André Carrilho: "A pressão de uma multidão enfurecida nas redes sociais é muito maior do que antes"
No dia seguinte ao ataque na redação do semanário satírico francês Charlie Hebdo, que tirou a vida a 12 pessoas, a capa do DN era ocupada por uma fabulosa ilustração de André Carrilho que deixava uma mensagem de esperança: "A liberdade de expressão tem raízes mais profundas do que qualquer assassino pode presumir cortar", explicou na altura o ilustrador e cartoonista que colabora habitualmente com o DN, que se mostrou logicamente perplexo com o ataque terrorista.
No dia em que começa o julgamento no Tribunal de Paris que vai julgar 14 pessoas consideradas como cúmplices naquele ataque, já que os irmãos Kouachi foram abatidos pela polícia alguns dias após o crime, fomos perguntar a André Carrilho de que forma o acontecimento pode ter influenciado o trabalho dos cartoonistas e afetado a sua liberdade de expressão.
Passaram cinco anos sobre o ataque na redação do Charlie Hebdo. De alguma forma esse ataque fê-lo pensar de maneira diferente quando trabalha? Pensar antes de desenhar?
Sim, sem dúvida. Na altura nem me apercebi bem, mas a tragédia do Charlie Hebdo fez-nos parar para pensar nas potenciais consequências de ser cartoonista. Sempre vivi em democracia e nunca me tinha confrontado com essa possibilidade, a de pôr a minha vida em jogo com um desenho.
Periodicamente ouvimos falar de polémicas relacionadas com cartoons - muito mais do que com outras formas artísticas. Porque é que acha que isto acontece? O que é que os cartoons têm de tão especial?
Os cartoons sempre foram maneiras de digerir e simplificar a realidade, sintetizando-a e tornando-a suportável. São ideais para partilhar e para serem apropriados por cada um para veicular opiniões. Por outro lado, são também alvos fáceis, e numa era em que a descontextualização é a norma, podem ser usados facilmente como arma de arremesso contra o próprio cartoonista. É mais fácil opinar sobre o mérito de um cartoon do que sobre uma tese de mestrado em Astrofísica ou uma obra de expressionismo abstrato, precisamente porque o cartoon é feito com códigos de comunicação de massas, dando a toda a gente a sensação de que são autoridade em matéria de humor.
Pode-se fazer humor com tudo ou existem temas-tabu? Quais?
Pode-se fazer humor com tudo, mas parte da atividade do humorista é testar onde estão as fronteiras do que é aceitável fazer. Cada sociedade no seu tempo específico tem limites ao que se pode dizer e fazer. Por exemplo, até há pouco tempo era aceitável pintar a cara de preto para representar um africano. Hoje em dia, o blackface é completamente tabu, especialmente nos EUA. O mesmo se aplica à palavra começada por N (em inglês), se for dita por um branco. Em rigor, eu não acho que nada deva ser completamente banido sem uma avaliação do contexto em que é feito, assim como acho que o Mein Kampf deve estar disponível para ser lido. Mas enquanto cartoonista, quero ser ouvido e quero manter aberta a linha de diálogo, e sei que há coisas que a fecham imediata e completamente se as desenhar. Então evito-as. Aliás, o gozo é dizer o que se quer dizer conseguindo absorver e contornar as convenções que nos balizam.
Porque é que acha que a religião é uma área tão melindrosa? A religião é, de todos, o assunto mais polémico, o que dá azo a mais polémicas?
Atualmente, não sei se a religião é o assunto mais polémico, aliás, deixou de me interessar. Tenho a sensação de que passámos a discutir por tudo o resto, e que a religião acaba por ser só um pretexto e não a verdadeira fonte de discórdia. Mesmo na altura, os assassinos do Charlie Hebdo eram fundamentalistas de bolso, não creio que tivessem um conhecimento religioso muito profundo. Mais do que avaliar a sua fé, ou falta dela, importa avaliar porque se tornaram radicais violentos, e acho que a resposta, nesse caso, está em França, não no Médio Oriente. Hoje em dia vejo mais retórica violenta em assuntos de costumes e liberdade individual, em discussões sobre racismo, sobre identidade e nacionalismo.
Alguma vez foi censurado ou sentiu-se pressionado para alterar o seu trabalho ou não abordar determinado assunto?
Pelas publicações que me empregam, só muito raramente. Pelo público e pelos grupos de pressão, algumas vezes, mas a esses ligo pouco.
Cinco anos depois, de uma maneira geral, a liberdade de expressão dos ilustradores e cartoonistas está mais ameaçada? Há mais pressões (vindas de onde?) ou, pelo contrário, estamos melhor?
Eu sinto que a pressão vem de uma multidão invisível nas redes sociais, que tem uma agenda própria que muitas vezes é imprevisível. Não sei se estamos pior, mas é diferente. A margem de manobra para testar coisas que possam trazer problemas é menor, porque a pressão de uma multidão enfurecida nas redes sociais é muito maior do que o que havia antes. E se não podemos errar, nunca iremos aprender nada de novo.