Bebé encontrado no lixo. "Esta criança deve ir já para a adoção"
O futuro do bebé recém-nascido encontrado num caixote do lixo na Avenida Infante D. Henrique, em Lisboa, junto à discoteca Lux-Frágil, na passada terça-feira, deve passar logo pela adoção, defende Dulce Rocha, presidente do Instituto de Apoio à Criança (IAC) e procuradora jubilada do tribunal de menores.
A procuradora salvaguarda que não está a par dos desenvolvimentos e das circunstâncias do caso, mas este é o seu entendimento: "Num caso tão óbvio que é o de rejeição da criança e de abandono, inclusive de pôr em perigo a vida, o que me parece é que o destino da criança deve ser um projeto de vida de adoção." O desespero, um contexto de miséria, pobreza e isolamento são algumas das circunstâncias comuns a estes casos de abandono grave, conta ao DN.
Como é que estas situações podem acontecer? Uma mãe que abandona o filho no caixote do lixo.
Geralmente, estas situações ocorrem em contexto de muita miséria, de um grande desespero. Houve uma assistente social, que já faleceu, que foi membro da equipa técnica da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ) quando eu era presidente, que se chamava Manuela Bizarro. Trabalhava na Maternidade Alfredo da Costa (MAC), fez umas pesquisas, procurou saber no Brasil como é que era e contactou colegas. Realizou um estudo com bastantes casos sobre o que levava mulheres a abandonar os filhos. E havia denominadores comuns, um deles era o facto de a pessoa ter más condições económicas, um ambiente de pobreza. Não tinham casa, estavam sempre dependentes de alguém e tinham sido abandonadas pelos companheiros. E ela dizia que quem abandona também tinha sido abandonado. As conclusões que ela retirou desse estudo, que ela fez durante alguns anos na MAC, impressionaram-me tanto que depois, quando fui presidente da CNPDPCJ, convidei-a. Ela trabalhou comigo nessa altura. São padrões que se repetem: a miséria, as grandes dificuldades económicas, o desespero, o não ver saída para a sua situação, o ir arrastando a situação e depois já não saber mais [o que fazer], portanto são situações normalmente muito desesperantes que nem conseguimos julgar, não é?
Estamos a falar do crime de exposição ao abandono?
Não há dúvida de que poderá integrar o crime de exposição ao abandono. Claro que há situações em que depois se verifica o resultado de morte e então é agravado. Enquanto o infanticídio poderia ser a tentativa, mas aqui ela não praticou atos nesse sentido, não asfixiou, não molestou. A criança estava viva. Nestes casos é mais comum indícios de exposição ao abandono. Agora, isto tem de se estudar melhor, porque estou a falar sem conhecimento de causa. Estou a falar de um modo geral.
E é difícil descobrir a identidade da progenitora?
É muito difícil descobrir a autora porque colocou a criança num local onde geralmente não passa ninguém ou passa pouca gente. Se passa mais alguém pode não integrar a exposição ao abandono. Se ela colocasse a criança num cestinho ao pé de uma igreja, na altura da missa, não se podia dizer que era exposição ao abandono porque ela tinha deixado ali o bebé justamente para a ser encontrado e ser protegido.
Neste caso, um recém-nascido foi deixado num caixote do lixo...
Pois, por isso é exposição ao abandono, a colocação num local em que a criança não se pode defender sozinha, é um bebé, um recém-nascido.
O que diz o Código Penal nestes casos?
O artigo 138 do código penal diz "quem colocar em perigo a vida de outra pessoa expondo-a em lugar que é sujeita a uma situação de que ela só por si não possa defender-se, ou abandonando-a sem defesa sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir é punido com pena de prisão de um a cinco anos". O que é o caso. Abandonou a criança sem defesa e aí cabia-lhe o dever de a guardar porque é mãe. Estas exposições ao abandono geralmente têm essas circunstâncias, essas causas que fazem diminuir a culpa porque são pessoas muito desesperadas, que vivem mal, que nem conseguem ajuda, por exemplo entregar a criança para adoção. Sentem-se tão culpabilizadas que nem vislumbram a hipótese de entregar a criança a alguém que cuide dela. São pessoas muito isoladas e culpabilizam-se imenso, isto é uma coisa muito dramática, uma tragédia.
Estamos a falar de uma vida que se abandona...
A pessoa não está nada bem consigo própria.
Há casos de crianças que em situações semelhantes não foram encontradas com vida. Não é muito comum encontrar bebés abandonados com vida?
Não, porque ainda por cima dizem que foi possível perceber que a criança já estava há algum tempo dentro do caixote do lixo.
No seu percurso profissional deparou-se com alguns casos desses?
O que eu tinha eram casos de abandono, de rejeição. E depois acabávamos por ver o que seria melhor para a criança, que geralmente acabava no projeto de vida que era a adoção.
É esse o caminho mais comum?
Nestes casos de abandono nem é necessário instaurar um processo de proteção porque a criança está numa situação tal que é necessário que seja encontrada uma família. Portanto, o projeto deve ser logo o da adoção, é o meu entendimento. Há pessoas, com certeza, que acham que o mais correto é instaurar um projeto de proteção, que seja entregue a uma instituição e a criança fica à espera.
O bebé está "estável" no hospital. Mas o que acontece quando sair? Quem fica responsável por ele? Como é o processo?
Se se considerar que a criança precisa de cuidados especiais, ainda fica mais algum tempo entregue ao hospital e o tribunal pode confiar a criança ao hospital. O Ministério Público instaura um processo de confiança judicial com vista a proteger a criança. Mas, se estiver bem, penso que poderá haver logo uma confiança administrativa com vista à adoção, mas isso não é óbvio. Há muito tempo que não estou no tribunal de menores, desde 2003. Já houve alterações, pode ter havido ordens de serviço no sentido de se saber se era preferível instaurar um processo administrativo ou um processo de confiança judicial com vista à adoção.
Mas defende a adoção.
Confiança judicial com vista à adoção, sim, já. Mas imagine que há uma ordem de serviço da senhora procuradora-geral a dizer o contrário... No meu entendimento, num caso tão óbvio que é de rejeição da criança e de abandono, inclusive pôr em perigo a sua vida, o que me parece é que o destino da criança deve ser um projeto de vida de adoção.
Porquê?
Não me parece sequer necessário que os pais sejam notificados para contestar neste caso. O tribunal deveria já poder dispensar o consentimento. Não se brinca assim com a vida das crianças. Se abandonou, não exerceu, pelo contrário, violou as responsabilidades que tem relativamente ao filho. Há responsabilidades dos pais relativamente aos filhos que é cuidá-los, dar-lhes segurança, protegê-los e isso foi tudo violado. Todos esses deveres parentais foram postos em causa. E os direitos da criança foram colocados em perigo, não só a sua segurança e proteção como a própria vida. Correu perigo de vida.
E as circunstâncias em que se encontrava a mãe podem servir para atenuar a culpa?
Há tendência a desculpabiliza porque são pessoas com grandes vulnerabilidades, deve estar a viver uma situação de pobreza extrema, o abandono foi há pouco, ela deve estar abandonada, sozinha. São aquelas situações que nos custam até julgar. Agora, relativamente ao bem-estar da criança, já receamos entregá-la a uma pessoa destas. Se a senhora for encontrada e se for desculpabilizada, entregar a criança é que não, porque é um perigo. Ela rejeitou-a. E portanto acho que o projeto de vida dela deve ser a adoção, este é o meu entendimento. Mesmo que desculpabilizemos a mãe, a criança não pode correr riscos.
E se existir arrependimento da progenitora?
O problema é que pode sempre arrepender-se e mostrar que estava muito sozinha e... Isso serve para efeitos penais, pode ser isenta de pena, pode suspender ou reduzir a pena. Isso é uma análise que se faz em termos da sua culpabilidade, mas daí até a criança ir para uma pessoa que é instável psicologicamente, que em determinado momento da sua vida rejeitou aquela criança, acho que isso é um risco que não se deve correr. Mas sou eu a falar sem ouvir a mãe, ainda não se descobriu quem é. Para já, é o que me parece. É que perante a gravidade do facto, que a criança foi deixada no caixote de lixo no meio de dejetos, de substâncias que podiam matar, além do frio, temos lixívias, detergentes que podem estar ali e causar a morte, há um perigo efetivo, iminente no local onde a criança é colocada.
As tais circunstâncias comuns a estes casos só servem para atenuar a pena?
Apesar de reconhecer que, face àqueles denominadores comuns do estudo de que falei - pobreza muito grande, instabilidade emocional, desespero -, são geralmente essas as circunstâncias comuns que são encontradas quando se estudam estes casos de abandonos, e isso só serve para o processo penal diminuir, isentar ou suspender a pena.
Interfere no processo penal e na proteção da criança?
Para o processo de proteção é diferente, porque aí temos de assegurar que aquela criança está protegida e em segurança. O nosso dever é proteger aquela criança. E quer parecer-me que a melhor decisão é dar outra família àquela criança e não fazer experimentações com uma pessoa que a rejeitou. São processos diferentes: o penal, em que analisamos a culpabilidade e o processo de promoção e proteção da criança, em que se pretende decidir o seu bem-estar e o destino que vai ter.
Disse que este tipo de casos acontece por haver situações de miséria extrema, desespero, mas provavelmente de abandono também...
Muitas vezes a pessoa está inteiramente sozinha. Não vê esperança. São pessoas desesperançadas, o desespero também é isso. Mas agora o mais importante é conseguirmos que a criança viva bem e que os seus direitos sejam respeitados - bem-estar, saúde, segurança - e que seja uma criança amada. É o que gostaríamos que acontecesse.