PJ regista subida de homicídios em Lisboa e violência de gangues juvenis está a escalar

Dados registados e analisados pela PJ confirmam neste ano a tendência crescente da violência entre bandos juvenis, fenómeno que já levou o Governo a criar uma Comissão especial e a dar-lhe prioridade na nova Estratégia Integrada para a Segurança Urbana.

Em todo o ano de 2019 a Polícia Judiciária (PJ) registou um total de sete crimes de homicídio - um consumado e seis tentados - praticados por gangues juvenis no distrito de Lisboa. Só no primeiro semestre deste ano esse número subiu para 16 (entre 15 tentados e um consumado), revelando uma subida exponencial de 130% apenas em metade do ano.

A confirmação da tendência crescente da violência entre bandos juvenis é um dos focos de preocupação no distrito, onde o total de homicídios está também a escalar, quando comparado com o período pré-covid. Em 2019, registaram-se 106 crimes de homicídio - 81 consumados e 25 tentativas. Este ano, de janeiro ao final de junho a PJ registou já 75, o que equivale a 70% do total de homicídios praticados em 2019.

Desde esse ano pré-covid, o primeiro semestre de 2022 foi aquele em que se registaram mais homicídios no distrito de Lisboa - sendo que, para a polícia, a análise relevante incide na prática desses crimes violentos, independentemente do desfecho (tentado ou consumado).

Numa conferência em que políticos, autarcas, académicos e polícias debateram a segurança urbana, em Coimbra, coube ao diretor nacional adjunto da Polícia Judiciária (PJ), o veterano Carlos Farinha, oferecer uma boa dose de realidade, sem politicamente corretos, de forma sistematizada, crua e operacional, sobre o que está acontecer em relação à criminalidade violenta no distrito de Lisboa.

Trouxe estes dados analisados e números sobre um fenómeno que está a preocupar também o Governo. Há cerca de quatro meses, na sequência do alerta dado pelo Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), revelando uma subida da criminalidade praticada por jovens e grupal, , o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro criou a Comissão de Análise Integrada da Delinquência Juvenil e da Criminalidade Violenta, que junta peritos, polícias, representantes da Saúde, Educação e Segurança Social, sob coordenação da sua secretária de Estado Isabel Oneto.

Em contracorrente a uma ligeira subida da criminalidade geral (+0,9%) e a uma descida consistente da violenta e grave (-6,9%), a criminalidade grupal e a juvenil teve em 2021 um aumento: 4 997 casos (+7,7%) e 1120 casos (+ 7,3%), respetivamente.

Na criminalidade grupal - "crimes cometidos por três ou mais suspeitos, independentemente do tipo de crime, das especificidades que possam existir no grupo, ou do nível de participação de cada interveniente" - tratou-se da segunda maior subida da década (em 2019 tinha aumentado 15,9%), depois de nove anos em sentido descendente.

Na delinquência juvenil - menores entre os 12 e os 16 anos - a tendência verificada em 2021 mostra um agravamento no número de crimes violentos a envolver suspeitos dentro destas faixas etárias.

Números podem pecar por defeito

"Desde 2019 que vinha sendo observado um aumento, ainda que ténue mas progressivo, das intervenções grupais na prática de homicídios. No entanto, no 1.º semestre de 2022 é notório o surgimento de um "boom" nas práticas criminosas de natureza homicida", afirmou Carlos Farinha na sua intervenção na passada quarta-feira.

Os crimes de homicídios consumados e tentados que envolveram bandos de jovens e tentados foram subindo: de sete em 2019, para nove em 2020, 11 em 2021 e 16 este ano (até junho), mostrando que o período da pandemia não mitigou a violência e que o recrudescimento acentuou-se na pós-pandemia.

Carlos Farinha explicou que para esta análise "foram extraídos todos os dados relativos à prática de crimes especialmente violentos, em particular, os crimes de homicídio, na forma tentada e consumada, ocorridos no distrito de Lisboa, durante o período compreendido entre o início do ano de 2019 e o final do 1.º semestre de 2022".

A PJ procurou "individualizar, para cada uma das situações (homicídio na forma tentada e consumada), todos os casos, comprovadamente, decorrentes de atividade grupal e juvenil".

Os valores apresentados ainda podem pecar por defeito. Este alto dirigente da Judiciária admitiu que "existem, nesta matéria, cifras negras relevantes".

Deu como exemplo, "crimes cometidos por autores jovens não-identificados, em processos não resolvidos", em que "é impossível estabelecer uma eventual ligação dos autores com algum gangue"; a "proto-atividade de gangue - indivíduos que atuavam em grupo (em particular em 2019/2020), mas que, não pertenciam ou (ainda) não se identificavam, à altura dos factos, como membros de gangue"; a "inexistência de averiguação policial quanto à inserção do crime na atividade de algum gangue - pré-2020 - decorrente de menor estado de alerta quanto à atividade de gangues juvenis urbanos e suburbanos", e o facto dos "crimes com arma branca ou força física, não estarem aqui associados".

Violência encorajada

Da experiência do terreno, os inspetores da PJ que investigam crime violento conseguem fazer um perfil bastante preciso dos membros destes grupos e das realidades sociais em que se inserem.

"A origem grupal da delinquência, olhando para os contornos da casuística, pode ter várias justificações", sublinhou Carlos Farinha.

"A vontade de pertença, de pertença a "algo", ao grupo, numa perspetiva de socialização e numa lógica de identidade psicossocial; exponenciação da eficácia da atuação criminosa do grupo, disseminação das responsabilidades, adoção de estratégias de ocultação de identidade; uma subcultura de crime potenciadora e, de certa forma, encorajadora da execução de ilícitos criminais graves e especialmente violentos", salientou este responsável.

Na visão policial e de investigação da PJ, a análise das características dos diferentes grupos permite "concluir pela multiplicidade de dinâmicas, diferentes fatores que justificam pactos de lealdade e diversas motivações de associação, designadamente, por referenciação do "gangue"", sobretudo relacionadas com "o bairro onde residem; o contexto escolar em que se integram; o grupo e/ou estilo musical a que se associam" como o hip hop e o drill.

Guerras musicais sombrias e violentas

"Parece resultar notório, da análise da casuística operacionalmente intervencionada, que se verifica uma forte tendência para a cristalização de características gerais dos grupos aqui em apreço", assinalou o diretor nacional adjunto da PJ.

Avançou como exemplo que, de entre essas características padrão, estão "membros com idades compreendidas entre os 16 e os 25 anos, podendo existir franjas de inimputabilidade em razão da idade; a conotação com as denominadas "Zonas Urbanas Sensíveis" (ZUS) e/ou com os subúrbios da Área Metropolitana de Lisboa (AML)".

Quanto a este último aspeto, "traduzido em verdadeiras guerras musicais que incendeiam o ambiente de rivalidade entre gangues", este responsável afirmou que "deve ter-se em especial consideração a superior influência da subcultura hip-hop, principal meio de expressão de um número substancial de membros do grupo, designadamente, por meio da recorrente gravação e publicação de videoclips, como fonte de divulgação mimética do gangue ou da cultura de bairro" e o impacto da influência do digital, das redes sociais, na profusão da subcultura em apreço, com os inerentes fenómenos de publicitação e agregação".

Segundo a PJ "trata-se aqui de "organizações", ainda que com estrutura rudimentar, a revelarem já forte preocupação com a definição dos níveis de acesso à rede de comunicação do grupo", demonstrada pela forma como é dificultado "o acesso às redes sociais, a vídeos, a fotos, a conversações, chats, por não membros" e pela "própria subcultura hip-hop, mais concretamente o género drill, de conteúdo sombrio, violento, cético e radical, niilista e que aniquila valores; fomenta nestes grupos a adoção de nomes artísticos, ou nicknames, o uso de máscaras e a cara tapada".

Zonas preferidas para os crimes

Neste retrato bem preocupante, de assinalar também que há locais preferidos para estes grupos demonstrarem o seu suposto poder.

Há "zonas de referência para a manifestação de rivalidades e catalogadas como locais da prática de crimes graves e violentos", afirmou Carlos Farinha. "Locais de diversão noturna, como a zona ribeirinha de Lisboa; transportes públicos, mais propriamente, estações intermodais; zonas balneares da AML, conexas com transportes públicos, designadamente as praias do Tamariz, Carcavelos, entre outras; os próprios bairros sociais".

A PJ assinala nesta análise que "uma das tendências que deverá ser geradora de preocupação substancial são os fenómenos de mimetismo com as camadas ainda mais jovens dos bairros em referência, porquanto, têm surgido subgrupos no âmbito do mesmo bairro, revelando um seguidismo dos ideais propostos pelos mais velhos e imitando a sua forma de viver, incluindo o contexto hip hop".

A estratégia da PJ

A finalizar a sua intervenção, este responsável deixou algumas das medidas que a PJ está a seguir no âmbito da sua "estratégia ou estratégias de resposta de polícia preventiva e investigatória (repressiva): "recurso à análise de informação criminal (catalogação); investigação prioritária; desenvolvimento célere da investigação e com recurso a meios especiais e excecionais de recolha do acervo probatório; cooperação/colaboração entre os órgãos de polícia criminal, como acontece nas Equipas Mistas de Prevenção Criminal (no âmbito do Sistema de Segurança Interna); monitorização de redes sociais, com infiltração; estratégias de comunicação de intervenções operacionais e disseminação dessa informação no seio do grupo, como suporte potenciador da prevenção geral".

Este último ponto significa que a PJ escolhe promover as operações e detenções que faz contra estes grupos, de forma prevenir o sentimento de impunidade.

"Não estamos à espera das recomendações de nenhum estudo, continuamos sempre a trabalhar", frisou Carlos Farinha, numa referência à intervenção anterior do ex-ministro da Administração Interna, Miguel Macedo.

O antigo governante do Governo de Pedro Passos Coelho tinha salientado a relevância do "estudo aprofundado" pedido por José Luís Carneiro no âmbito da Comissão Integrada para a Prevenção de Delinquência Juvenil, mas assinalou que "seria um erro aguardar pelas conclusões para prosseguir o combate a estas ocorrências".

"Temos competências e meios para suster e combater estes crimes e isso começa pela afirmação clara de um princípio: em Portugal, não há territórios interditos à ação policial", advertiu.

Futilidade da violência

Nas suas últimas notas, o responsável da PJ, ainda destacou que "a criminalidade urbana tende a ser, cada vez mais uma realidade grupal e juvenil, com dinâmicas próprias que importa conhecer".

A PJ, disse, vê igualmente "uma criminalidade urbana de natureza hibrida, com várias dimensões criminais, aproveitando-se do domínio exercido em segmentos diversos".

Ou seja, "os traficantes de droga, por exemplo, aceitam outros tipos de práticas criminais, seja o recurso a crimes contra a vida e a liberdade, o eventual financiamento do terrorismo para conquistar mais poder, o fomento da corrupção, seja a criminalidade fiscal, sejam outros tipos de tráfico, armas , pessoas ou veículos, "rentabilizando" a estrutura criminosa montada...e determinados pelos interesses económicos e pelo poder conseguido".

E concluiu alertando que esta polícia "assinala também a crescente futilidade no exercício de violência; não apenas nos chamados crimes violentos, mas também na dimensão e desnecessidade da violência empregue nos crimes; violência não utilitária e desnecessária; vemos simples tricas das redes sociais gerarem atos contra a vida, conflitos exponenciados pelos meios usados e com consequências muitas vezes fatais".

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