AT Não vou falar em nomes, precisamente porque a História-esponja domina e é dominante e estaria a dar-lhe trunfos se fosse falar em nomes. Para mim só existe censura numa circunstância: é quando atuamos com dinheiros públicos. Quando uma instituição privada tem determinada opinião e convida determinada pessoa e não outra, pode fazê-lo. Agora quando atuamos com dinheiros públicos numa democracia, temos obrigação de isenção - isso significa que essa instituição deve traduzir as realidades sociais e as diferentes correntes de opinião na sociedade, desde que tenham minimamente consistência. Não é isso que acontece.
Que balanço fazem das comemorações do centenário da GG, iniciadas há vários anos e que permitiram publicar várias investigações?
AT Não sei o que sejam comemorações do centenário. O que existe em Portugal é uma evocação do centenário. Não é por acaso. Portugal foi dos poucos aliados que não criou uma comissão nacional à volta do centenário da GG. A França tem, Inglaterra tem. A Alemanha não, mas compreende-se porque resume muito bem a sua posição dizendo 'não temos nada para nos orgulhar'. O que Portugal tem é uma comissão do Ministério da Defesa. Não é do governo e chama-se comissão de evocação da GG. Na minha opinião, tem feito um bom trabalho, fundamentalmente isento.
Esta evocação da GG permitiu romper essa prevalência da História-esponja?
AT Permitiu apresentar uma visão que me parece bastante mais correta. Agora se vai romper, não vai. Ela é demasiado forte. Estou perfeitamente convicto que daqui a alguns anos se vai olhar para trás e dizer: 'Como foi possível que numa democracia europeia avançada continuasse a prevalecer durante tanto tempo a História-esponja?'
Isso não é fatalismo?
AT Quando eu e outros autores começámos a escrever estas coisas, tínhamos perfeita certeza de que íamos ser perseguidos, ser censurados, íamos pagar um preço e isso está a acontecer.
E...
AT Não me pergunte quem nem onde.
Mas como?
AT Vou dar um exemplo: havia muitos sítios onde era convidado a falar sobre estes assuntos da beligerância da guerra e deixei de ser. Sítios que vivem de dinheiros públicos e isso, para mim, é censura. Felizmente, como somos uma democracia, não é a 100%. Eventualmente até é cada vez menos. Mas quando é que as coisas se invertem e quando é que ela será entendida pelos portugueses como uma visão ditatorial da história e antidemocrática não sei dizer.