Gangues juvenis. Prevenção avança devagar, mas PJ regista queda para metade de homicídios

Quinze meses depois de criada a Comissão coordenada pelo ministério da Administração Interna para responder à escalada de violência de gangues juvenis com medidas preventivas, muito pouco ainda avançou do plano. O ministério da Justiça, por exemplo, ainda está a criar um grupo de trabalho para executar a proposta que já saiu da Comissão há nove meses. A PJ, por seu turno, intensificou as suas operações desde 2021 e o número de crimes mais violentos, homicídios tentados principalmente, passou de 16 para 8 na Grande Lisboa no primeiro semestre.
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Não há uma relação causa efeito, ainda, entre as medidas preventivas que foram propostas pela Comissão de Análise Integrada da Delinquência Juvenil e Criminalidade Violenta (CAIDJCV) a 31 de janeiro passado e o recuo para metade do número de homicídios, a maior parte tentados, no primeiro semestre deste ano.

Segundo os dados provisórios da Polícia Judiciária (PJ), a sua Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo (DLVT), onde se tem concentrado, de todo o país, a maior parte da ação criminosa dos chamados gangues juvenis, registou até ao final de junho passado oito crimes de homicídio (todos tentados), enquanto no mesmo período do ano passado tinham sido 16 (15 tentados e um consumado).

O que não alterou foi a proporção destes crimes contra a vida praticados por jovens delinquentes face ao total de homicídios registados na área da Grande Lisboa neste mesmo período de tempo: 38 (29 tentados e 9 consumados) em 2023 e 75 (59 tentados e 16 consumados) em 2022, em ambos os anos com 21% em contexto grupal e juvenil.

Nos casos de agressões violentas, tipificadas como "ofensas à integridade física grave ou qualificada", os dados revelados ao DN pela PJ indicam um agravamento na proporção do primeiro semestre deste ano face ao total de 2022: dois casos num total de nove (22%) nos primeiros seis meses deste ano; três em 30 (10%) nos 12 meses de 2023.

Quando foi dado o alerta oficial, em 2022, na reunião do Conselho Superior de Segurança Interna, na apresentação do Relatório Anual da criminalidade de 2021, a escalada sem precedentes, não só em número, como no grau de violência dos gangues juvenis estava instalada.

A PJ já estava no terreno e declarara "guerra" a estes bandos - 153 detidos e mais de 400 buscas só em 2021. Mas o alarme público criado, com o seu ponto alto quando foi assassinado um jovem no Metro das Laranjeiras num ato de vingança de gangues rivais - exigia uma estratégia de grande dimensão.

O ministério da Administração Interna (MAI), nesta altura já tutelado por José Luís Carneiro, preparou, pela primeira vez, um plano interministerial e interdisciplinar, ouvindo dezenas de especialistas e entidades para procurar respostas e ir ao fundo do problema, identificando as causas, as motivações e perceber o que estava a funcionar e a falhar na resposta da sociedade e do Estado.

O recrudescimento começou a abrandar nos últimos três meses de 2022 e em Março deste ano o diretor da DLVT da PJ, João Oliveira, já tinha revelado no podcast Soberania (uma parceria do DN com o Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo) que esta criminalidade estava a descer, depois de no ano passado 2022 ter crescido mais do dobro (de 11 em 2021 para 24).

Também era notória a subida da proporção de homicídios cometidos por jovens, face ao total destes crimes na área da Grande Lisboa. Enquanto em 2019, 2020 e 2021 era de 6,6, 6,7 e 8,2%, respetivamente, e em 2022 passou para 18%.

Mas se à ação repressiva da PJ, principalmente com as detenções (que também funcionam como dissuasão) que tiraram do terreno boa parte destes jovens, se pode atribuir a causa da diminuição deste fenómeno de violência, já o mesmo não se pode ainda dizer das medidas preventivas propostas pela Comissão (ver balanço no final do texto).

O empenho da secretária de Estado, Isabel Oneto - a quem o Ministro delegou esta espinhosa tarefa - ainda não estão a ter efeito.

De todos os ministérios envolvidos, o da Saúde (MS), o do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSS), o da Justiça (MJ), o dos Assuntos Parlamentares (MAAP) e o MAI, é este último que vai avançando mais, embora devagar.

Das nove recomendações que foram feitas em janeiro passado (seis meses depois da Comissão ter sido criada), nenhuma está plenamente executada.

No ministério da Justiça, por exemplo, que tinha em mãos uma das medidas mais importantes de prevenção, Catarina Sarmento e Castro ainda está a concluir "as diligências para a criação do grupo de trabalho para a revisão da Lei Tutelar Educativa, tomando em linha de conta as recomendações" da CAIDJCV. Recorde-se que estas indicações foram aprovadas também pelo MJ em janeiro.

A intervenção precoce entre os jovens de risco é uma das maiores preocupações dos especialistas.

Numa entrevista ao DN, em junho de 2022, a socióloga Maria João Leote, que estuda estes fenómenos há mais de 30 anos e também integra a Comissão, já tinha advertido que há casos de jovens "que entram no (sistema) tutelar educativo muito tarde, porque por vezes aos primeiros sinais não se atua ou então ficam em entidades que pensam que vão resolver o problema, quando já estamos perante factos qualificados pela lei penal como crime e a competência não é sua".

Descrevia que, na sua experiência de investigadora verificava que "a avaliação do jovem exigida pela lei tutelar educativa, e da responsabilidade da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais para suportar a tomada de decisão, tende a ser demorada, tantas vezes um ou dois anos, até mais" e que esta demora resultava numa constatação de impunidade.

"Implica que o jovem pratica um ilícito, tem um segundo e um terceiro, vai tendo gratificação nas práticas e vai percebendo que não vai acontecendo nada. É o que encontramos sobretudo nos casos mais graves, com vários inquéritos tutelares educativos que se sucedem", afiançou.

Questionados pelo DN sobre o ponto de situação das medidas da sua competência, o MS e o MTSS não responderam.

O gabinete da MAAP não respondeu exatamente ao perguntado, mas salientou que "a 9ª Geração do Programa Escolhas para o período de 2023 a 2026" vai ser alvo de "uma articulação interinstitucional reforçada, tanto a nível central como local, estando prevista uma maior coordenação e cooperação entre diferentes áreas governativas e o estabelecimento de mais parcerias a nível local".

Este programa, sublinha o porta-voz de Ana Catarina Mendes, "já beneficiou 460 mil crianças e jovens, através de 800 projetos em todo o País

Da parte do MAI, as medidas elencadas estão a começar a arrancar (ver balanço no final do texto), designadamente no que diz respeito à "identificação dos fatores de risco".

Foi já criada uma "ficha de recolha de dados a utilizar pela GNR, PSP , PJ, Serviços do Ministério Público e Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, adaptada aos processos tutelares educativos, que a partir de agora viabilizará uma análise mais compreensiva da criminalidade violenta registada".

As polícias também já "receberam orientações para procederem à avaliação da situação de perigo em que se possam encontrar crianças e jovens, expostas a situações de violência que se registem no desporto não profissional e sinalizar a situação à CPCJ e ao MP", medida que será reforçada pela "revisão a lei do policiamento desportivo, permitindo reforçar e melhorar a identificação e sistematização de incidentes registados", que está em curso.

Fora das recomendações ficaram ações específicas de prevenção nas Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS), nas quais as forças de segurança têm referenciados a maioria dos grupos juvenis criminosos (ver caracterização no final do texto).

Questionado sobre se estava alguma medida prevista, numa altura em que está por dias a apresentação do 2º relatório da Comissão, fonte oficial do MAI contrapõe essa análise: "As Forças de Segurança adequam, diariamente, o policiamento necessário à proteção de pessoas e bens e à salvaguarda da ordem pública em função do grau de risco. Essa caracterização é mutável, de acordo com as dinâmicas próprias e cada vez mais intensas das sociedades modernas, e projeta-se a vários níveis: no desporto, na diversão noturna, em determinadas localidades, impondo sempre uma avaliação atualizada para adequar os meios e recursos necessários. Importa sublinhar que as situações de violência e de delinquência juvenil ocorrem também de forma transversal na sociedade, não sendo uma característica específica de determinados territórios, grupos populacionais definidos pela cor da pele, ascendência, língua, território de origem, cultura, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social, orientação sexual ou outro fator", assinala o porta-voz.

O "estado da arte" feito pela Comissão

- Nos últimos 13 anos, existem diversos indicadores que apontam no sentido de um aumento da intensidade da violência;

- Maior utilização de armas de fogo e armas brancas;

- Aumento de crimes violentos praticados no contexto da atividade grupal/gangue (roubos e homicídios), designadamente em algumas zonas urbanas;

- Situações envolvendo um número mais elevado de autores- grupos vão ganhando dimensão, atuando, designadamente no período diurno e em locais diferenciados;

- Maior precocidade no contexto dos processos tutelares educativos [PTE];

- Surgimento de situações de violência extrema e "gratuita";

- Situações em algumas zonas específicas de grande "reatividade" à intervenção policial;

- Segundo dados da PJ relativos à Área Metropolitana de Lisboa verifica-se uma "pulverização", em algumas zonas, de grupos juvenis que se dedicam à prática de delitos, embora sem grande nível de organização/estruturação, no entanto possuem efeito mimético junto das camadas mais jovens- novos "recrutas";

- Conotação com as denominadas "Zonas Urbanas Sensíveis" (ZUS) e/ou com zonas periféricas da AML;

- Os grupos juvenis que cometem estes crimes estão essencialmente localizados em Lisboa, Porto e Setúbal, embora em Lisboa tenha contornos mais complicados por via do envolvimento em homicídios e roubos;

- Dois em cada três jovens referenciados à justiça juvenil sofreu abuso(s), maus-tratos e/ou negligência grave;

- Entre os jovens que cometeram factos mais graves no âmbito do PTE 70% tinha processo de promoção e proteção anterior e mais de 60% vinha de medida de acolhimento residencial no contexto desse Sistema;

- Normas culturais predominantes, pobreza, isolamento social e fatores como abuso de álcool, consumo de drogas ilícitas e acesso a armas de fogo são fatores de risco de mais de um tipo de violência;

Execução das nove recomendações

1- Alteração à Lei Tutelar Educativa e à Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Risco para criar a figura do "Gestor(a) do Caso", um técnico, integrado numa equipa multidisciplinar que possa efetuar um acompanhamento frequente, regular da criança/jovem, potenciando a integração entre a intervenção efetuada em sede do Sistema de Promoção e Proteção e no âmbito do Processo Tutelar Educativo, "criando ao mesmo tempo uma relação que permita trabalhar a confiança, os limites e a aquisição de competências com a criança/jovem e que potencie igualmente o necessário trabalho a realizar com a família de origem/rede social de suporte".

Situação: O ministério da Justiça está a criar um grupo de trabalho para a revisão

2- Assegurar a instauração de processo de promoção e proteção judicial nos processos tutelares cíveis (regulação das responsabilidades parentais) "quando houver situações de incuprimento e/ou elevada conflitualidade parental que configurem perigo para a criança;

Situação: Faz parte da revisão das leis anteriores

3- Atualizar as estratégias de recolha de informação associadas à identificação de fatores de risco/perigo adotadas pelos profissionais dos diferentes setores e entidades que se constituem como interfaces relevantes na prevenção/resposta a situações de violência;

Situação: Medida especialmente a cargo do ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que não respondeu ao DN. No MAI a "ficha de registo para diagnóstico de segurança detalhado" está feita e a ser utilizada na "atualização dos diagnósticos locais de segurança".

4- Assegurar a intervenção das entidades da área da saúde na promoção do acompanhamento das gestantes com situações de gravidez perturbada por histórias de violência, no âmbito das Equipas para a Prevenção da Violência em Adultos, que avaliam sobre a necessidade de sinalizar as crianças, após o seu nascimento.

Situação: Ministério da Saúde não respondeu ao DN

5- Obrigatoriedade de as Forças de Segurança e demais entidades com competência em matéria de infância e juventude procederem à avaliação da situação de perigo em que se possam encontrar crianças e jovens expostas a situações de violência que no desporto.

Situação: MAI diz que já foram dadas "orientações" às polícias. Ainda não ha resultados.

6- Alargamento do Projeto Escolhas nas Áreas Metropolitanas.

Situação: O gabinete da ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares (MAAP), responsável por esta área, informa que "o Governo aprovou, em 29 de junho, a 9.ª Geração do «Programa Escolhas» para o período de 2023 a 2026", mas não refere se prevê este alargamento. Contudo, promete Ana Catarina Mendes, vai ser alvo de "uma articulação interinstitucional reforçada, tanto a nível central como local, estando prevista uma maior coordenação e cooperação entre diferentes áreas governativas e o estabelecimento de mais parcerias a nível local".

7- Estudo sobre os impactos dos órgãos de comunicação social na prevenção/normalização da violência.

Situação: Segundo o MAI está em "fase de planeamento"

8- Estudo sobre os impactos das redes sociais na prevenção/normalização da violência

Situação: Segundo o MAI está em "fase de planeamento"

9- Articulação das intervenções com as medidas e modelo previsto no Plano Nacional da Garantia para a Infância, Estratégia Nacional para os Direitos da Criança e o II Plano Nacional para a Juventude.

Situação: O gabinete da MAAP diz que esta recomendação "está a ser trabalhada"

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