A escritora Leïla Slimani conta em O País dos Outros uma história que faz lembrar outra de Portugal do meio do século passado. Inspirada no desassombro da sua avó enquanto mulher, a autora percorre alguns dos momentos mais complexos da relação entre colonizados e colonizadores em Marrocos, retratando o racismo e a violência dos costumes e dos habitantes locais e dos franceses que para aí se vão instalar. A razão de ter começado a escrever esta trilogia deve-se à ausência de grandes panorâmicas literárias que permitam aos leitores conhecer certas épocas de uma história tão recente como ignorada. "Eu queria fazer um romance marroquino diferente daquilo que me tem sido possível ler", refere. "Sempre li sagas russas, sul-americanas e outras, e perguntava-me porque o meu país não tinha esse lugar nos romances", justifica..Para chegar à versão final deste romance, Leïla Slimani leu "muitos autores do sul dos Estados Unidos, como Faulkner, outros da América do Sul, como Gabriel García Márquez e Vargas Llosa, porque essa situação existe também em Marrocos. Queria escrever uma saga como as que existem nesses países, para que os leitores tivessem direito a saber mais sobre o meu país, como eu própria conheço"..Não é por acaso que pediu ajuda à sua editora portuguesa, Clara Capitão, para elaborar uma lista de livros de escritores portugueses que pensem a colonização para saber como é tratada esta questão em Portugal. Daí até se lhe perguntar qual foi a principal dificuldade em mergulhar no passado como faz neste livro é um pequeno passo que, no entanto, se assemelha ao caso da colonização português: "A maior dificuldade é contar um momento histórico com a compreensão dos dias de hoje.".Para a escritora existe uma dificuldade ao falar sobre os temas do passado: "Também não sabemos como as próximas gerações vão entender daqui a cinquenta anos os tempos que nós vivemos. O que queria contar era a complexidade desse período, sob o olhar da ambiguidade do presente. Ver o que havia de zonas cinzentas e não apenas dividir entre os bons e os maus. A literatura não deve servir para isso, mas para mostrar que cada indivíduo tem um destino próprio e que tanto se pode comportar, às vezes com nobreza, ou noutras ser cobarde." Ao não querer julgar nem os personagens nem a época sob a influência do que hoje se sabe ter sido a colonização francesa de Marrocos, a pergunta que fez foi: "O que teria eu feito se tivesse vivido o momento deste livro?".O cenário histórico de O País dos Outros já não é o atual, daí que se questione até que ponto esta década em que o livro se passa ainda permanece na memória dos leitores ou se foi apagado da memória: "Desde que cheguei a França que vejo o debate sobre a colonização reaparecer de vez em quando como se fosse um pico de febre e depois com a temperatura a normalizar. Aí, desaparece e impõe-se o silêncio. Para muitos este é um assunto do passado, o que me surpreende pois a colonização é a infância da minha mãe, uma grande parte da vida da minha avó e mesmo da minha. Não quero que se esteja sempre a debater essa parte da história, mas para nos projetarmos no futuro precisamos de a conhecer. Ou seja, é preciso mergulhar nessa época, mesmo que sem julgamentos e pedidos de desculpas, porque as consequências da colonização existem no presente. É um trauma tão profundo em qualquer plano da sociedade que ainda nos influencia, sendo que que a mestiçagem pode trazer coisas boas. Portanto, o que eu quis contar foi como o destino de França e dos países que colonizou continuam ligados, seja nas famílias ou nos amores entre as pessoas.".Leïla Slimani nasceu em Rabat [Marrocos] e foi durante anos jornalista. Deu-se a conhecer com o romance No Jardim do Ogre em 2014, inicialmente recusado por todas as editoras a que enviou o original. Dois anos depois, com Canção Doce, surpreendeu com a história e por ter recebido o Prémio Goncourt. O reconhecimento do seu papel enquanto difusora da francofonia vem com o presidente Macron a nomeá-la embaixadora da francofonia. Antes, em declarações públicas, tinha afirmado: "Eu nasci com nacionalidade francesa e sempre me senti cem por cento francesa e cem por cento marroquina. Tenho uma dupla nacionalidade e uma dupla pertença"..O País dos Outros é inspirado na história da sua avó. Nascida na Alsácia, casou-se com um soldado marroquino em 1945 e foi viver para Marrocos. Ao perguntar-se a Leïla Sliman se era impossível fugir a esta memória, a escritora explica: "A história dos meus avós tinha todos os ingredientes de uma história de amor, como se fosse um filme ou um romance. Eles eram muito diferentes fisicamente. Ela media mais 15 centímetros do que ele, era alta, loura, de olhos verdes e falava muito. Ele, cabelos negros, pele escura e não abria a boca. A grande interrogação é o que os unia?".Ao escrever o romance, Slimani não precisou de lhe dar um ar mais literário porque, diz, "a minha avó era muito exagerada e uma boa contadora de histórias; acrescentava detalhes e situações extraordinárias, o que me fazia ver nela uma personagem e não só uma avó. Tinha vivido a guerra, a colonização e sido pioneira numa quinta no interior de Marrocos. Era uma mistura de karen Blixen, dos heróis do Faroeste e de heroína de romances de amor, ou seja, sempre achei que um dia escreveria sobre ela. Dou um exemplo dos seus exageros: o meu avô tinha uma cicatriz no estômago devido a uma operação, mas ela contou-me que era o resultado de uma luta contra um tigre de Bengala na floresta negra alemã. Onde não existem sequer tigres! Sempre a achei fascinante a contar histórias e, como uma boa descendente, a minha imaginação não tem limites"..A diferença entre os avós está presente no romance também pelo aspeto da mestiçagem, designadamente num capítulo onde a família é apanhada entre uma manifestação de marroquinos que lutam pela independência e se confronta com a rudeza de um polícia francês. Slimani fez questão de colocar esses dilemas na narrativa, como explica: "É difícil perceber a identidade do mestiço, porque depende de quem a olha. Tanto se pode classificar a pessoa como branca ou negra, mas nunca deixa de ser um estrangeiro. Basta ver o exemplo de Barack Obama, que é mestiço e diz-se dele que é o primeiro presidente negro dos EUA, contudo há quem o olhe para ele mais como branco, porque tudo depende do olhar do outro.".A investigação para este romance aconteceu tanto em função da recordação das histórias da avó como de alguma procura: "Li muitos livros de História, tentei perceber os pontos de vista dos historiadores, mas o que eu queria era fazer renascer as histórias que ouvira na minha infância e descrever as sensações; as dos aromas, as do calor e as do vento, a das cores, porque também queria que fosse um livro sensual. Marrocos é muito sensual e queria mostrar essa sensualidade face aos que vinham da Europa e desconheciam tudo isso. As sensações eram fundamentais para mim, muitas vezes mais interessantes do que a investigação.".Um dos ângulos que quis refletir em O País dos Outros foi a memória da II Guerra Mundial, onde raramente as mulheres são observadas como tendo algum papel fundamental. Quando se questiona sobre o que aconteceu a essa geração de mulheres para ser tão esquecida, Leïla Slimani responde: "É por isso que o subtítulo do livro é A Guerra, A Guerra, A Guerra, recordando as primeiras palavras da personagem Scarlett O"Hara de E tudo o Vento Levou. Parece que a guerra é uma coisa dos homens, mas o livro mostra exatamente o contrário. Aliás, eu fui muito marcada por um livro de Svetlana Alexievich, A Guerra Não Tem Um Rosto de Mulher, que é um título é irónico porque a verdade é exatamente a contrária. Não é preciso envergar um uniforme e ter uma arma para fazer a guerra, as mulheres viveram sempre as guerras, nem que fosse nas suas casas com a violência conjugal ou as violações. É isso que quero mostrar no livro. Podem não ter sido heroínas como acontece com os homens na literatura e nos filmes mas têm uma grande história em vez de um papel secundário, principalmente porque é nelas que os homens se vão vingar das humilhações vividas nos conflitos. São o recetáculo de todas as humilhações masculinas, do racismo, da condescendência, da violência, que muitas vezes acabam por transmitir aos filhos. Ou seja, quis mostrar que não é assim e que a guerra tem um rosto de mulher..Entre as personagens do romance está Aïcha, que começa a ganhar direito ao seu protagonismo - e tê-lo-á maior no segundo volume da trilogia -, ao dar um ponto de vista fundamental para se perceber todas as contradições de um casamento. Slimani não nega que tenha um cariz autobiográfico da sua mãe: "Sim, ela é inspirada na minha mãe, que me contava recordações muito sombrias e duras da sua infância. Sombrias, até porque na quinta onde viviam não havia eletricidade na maior parte do tempo e ela descrevia-me o que era a verdadeira escuridão do campo. Para uma criança, é assustador e até faz parecer o negro da noite como palpável, ainda por cima ouvia a voz dos animais à volta. Através dela mostro como era uma época de muito racismo, em que as pessoas faziam acusações muito violentas uns aos outros, e a minha mãe sentia-se humilhada ao assistir à humilhação dos seus pais, o que era muito cruel para uma criança.".Uma personagem que serve também para colocar a questão religiosa com mais clareza do que existe entre o casal por, afirma, "ter a ver com uma realidade estranha nas mulheres da minha família, o de serem todas obcecadas pela Virgem Maria e pela figura de Jesus Cristo." Uma entre as várias emoções íntimas refletidas pelos personagens que marcam o romance. Para a autora, não foi difícil dar-lhes a todos uma dose de emoções: "Não, mesmo que nem todos os dias sejam fáceis para quem escreve. Quando se está em frente ao computador, umas vezes estamos, outras não, dispostos a viver o momento do personagem. Eu conheço bem as personagens, elas falam comigo e dependemos delas, mas nem sempre somos capazes de as interpretar como elas que querem." Por isso, considera, que quem manda no livro enquanto escreve tanto são as personagens, como a autora ou os leitores: "São todos esses, no entanto o leitor é essencial para o livro, porque como dizia Borges, um bom leitor é melhor do que um bom escritor. Pode-se escrever um grande livro, mas se não o souberem ler não terá vida. É preciso abandonarmo-nos no momento da escrita, não pensar em nada senão no livro e desejar ir o mais longe possível.".O segundo volume da trilogia decorrerá entre os anos 1970 e 1980, o terceiro entre 2005 e 2015. Pergunta-se se o último será o mais autobiográfico: "Creio que sim, pelo menos será o que vai estar mais próximo de mim. Agora, que estou quase no fim do segundo, preocupa-me entender a geração dos meus pais no fim dos anos 80, a época da contracultura e de muita esperança no futuro, mas também o tempo da ditadura de Hassan II, da emigração e da diáspora, da afirmação do islão radical e também de uma outra mestiçagem.".A escrita deste livro alterou a opinião de Leïla Slimani sobre os seus antepassados e o tempo da história em que viveram. Principalmente, afirma, permitiu compreender e clarificar muitas situações: "Também a perdoar e ser um pouco mais indulgente com as pessoas, afinal a literatura faz com que se descubra nos outros os mesmos defeitos que nós temos e esse julgamento que se faz com o livro acaba por ser um reencontro." Não esquece uma herança: "Quis saber porque a minha avó era assim, quanto mais não seja porque o meu feminismo vem dela.".A família é para Leïla Slimani o território da sua escrita, tanto que confirma ser o tema principal: "É o primeiro espaço de dominação e necessita de muitas concessões. O que não é fácil, porque se a solidão é dolorosa viver com os outros também é. Os meus livros falam muito dessa dificuldade de encontrar um equilíbrio e, como eu gosto muito da minha solidão, é difícil prescindir dessa primeira liberdade.".Em O Jardim do Ogre estava longe de uma mulher livre e feliz. Quando se questiona se hoje voltaria a esse tema, a autora responde que sim: "É um livro que se preocupa com a pulsão e isso interessa-me bastante, tal como o estado selvagem. Eu ponho sempre a pergunta: o que resta de selvagem em nós depois de crescermos, envelhecermos e de sermos domesticados e obedientes no aceitar de muitas coisas? Tenho a nostalgia da infância, em que se é muito selvagem, além de que me interessa muito a sexualidade e o corpo, porque é através deles que talvez se possa explorar o que nos resta de animal em cada um.".Quanto ao segundo livro, Canção Doce, Slimani continua sem perceber porque recebeu o Goncourt: "Não sei bem qual a razão e cada um encontrará uma resposta diferente. Não sei porque me o deram, só posso dizer que todos os sucessos ou fracassos são injustos. Se formos analisar as razões na literatura, encontramos livros muito bons que não foram compreendidos na sua época e grandes sucessos que foram logo esquecidos." No caso da escritora, o sucesso é visível, tanto que os leitores fazem questão de a parar, por exemplo, no supermercado para falar sobre os seus livros. Pergunta-se se debater o islão ou o feminismo enquanto está a fazer compras é um preço muito caro pela fama: "É verdade que me param muito e às vezes é bizarro que falem desses temas quando estou com os meus filhos. Prefiro ficar surpreendida com o estatuto que os franceses dão aos escritores, pois na maioria dos outros países isso não acontece. Os franceses gostam da sua literatura e dos seus autores.".Leïla Slimani.Editora Alfaguara.344 páginas.Napoleão Vem Aí é o título do mais recente romance de Domingos Amaral, um dos autores portugueses de maior sucesso na última década. Depois da trilogia Assim Nasceu Portugal, apresenta o que poderá ser outra série, pois a última palavra deste livro é "Continua...".Tudo se passa durante a primeira invasão francesa e tem o picante de uma crise num casamento seguida de suicídio. A partir daí o cenário histórico bem retratado vai-se impondo, com o anúncio de que o imperador Napoleão vem visitar o país que as suas tropas invadiram, roubaram e violentaram de todas as forma possíveis nesta e nas invasões seguintes, deixando a marca mais infame de uma presença estrangeira na nossa História..O casal em causa tem muito daquele tempo de após a fuga do regente D. João VI para o Brasil, pois uma apoia a França e o outro a Inglaterra, mas é a traição da personagem feminina que ocupa um lugar primeiro na narrativa, pois após a derrota do exército napoleónico na Batalha do Vimeiro, o marido sabe que ela se preparava para fugir para França. O refazer dessa traição proporciona várias reconstituições dos desmandos que aconteceram durante a presença desses exércitos em Portugal, trazendo ao palco personagens tão destituídas de moral como foi o general Loison, o derrotado Junot, entre muitos outros perfis e factos vividos nessa época pelos portugueses, entregues a si próprios após a partida da corte para o outro lado do Atlântico..Domingos Amaral.Editora Casa das Letras.335 páginas