Vacina da BCG pode ajudar a tornar a covid-19 menos grave, cientistas confirmam
Estudos confirmam correlação positiva entre a imunização contra a tuberculose e uma menor severidade da covid-19.
A ideia andava no ar e estudos preliminares já apontavam para uma relação estreita entre a administração generalizada da vacina da BCG (contra a tuberculose) e um perfil epidémico menos gravoso da covid-19. Mas agora há mais estudos que reforçam esta hipótese e que indicam novos caminhos a explorar no combate à pandemia.
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Uma das investigações, que foi realizada por cientistas de Israel, das universidades Ben-Gurion do Negev e de Jerusalém, mostra essa associação entre a vacina e uma menor severidade da covid-19, que "é preciso explorar", segundo os seus autores.
Até agora, um dos mais abrangentes e detalhados sobre esta questão, o estudo analisou dados de 55 países, incluindo de Portugal, que concentram 63% da população mundial, e confirmou que os programas de vacinação para a BCG estão sistematicamente associados a menores taxas, não apenas da infeção pelo novo coronavírus mas também da mortalidade por milhão de habitantes devido à infeção.
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Os resultados foram publicados na semana passada na revista científica Vaccines e mostram que a correlação positiva tanto na taxa de infeção como na de mortalidade é sobretudo significativa para as idades mais jovens, até aos 24 anos, e nos que receberam a vacina nos últimos 15 anos.
A equipa, que foi liderada por Nadav Rappoport, da Universidade Ben-Gurion do Negev, não encontrou, no entanto, esta correlação positiva nos adultos com idades mais avançadas e também foram vacinados com a BCG.
"Os nossos resultados sugerem que é importante explorar os protocolos da vacina da BCG no contexto de atual pandemia", afirmou o coordenador do estudo, sublinhando que "já se iniciaram, entretanto, alguns ensaios clínicos para testar de forma mais aprofundada a eficácia da vacinação com a BCG neste contexto".
Para chegar aqui, os investigadores israelitas avaliaram os dados de 55 países que englobam 63% da população mundial e, para poderem estabelecer comparações - a pandemia chegou em momentos diferentes a cada um dos países e cada um geriu a situação de forma diferente -, analisaram e controlaram 23 variáveis distintas, incluindo as da economia, da demografia, dos diferentes sistemas de saúde ou das diferentes restrições impostas face à pandemia.
Pondo toda essa informação em perspetiva, os dados mostraram uma associação sistemática e consistente entre a vacinação com a BCG e o perfil epidémico em todos os 55 países analisados - para o melhor e para o pior. Onde era maior a cobertura da vacinação, os resultados foram mais positivos, e o contrário também aconteceu.
Para tirar a prova dos nove, e verificar se existia a mesma relação com outras vacinas, a equipa fez uma análise idêntica para as do sarampo e da rubéola, mas não encontrou nenhuma correlação entre elas e a covid-19.
De acordo com os investigadores, esta correlação entre a vacinação para a BCG e os perfis epidemiológicos da covid-19 não significa que a vacina da BCG protege diretamente contra a infeção pelo SARS-CoV-2. O que existe aqui, aparentemente, é um efeito ao nível da população.
Além disso, poderá haver também um efeito indireto no sistema imunitário, mas todas as hipóteses têm agora de ser aprofundadas.
Novos estudos vão dar respostas
Numa abordagem diferente, para ajudar a esclarecer os efeitos desta vacina na estimulação generalista do sistema imunitário, um outro grupo de investigadores, esse da Universidade de Radboud, na Holanda, comparou grupos de voluntários vacinados e não vacinados nos últimos cinco anos com a BCG em relação à covid-19. E, mais uma vez, foi encontrada uma correlação significativa entre ambas.
A equipa coordenada pelo imunologista Mihai Netea, que já estava a testar a validade desta ideia do treino da imunidade com a vacina da BCG, mas em relação a outras doenças, decidiu estender a pesquisa à covid-19, e os resultados que publicou na última sexta-feira, na revista científica Cell Reports Medicine, mostram aquela mesma correlação significativa.
Entre os participantes do estudo havia pessoas vacinadas e não vacinadas com a BCG, sendo certo que a maioria das primeiras recebeu a vacina entre abril de 2017 e junho de 2018.
A comparação entre ambos os grupos mostrou que os que tinham tomado a vacina e foram infetados com o novo coronavírus durante a primeira onda da pandemia na Holanda não tiveram formas severas da doença.
Mais significativo, talvez, embora os investigadores encarem esse dado com grande prudência, foi o facto de o grupo vacinado com a BCG ter tido um menor número de infetados, e de, nestes, os sintomas de fadiga terem sido menos intensos.
"É muito importante confirmar se nas pessoas vacinadas com a BCG houve casos de infeções severas de covid-19", nota o coordenador do estudo. "Embora vejamos casos menos severos nos participantes do nosso estudo, é preciso fazer mais estudos para determinar se esta vacina pode realmente ajudar no contexto desta pandemia", sublinha.
Na Holanda esses estudos já estão em curso.
Treino da imunidade
A centenária vacina BCG (Bacilo de Calmette e Guérin) que deve o nome aos imunologistas franceses Albert Calmette e Camille Guérin, que a criaram para combater a tuberculose, já mostrou ter um efeito benéfico generalista noutras infeções respiratórias.
Embora o mecanismo que determina efeito protetor não esteja ainda completamente esclarecido, sabe-se que isso tem a ver com o facto de a vacina da BCG estimular em geral o sistema imunitário.
Na prática, a vacina BCG tem um duplo efeito no sistema imunitário. Além de induzir a produção de anticorpos contra a bactéria da tuberculose, a Mycobacterium tuberculosis, ou bacilo de Koch, gerando uma resposta imunitária mais rápida e específica contra a infeção, ela também ajuda o sistema imunitário numa resposta inicial contra um qualquer invasor do qual não tenha memória imunitária, porque o reconhece genericamente como uma bactéria ou um vírus.
Apesar de ter sido concebida especificamente para prevenir a infeção bacteriana da tuberculose, a vacina confere assim uma proteção viral geral, embora limitada. E daí se ter levantado a hipótese, agora cada vez mais evidente, de que esta vacina pode desempenhar algum papel no contexto da atual pandemia.
Como sugerem os estudos, ela parece contribuir para uma atenuação dos sintomas mais severos, traduzindo-se isso em perfis epidemiológicos também menos severos nos países onde a BCG está, ou já esteve, incluída nos programas nacionais de vacinação.
Comparativamente, e a par de outros fatores também em jogo, países que não tiveram uma implementação universal da vacina BCG, como a Itália, a Holanda ou os Estados Unidos, acabaram por ser mais afetados pela covid-19.
Em Portugal a BCG foi introduzida no Programa Nacional de Vacinação (PNV) em 1965 e tinha uma cobertura acima de 95% em 2017, quando deixou de integrar o programa.
Desde então, apenas são vacinadas com a BCG as crianças que pertencem a grupos de risco para a tuberculose ou que vivem numa comunidade com uma elevada incidência da doença.
Portugal foi um dos países que enfrentaram com melhores resultados a primeira onda da pandemia. A par de outros fatores positivos como a atuação das autoridades de saúde, é possível que isso também tenha tido algo a ver com esta vacina.
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