"A obrigação do Estado é impedir que jovens fiquem com os percursos de vida marcados para sempre"

A secretária de Estado da Administração Interna, Isabel Oneto, recusa uma abordagem securitária ao fenómento da criminalidade juvenil. Coordena a comissão criada pelo Governo para procurar soluções e junta vários peritos na Conferência de Segurança Urbana, que começa nesta terça-feira em Coimbra.

Começa hoje, em Coimbra, a Conferência da Segurança Urbana, que junta ministros, ex-ministros, académicos e autarcas. O que espera deste encontro?

Esta será a segunda edição da conferência - fizemos a primeira já há dois anos e meio - e o objetivo é discutir com diversos atores, particularmente com as autarquias, as políticas públicas de segurança. Isto para que haja maior integração entre aquilo que é a ação do Ministério da Administração Interna e as autarquias.

A importância das autarquias no contexto em que vivemos, de uma aceleração do fenómeno de urbanização, torna-se cada vez mais importante. Temos cada vez mais pessoas a viver em centros urbanos e a gestão do espaço público assume cada vez mais importância nas questões da segurança.

Temos de articular o nosso trabalho com as autarquias, por forma a que os resultados em termos de segurança sejam maiores - em particular no espaço público. Esta interação é absolutamente fundamental.

Daí ser também muito importante ouvir quem estuda estas matérias, os investigadores e professores que estudam os fenómenos há algum tempo, e nesta articulação com as autarquias fazer sessões plenárias em que falamos do contexto geral da segurança.

Depois, em sessões paralelas, procurar elencar um conjunto de situações que nos preocupam e aprofundar aquilo que consideramos ser o trabalho que temos pela frente em termos de articulação.

Não é por acaso que temos as polícias municipais e os conselhos municipais de segurança, porque precisamos de fazer uma melhor articulação entre as situações vividas nos municípios para dar resposta a estes problemas.

Que falhas identificou nessa articulação?

Temos situações em que já temos uma articulação muito boa e outras em que é menos boa, acaba por depender também do perfil de quem está no terreno. O que queremos é intensificar essas relações.

Sabemos, por exemplo, que zonas com espaços vazios com grafites, zonas que não são vividas pela comunidade e que propiciam encontros para consumo de estupefacientes, etc., passam a ser áreas dominadas por um grupo.

Consequentemente, as pessoas não só não usam esse espaço, como cada vez mais se vão desviando dele. É apenas um exemplo de como a gestão do espaço público é relevante para as questões de segurança.

Cada vez mais o patamar de Administração Interna e de Administração Local têm de se relacionar para eliminar fatores criminosos urbanísticos e para adotar medidas preventivas comuns que podem ser articuladas em conjunto. Um dos painéis que temos tem a ver com a delinquência juvenil, temos outro que tem a ver com a violência no desporto, que é algo que nos preocupa.

Costumo dizer que não é possível que continuemos a ter o número de policiamento que temos de jogos não profissionais. Ou seja, estas crianças, em vez de estarem na prática de um desporto em sã convivência com os seus colegas, estão em conflito e aprendem a estar em conflito.

Portanto, a ideia de o desporto contribuir para a aprendizagem da disputa saudável, acaba por se transformar para alguns jovens na lei do mais forte.

A criação da Comissão de Análise Integrada da Delinquência Juvenil e Criminalidade Violenta foi a resposta do Governo ao aumento dos crimes cometidos por grupos juvenis. Nestes cerca de quatro meses de trabalho, que linhas de ação já conseguiram identificar?

Já temos linhas orientadoras relativamente aquilo que têm vindo a ser os trabalhos da comissão. Têm vindo a ser apresentados estudos setoriais de cada área de intervenção e já vamos tendo linhas de ação a ser definidas. É nessas que estamos a trabalhar, no sentido de procurar densificar e em breve serão apresentadas ao Governo. A própria comissão, enquanto faz reuniões quinzenais, está a contribuir para a redação final das propostas que serão apresentadas.

Tem coordenado as reuniões. Pode partilhar um pouco daquilo que tem ouvido?

Desde as questões associadas à saúde mental, à questão dos menores, à questão do momento em que devem ser detetados os sinais nos menores. Começamos a verificar, por exemplo, que cada vez é maior a necessidade de olhar mais cedo para essas questões. Também para a questão da articulação com os vários serviços relacionados com a tutela, desde a saúde, à escola.

Ou seja, há um conjunto de situações que se vão desenhando na comissão e que são importantes. Até mesmo pela participação das forças que estão presentes na comissão, o objetivo era precisamente delinear essas respostas, à medida que vamos identificando as situações. Mas tem sido um pouco de tudo, até pela natureza da comissão.

A violência dos crimes cometidos pelos mais novos também se agravou...

A comissão foi constituída quando nos apercebemos que havia uma maior severidade da prática dos crimes. É preciso estudar qual é a razão para isto, se está ou não ligado à pandemia, se foi agravado pela pandemia, etc.

Os números continuam a baixar, há uma pequena variação, mas a questão é que além do aumento da criminalidade juvenil, há também maior tendência para maior severidade e é preciso estudar isso.

Isto acontece com miúdos cada vez mais novos?

Sim, mas mesmo nos adultos reparámos que há maior severidade dos crimes e foi esse o objetivo da comissão. Nos menores estamos a estudar o fenómeno em si e aí não me posso antecipar às conclusões da comissão.

Tendo em conta a sua experiência na área da segurança, o que é que a surpreendeu mais?

Temos conhecimento de que há ciclos ao longo do tempo e que há determinadas situações e contextos em que ocorrem essas situações. Aquilo que importa perceber é se são situações que tendem a perdurar no tempo.

Ou seja, se são situações em que os jovens ficam com o percurso de vida invariavelmente marcado e ficarão ligados ao sistema de justiça o resto da vida; ou se são situações pontuais e depois regressam ao seu projeto de vida livre.

Para mim, essas são as questões mais relevantes, porque acho que a obrigação do Estado é impedir que estes jovens fiquem com os percursos de vida marcados para sempre.

Talvez sejam referenciados um bocadinho antes dos 12 anos, dos 12 aos 16 entram para o sistema tutelar e a partir dos 16 entram no sistema prisional.

Portanto, será um percurso marcado por contactos com a justiça sem necessidade. Para mim, essa é uma das minhas maiores preocupações.

É isso que me leva a crer que temos de nos debruçar sobre estas questões para impedir a captura destes jovens pelos gangues, para que eles possam fazer o seu percurso de vida normal. Que haja um jovem ou outro que, pontualmente, se encontre numa situação de comportamento desviante, mas que se consiga recuperar. O que percecionamos é que muitos destes jovens, depois, não conseguem sair deste sistema. Ficam marcados para a vida e não conseguem seguir o seu percurso. Isto é que acho fundamental perceber.

Como é que se soluciona uma coisa destas?

Esse é o trabalho da comissão, procurar respostas. Temos de ter uma rede suficientemente integrada e alargada para apanhar o maior número de situações de jovens potencialmente em risco, precisamente para evitar que eles façam este percurso.

Claro que não vamos conseguir detetar todos os casos, apanharemos muitas situações e evitaremos muitas outras, mas é impossível detetar tudo. Obviamente, quanto maior o número, melhor.

A socióloga Maria João Leote, que também integra a Comissão, disse-nos numa entrevista que as nossas leis até são boas, mas há muita demora na resposta do sistema de Justiça e há jovens que entram no sistema tutelar tarde de mais, criando um sentimento de impunidade. Isso não contraria um pouco o que acaba de dizer?

Não, por isso é que comecei por dizer que já percebemos que temos de começar a deteção dos casos mais cedo, até para nos permitir alargar a rede e procurar a integração que pretendemos.

Normalmente, os polícias têm o primeiro contacto com esses jovens. Estão também preparados para fazer essa sinalização?

Não são necessariamente os que têm o primeiro contacto, a saúde pode ter sinais mais cedo ou a educação. Quando chega à polícia é porque já houve outros sinais antes e são precisamente esses sinais que procuramos identificar.

Neste momento, já têm ideia da evolução do fenómeno? Em termos de registos e estatísticas não há uma definição homogénea....

Não, o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) define de forma homogénea, ou seja, delinquência juvenil é a prática de crimes por jovens entre os 12 anos e os 16 anos.

Mas temos tido análises feitas, mesmo em sede de comissão, relativamente à violência em grupo. Aqui tentamos perceber, acima de tudo, de que forma e o porquê de os jovens quererem uma identificação com o seu grupo e não terem a identificação com a família. Ou seja, terem uma relação afetiva com o grupo, mas depois falta-lhes o outro vínculo.

Em 2021, a Polícia Judiciária tinha referenciados pelo menos 30 gangues juvenis só na área da Grande Lisboa. Num balanço feito no início deste ano indicou que tinha detido 153 jovens e feito mais de 400 buscas relacionadas com este tipo de criminalidade. Além da PJ, que apresentou estes dados sistematizados , que resultados apresentaram as outras forças e entidades no terreno?

Nós partimos desses dados e dos dados do RASI de 2021. Aquilo que estamos a tentar perceber é porque é que existe este fenómeno, como é que o detetamos precocemente, como é que chegaram aqui.

A estatística dá-nos aumento ou diminuição, mas não nos explica o fenómeno. A comissão foi constituída porque precisamos de encontrar a explicação para o fenómeno.

Sendo um fenómeno que já está identificado há tanto tempo e que teve este boom em 2021, porque é que estamos a terminar 2022 e ainda não foram identificadas medidas concretas para colocar no terreno?

Não disse que não foram identificadas medidas concretas. Inclusivamente, disse que já estamos a estudar algumas recomendações. Há várias entidades envolvidas, há várias respostas e não há uma única entidade que chegue à solução.

Isto é um trabalho em rede e isto é um fenómeno que existe, que estamos a tentar perceber as suas causas para tentarmos minimizá-lo ao máximo. O fenómeno já se conhece há muito, é verdade, mas os estudos que existem são parcelares.

O objetivo é olhar para todos os estudos. Temos um conjunto de entidades para ouvir, precisamente para termos uma visão o mais ampla possível do fenómeno para podermos intervir.

A visão securitária é o último recurso, embora também possa ter um papel preventivo. Ações como a Escola Segura, por exemplo, e as sessões que fazem com as crianças são muito preventivas. A visão securitária também não é meramente repressiva.

Agora, não é exclusiva, não podemos dizer que é um problema que os polícias têm de resolver. Temos de nos juntar para perceber quais são os campos em que podemos detetar precocemente esta questão.

Acha que seria importante haver um reforço de policiamento de proximidade, além da Escola Segura? Foi algo que foi diminuindo com o tempo e os moradores das zonas mais sensíveis queixam-se que a polícia só lá vai para fazer rusgas. Acha que também é um ponto onde pode haver novo reforço?

Creio que pontualmente pode ter ocorrido essa situação, mas não é generalizada. Por outro lado, é evidente que a proximidade continua - quer no policiamento de proximidade quer na visibilidade, duas questões distintas, mas complementares.

A questão que se coloca, essencialmente, é que o trabalho das forças de segurança não pode ser visto em termos de prevenção como um trabalho isolado. Até podemos dizer que em determinada zona há maior conflitualidade, mas temos de perceber porquê.

A tendência é colocar mais polícia e claro que a conflitualidade latente tem de ser resolvida, mas não podemos olhar do ponto de vista meramente de resposta das forças, temos de perceber o que se está a passar ali.

Este fenómeno da delinquência juvenil tem sido desvalorizado do ponto de vista político, talvez por serem números diminutos face à criminalidade geral?

Felizmente, os nossos índices são baixos e isso não pode deixar de ser relevado. Agora, o que levou à criação desta comissão foi a questão da severidade e procuramos entender o fenómeno.

Não posso dizer que tenha sido desvalorizado, mas que houve um alerta que nos levou a agir de imediato, isso houve. E criámos imediatamente a comissão. Não há propriamente uma desvalorização, creio eu.

Penso também que, à medida que vamos evoluindo em termos de sociedade, vamos olhando de forma diferente para os fenómenos.

Ou seja, atualmente o bullying não é tolerado porque se percebe as suas consequências, mas há 20 anos atrás nem sequer se qualificava o comportamento. A própria evolução leva-nos a olhar para os fenómenos de outra maneira.

Há alguma medida que gostava que já estivesse a ser executada?

Não me vou pronunciar sobre isso porque não seria correto para com a comissão.

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