"Dilúvio" de doentes esgota camas em hospitais de Goa e desespera famílias
"Em setembro, na primeira vaga, os casos aumentavam mais devagar, mas desta vez é um completo dilúvio", disse à agência Lusa o médico do Hospital Healthway, em Goa Velha, em Pangim, capital daquele estado indiano.
O médico, que fala português fluentemente, intercalado com algumas palavras em inglês, trata doentes com covid-19 há mais de um ano, e garante que a situação atual é a pior desde o início da pandemia.
"É terrível, é um desastre", disse à Lusa. "Antes, tínhamos tempo para assistir os doentes, organizar o oxigénio e o remdesivir [anti-viral para tratar a doença], mas desta vez é um dilúvio, uma trovoada", lamentou.
Apesar de "para já" não faltar oxigénio em Goa, como acontece noutros estados indianos, a afluência de doentes aos hospitais, "públicos e privados", excede largamente as camas disponíveis, segundo o médico.
"Os doentes estão como sardinhas". "Há gente em macas e cadeiras porque não têm cama", denunciou.
"É horrível, não podemos manejar. Estamos completamente cansados, deprimidos, esgotados", admitiu.
O médico, nascido em 1952, disse estar particularmente chocado com a letalidade da doença entre os jovens.
"Desta vez, jovens de 30, 35 anos, que não têm nada - não há diabetes, não fumam - estão a morrer. É uma tragédia enorme", lamentou.
O desespero dos doentes e famílias está a levar muitos a recorrer às redes sociais, noticiou na segunda-feira o jornal local Herald, e há mesmo quem peça ajuda à Igreja, num estado onde cerca de um quarto da população é católica, disse à Lusa o padre Noel da Costa.
"Nós também recebemos chamadas e dizemos às pessoas que têm de contactar um médico, mas eles respondem: 'Padre, todos os hospitais estão cheios, não há vagas, o que podemos fazer?'", contou à Lusa o prelado.
"Estão tão desesperados que ligam a toda a gente para ver se conseguem ajuda de alguém", explicou.
A Igreja tem apelado às pessoas "para ficarem em casa, porque a situação é muito má", disse o padre.
"Não há vagas nos hospitais, as pessoas estão a morrer em Goa, milhares estão a ser infetados", lamentou. "Nós também nos sentimos impotentes", admitiu.
Na semana passada, o presidente da Conferência Episcopal Católica da Índia pediu aos bispos para realizarem um dia de oração a 07 de maio, "procurando intervenção divina para salvar o país da pandemia", segundo a agência católica Union of Catholic Asian News.
Em Goa, a maioria das igrejas "estão fechadas", com os serviços religiosos a serem transmitidos pelas redes sociais, mas isso não vai impedir a iniciativa, disse o padre Noel da Costa.
"Estamos a usar as redes sociais para avisar cada família, individualmente, através do Whatsaap, para rezarem", contou.
Goa, que faz fronteira com dois dos estados mais afetados do país, Maharashtra e Karnataka, registou na segunda-feira um novo recorde de casos desde o início da pandemia, com 2.321 novas infeções, além de 38 mortes provocadas pela doença.
A situação já levou o ministro da Saúde daquele estado, Rane Vishwajit, a pedir medidas mais drásticas ao Governo.
"Chegou a altura de Goa ter um confinamento completo pelo menos durante um mês, não podemos dar-nos ao luxo de perder mais vidas", escreveu o ministro na segunda-feira, na rede social Twitter, adiantando que apelaria ao chefe do Governo, Pramod Sawant, para decretar a medida.
O responsável do executivo recusou no entanto o confinamento, segundo os jornais locais, mas para o médico Oscar Rebello, é urgente impor restrições para "quebrar a cadeia de transmissão".
"Esses casamentos, festivais religiosos, casinos... Com certeza que o vírus se vai espalhar. Por isso, sim, sou a favor de um 'lockdown' [confinamento] parcial, pelo menos durante 15 dias", afirmou.
Com 1,5 milhões de habitantes, Goa tem "alta positividade neste momento", disse à Lusa o professor de Física e Biologia Gautam Menon, que trabalha em modelos matemáticos de previsão da doença para vários Governos de estados indianos.
Para o professor da Universidade Ashoka, "é provável" que o surto em Goa esteja relacionado com a presença da variante indiana, predominante no estado vizinho de Maharashtra, um dos mais afetados.
Com uma população de 1,3 mil milhões de habitantes, a Índia está a braços com um surto devastador, com recordes de mortes e contágios durante cinco dias consecutivos, o que já levou vários países a oferecerem ajuda ao gigante asiático.
A segunda vaga atingiu o país após uma redução drástica das infeções durante vários meses, o que levou muitos a especular sobre a possível imunidade da população à doença.
"Na vida, a gente paga sempre a arrogância", apontou Oscar Rebello. "Nunca se devia ser arrogante em relação ao vírus, é preciso continuar humilde", defendeu o médico.
O professor Gautam Menon, especialista em modelos de previsão da pandemia, disse à Lusa que a Índia só deverá atingir o pico da segunda vaga "em meados de maio", podendo atingir os 500 mil casos diários.
"A situação atual é muito grave e a positividade dos testes é de mais de 20%, por isso já há uma grande transmissão comunitária, que não parece provável que baixe no curto prazo", disse o professor de Física e Biologia da Universidade Ashoka, na cidade de Sonipat, a 40 quilómetros da capital, Nova Deli, a braços com falta de oxigénio nos hospitais.
"A maioria dos modelos sugere que os casos vão continuar a aumentar e que o pico será provavelmente em meados de maio", antecipou, prevendo que o número de casos "deva chegar aos 400 a 500 mil" por dia.
O professor Gautam Menon trabalha com vários Governos de estados indianos para fornecer modelos matemáticos de previsão da evolução da doença, de forma a antecipar o número de infeções de covid-19 e de admissões hospitalares, e alertou que o número de casos pode estar subavaliado.
"Atualmente, há cerca de 340 mil a 350 mil [casos] diagnosticados por dia, mas a testagem não parece estar a acompanhar o aumento de infeções, por isso pode parecer que estão a baixar, mas pode ser apenas por causa dos testes limitados", afirmou.
Com uma população de 1,3 mil milhões de habitantes, a Índia está a braços com um novo surto devastador, com recordes de mortes e contágios durante cinco dias consecutivos, o que já levou vários países a oferecerem ajuda ao gigante asiático.
A segunda vaga atingiu o país após uma redução drástica das infeções durante vários meses, depois do pico da primeira vaga, em setembro último, o que levou muitos a especular sobre a possível imunidade da população, uma hipótese que se revelou incorreta.
"Uma possibilidade é que as pessoas continuaram a ser infetadas [após a primeira vaga], embora a uma taxa menor, mas a maioria terá sido fora das grandes cidades e não foram detetadas, porque a maior parte tem uma forma moderada da doença", disse o professor.
A confiança excessiva e o surgimento de novas estirpes terão contribuído para o aparecimento da segunda vaga, com consequências mais devastadoras que a primeira, ameaçando provocar o colapso do sistema de saúde.
"O aumento súbito a partir de fevereiro parece estar relacionado com variantes mais transmissíveis, a par do aumento do contacto social", porque "ao fim de tantos meses com casos a descer, pensava-se que havia alguma espécie de proteção da população indiana, e que não teríamos múltiplas vagas, como noutros países", apontou Gautam Menon.
No país circulam várias estirpes do vírus que provoca a covid-19, incluindo "a variante indiana", conhecida como B.1.617, "a do Reino Unido e a variante do Brasil", o que também terá contribuído para a rápida propagação da doença.
Em Maharashtara, o estado mais afetado, predomina "a variante B.1617 [indiana], que tem duas mutações importantes na proteína 'spike' [que reveste o vírus], E484Q e L452R", explicou o professor, enquanto nos estados de Deli e Punjab "parece estar em causa a variante do Reino Unido".
Já no estado de Bengal "há uma nova estirpe, a B.1.618, que parece estar a espalhar-se mais depressa", destacou, sublinhando no entanto que ainda "não há informação suficiente sobre sequenciação genómica" para "perceber como a presença destas estirpes está a aumentar" a propagação da doença.
Apesar de ser "mais transmissível", a chamada variante indiana "não parece ser mais letal do que as outras estirpes", indicou o especialista, apontando que o aumento das mortes provocadas pela doença, com recordes nos últimos dias, está relacionado apenas com o aumento de infetados.
"Estamos a ver mais mortes porque [o vírus] se tornou melhor a infetar mais pessoas", explicou.
Para o aumento súbito do número de casos nesta segunda vaga, com mais de 300 mil infeções diárias nos últimos dias (o triplo do máximo registado no pico da primeira), terão ainda contribuído as eleições em vários estados e festivais religiosos, depois de o Governo indiano ter permitido grandes ajuntamentos no festival de Kumbh Mela, com banhos rituais no rio Ganges.
"Estou certo que os comícios eleitorais e o Kumbh Mela terão ajudado [ao aumento de casos], mas um pouco mais tarde do início [da segunda vaga]", disse Gautam Menon.
Várias cidades impuseram já restrições e recolher obrigatório para tentar travar a propagação do vírus, uma medida que os especialistas recomendam.
"Penso que a maior parte dos estados indianos terão de se decidir [pelo confinamento], a certo ponto", defendeu.
O investigador alertou ainda que a nova vaga está a prejudicar a campanha de vacinação na Índia, com as vacinas a escassear naquele que é o maior produtor mundial.
"Idealmente, devíamos estar a vacinar 10 milhões de pessoas por dia, se não mais, mas neste momento estamos a vacinar entre três e quatro milhões", afirmou, frisando que a inoculação "é a única solução a longo prazo".