Covid-19. Médicos com mais de 60 anos são grupo de risco. Devem ou não ser poupados?

António Sarmento, foi o primeiro médico a receber doentes com covid-19 e foi também o primeiro português a ser vacinado neste domingo (27 de dezembro). Em agosto contou ao DN que nunca quis deixar o combate à pandemia, apesar de ter mais de 60 anos. <em>Recorde este e outros testemunhos.</em>
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"Não sou adepto de dizer: tirem-se todos os médicos com mais de 60 anos de ver os doentes infetados. Não, de modo nenhum." A frase é clara e vem do médico que tem 64 anos e que há mais de três semanas está na linha da frente no combate à epidemia provocada por este novo coronavírus, o covid-19.

António Sarmento é infecciologista, diretor do serviço do Hospital de São João, no Porto, a primeira unidade a receber casos de pessoas infetadas, e afirma que se sente seguro a trabalhar e tranquilo quando regressa a casa. "Continuo a ver doentes e a fazer cuidados intensivos. A minha vida de médico continua e vai continuar. Sinto-me absolutamente tranquilo", garante. Porquê? "Porque trabalho num serviço que conhece muito bem os doentes, quando recebemos casos suspeitos protegemo-nos como se fossem positivos, porque há uma limpeza exaustiva no serviço e quando vamos ver os doentes às enfermarias e aos quartos de pressão negativa estamos sempre bem protegidos."

Se devem ou não os médicos com mais de 60 anos ser poupados, também passa muito por aqui. Ou seja, se há ou não equipamento de proteção individual para todos os profissionais de saúde, quer estejam na primeira linha dos cuidados a estes doentes ou não. Para António Sarmento, "correm mais riscos os outros médicos que estão em consulta o dia todo ou em ambiente de urgência, porque aqui pode aparecer um caso em 20 mas que poderá ser o suficiente para os contagiar, porque estão desprotegidos, do que eu ou outros colegas da infecciologia". Por isso, reforça, "todos os outros médicos também devem estar protegidos. É o conselho que posso dar. O doente deve entrar na consulta com máscara e o médico também deve estar".

O bastonário dos médicos concorda. "Se houvesse material para proteger todos, era uma coisa, mas não há. Mais tarde ou mais cedo, a questão vai ter de ser colocada pelos hospitais para se organizarem e tentarem poupar estes médicos", afirma ao DN.

Na semana em que o Presidente da República decretou o estado de emergência, em que o governo o aprovou e em que o primeiro-ministro António Costa disse ao país que os idosos têm de ficar em casa e que haverá horas de recolher obrigatório para estes, Miguel Guimarães salienta: "O primeiro-ministro disse que os idosos devem ficar em casa, mas não referiu os profissionais de saúde com mais de 65 anos. Esqueceu-se." Embora reconheça: "No SNS não podemos dar-nos ao luxo de dispensar todos os médicos com mais de 60 anos. Sobretudo em especialidades como infecciologia e medicina intensiva, que são fulcrais no tratamento desta epidemia, e que não têm muitos médicos. O que é preciso é que, por muito motivados que estejam, os que há não tenham de trabalhar 24 sobre 24 horas. Isso terá de ser acautelado."

O bastonário voltou a referir que há médicos de vários serviços hospitalares já infetados. Nesta semana, em comunicado, a Ordem anunciava que 20% dos infetados eram médicos. Isto com base em números lançados na semana passada pelo Sindicato Independente dos Médicos (SIM) - 50 médicos infetados e 150 em quarentena. Mas tal informação foi desmentida pelo secretário de Estado da Saúde, António Sales, que apenas confirmou 18 médicos infetados. Na altura, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, especificou que nem todos os médicos infetados tinham sido contagiados em ambiente de trabalho. "Há um grupo de sete médicos que se contagiou em ambiente social."

Decisão de ter jovens na linha da frente é sensata

Uma declaração que levou Miguel Guimarães a defender ao DN: "Não interessa se foi em ambiente profissional ou social, o importante é que, se tivermos muitas baixas, o SNS não conseguirá dar resposta e muito menos salvaguardar também os médicos com mais de 60 anos." Na conferência de imprensa desta sexta-feira, tanto o secretário de Estado como a diretora-geral vieram admitir que uma das prioridades de agora é conseguir material de proteção para todos.

Ainda pouco se sabe sobre este novo coronavírus - SARS-CoV-2 -, mas uma das certezas que já deu aos cientistas que o estudam e ao mundo é que a curva da taxa de letalidade começa a subir a partir dos 60 anos, embora com maior agravamento a partir dos 80 anos. Outra certeza é a de que há doenças crónicas mais suscetíveis ao risco de infeção - cardiovasculares, diabetes, hipertensão, cancro e outras. "Há médicos que têm estas doenças. Por isso, esta questão, "não é descabida e a decisão de alguns hospitais poderem optar por ter na linha da frente os médicos mais jovens, porque já se sabe também que são mais resistentes à doença, é sensata", sublinha o bastonário.

O DN sabe que vários hospitais estão a fazer escalas tentando manter as equipas que estão a lidar com estes doentes equilibradas. Mas no Hospital Egas Moniz, do Centro Hospitalar Lisboa Ocidental, o serviço de infecciologia está a fazer mais. "Os médicos com mais de 60 anos não veem estes doentes", explicam-nos. Até agora "não foi necessário quebrar esta regra", até porque pelo serviço passaram até esta quinta-feira apenas oito doentes, dos quais só permaneceram internados quatro - um teve alta e três foram transferidos para cuidados intensivos.

"Se a situação evoluir, veremos, mas as doenças normais não meteram férias e ao serviço continuam a chegar doentes com malária, brucelose e até meningite. Os médicos com mais de 60 anos poderão ficar a cuidar destes doentes", pormenoriza ao DN um profissional desta unidade. Sublinhando: "Não podemos esquecer que a faixa etária acima dos 60 anos é de risco e que a taxa de letalidade começa aqui, embora seja muito mais elevada acima dos 80 anos."

Mas Portugal tem recursos suficientes para que tal possa ser feito em todos os hospitais? Nalguns serviços, talvez seja possível, noutros não. O bastonário argumenta: "Se tivéssemos um Serviço Nacional de Saúde [SNS] com recursos adequados e com boas condições para todos trabalharem em segurança e com descanso, para recuperarem energia, talvez se conseguisse salvaguardar mais a classe médica e os outros profissionais de saúde. Se começamos a ter muitas baixas, o SNS fica sem capacidade de resposta. E, neste momento, já temos profissionais infetados." E reforça: "Não é só a questão da idade, a questão é que vamos precisar de todos os intensivistas ou infecciologistas, porque já são poucos. A questão é que em tempo de guerra todos os cirurgiões são necessários, aqui são os intensivistas, os infeciologistas, eventualmente os pneumologistas. Só se houvesse uma cooperação entre todos os setores da saúde - público, privado e social - para que todos os médicos destas áreas pudessem apoiar também o SNS." Mas, apesar de a mobilização médica estar a ser excelente, admite: "O que poderá acontecer é que os profissionais dos outros setores não queiram trabalhar para o SNS." No entanto, Miguel Guimarães acredita que os hospitais do SNS já estão a organizar-se internamente para proteger ao máximo estes médicos.

"Os mais velhos têm sempre uma enorme vontade de ser úteis"

António Sarmento concorda que a idade é um fator de risco e que "o ideal seria pôr os médicos com mais de 60 anos numa segunda linha". Ou seja, "a fazerem outros trabalhos que nesta fase também são fundamentais, ficando os mais novos na linha da frente, mas nós, médicos mais velhos, também temos sempre uma enorme vontade de ser úteis e de ver os doentes. Portanto, apesar de corrermos mais riscos, não devemos ser coartados de o fazer". Além do mais, "podemos correr mais riscos, mas também temos uma grande experiência que não pode ser desperdiçada". E, reforça, "não sou adepto de que se tirem os médicos com mais de 60 anos da linha da frente. Agora, devem ter toda a proteção individual e tomar precauções como todos os outros".

Philip Fortuna, médico intensivista, especialista em medicina interna, adjunto do diretor clínico do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (CHULC), explica que, por um lado, muitos destes médicos já estão salvaguardados, porque ocupam uma posição de chefia e têm a seu cargo muitas outras funções que não apenas a de ver o doente diretamente. Por outro, defende: "São médicos com muita experiência e não podemos dispensá-los da linha da frente. A sua experiência é fundamental nestas situações."

O CHULC integra uma das unidades de referência no tratamento do covid-19. É no serviço de infecciologia do Hospital Curry Cabral que os doentes da área de Lisboa e Vale do Tejo estão a ser tratados. Fernando Maltez, o diretor do serviço, corroborou em entrevista à RTP3, na quarta-feira, que as pessoas acima dos 60 são um grupo de risco, por terem menos imunidade, pelo envelhecimento ou por outras patologias associadas.

Na sua equipa, e segundo refere Philip Fortuna, tem apenas dois ou três elementos de mais idade, de resto são todos muitos jovens. "Não serão os elementos mais velhos que irão fazer o exame físico ao doentes, mas estarão presentes na avaliação", explica.

Por agora, o CHULC tem conseguido manter as equipas a rodar de sete em sete dias. Uma está na linha da frente uma semana, depois está a outra, embora haja outros hospitais, até no estrangeiro, que têm assumido uma rotação aos 14 dias para tratar o covid-19. "O tempo desta rotação ainda não é consensual. As pessoas não podem é ficar exaustas. Neste momento, é possível fazermos semana a semana, embora quando olhamos para o que está a acontecer em Itália fiquemos preocupados e receosos."

O médico do Hospital de São José, de 38 anos, admite: "Todos somos humanos e todos temos ansiedades e receios, mas se viemos para medicina foi para tratar doentes, e se há situação em que devemos tratar doentes é esta. Acho que não haverá ninguém a recusar tratar doentes." No entanto, "ninguém quer ficar doente e transmitir a doenças aos seus familiares".

Uma situação que pode acontecer independentemente de o médico ter ou não mais de 60 anos. O responsável pela Comissão de Internos do Hospital de São João, Miguel Valente, tem 28 anos e é interno de anestesiologia. É ele que orienta as escalas dos mais novos e em função das necessidades da unidade.

Tem havido uma enorme disponibilidade por parte dos internos

Nas últimas semanas, houve muito a fazer, pois a grande necessidade foi ter de organizar tudo para responder à epidemia. "Estamos todos a fazer um grande esforço para respondermos às necessidades que a situação trouxe ao hospital", confirma. E, garante, "o que tenho visto é uma enorme disponibilidade de todos os colegas internos para ajudar em muitas tarefas, como mais organizativas e até de apoio a quem está mais no terreno. Por exemplo, os internos estão a fazer a leitura de toda a literatura que vai saindo sobre a situação para poder passar essa informação as serviços para ser discutida. Têm sido todos muito solidários".

Até esta sexta-feira (20 de março), Portugal registava 1020 infetados e seis mortes, números muito diferentes dos de Itália ou de Espanha. António Sarmento diz que o mais importante é a classe focar-se em "tratar os doentes mais graves" e "a saúde pública e o cidadão continuarem a tentar retardar o contágio na comunidade"."Se tivermos de ter mil casos, é preferível que os tenhamos num mês do que numa semana, sendo que para isto somos todos muito importantes, quer os médicos, a saúde pública, os cidadãos e até a comunicação social, porque não há nada pior numa situação como a que vivemos agora do que "o pânico ou a inconsciência. É preciso encontrar o equilíbrio entre os dois."

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