Manifestação em Lisboa, em 2024, a favor da definição de violação como penetração sem consentimento e contra a culpabilização das vítimas.
Manifestação em Lisboa, em 2024, a favor da definição de violação como penetração sem consentimento e contra a culpabilização das vítimas. Paulo Spranger/Global Imagens

Violação. "A pergunta não pode ser se a vítima disse ‘não’. Tem de ser 'como é que o arguido sabia que ela queria ter sexo?'”

A absolvição, pelo Tribunal de Angra do Heroísmo, de um homem de 25 anos da acusação de violação de uma jovem de 16 é, para penalistas e especialistas em violência de género ouvidos pelo DN, uma decisão baseada numa concepção do crime “totalmente obsoleta”, na qual são as vítimas que estão em julgamento.
Publicado a

“Todo o julgamento é baseado no que a vítima fez ou não fez, no que disse ou não disse. Não há qualquer menção a perguntarem ao arguido o essencial: ‘Como é que se certificou que aquela pessoa queria ter sexo consigo?’ Porque em caso de dúvida é um não. Mas para este tribunal, para muitos tribunais, em caso de dúvida é um sim.”

O comentário é de Maria João Faustino, investigadora em temas de violência de género e estudos feministas, a propósito da decisão de 14 de julho do Tribunal de Angra de Heroísmo, noticiada esta terça-feira pelo DN, na qual o coletivo de juízes, com o indignado voto de vencida de uma juíza, absolveu um homem de 25 anos da acusação de violação agravada de uma adolescente de 16 que ficou com o fundo da vagina rasgado, e em risco de vida (teve de ser operada de urgência), devido à violência com que foi penetrada. 

Apesar de a adolescente ter sempre afirmado, ao ser ouvida pelas autoridades, que disse várias vezes que não queria ter relações sexuais — só quereria “dar beijos e amassos” — e que, estando alcoolizada (a situação ocorreu na manhã de 17 de março de 2014, ao fim de uma noitada em grupo, com muito álcool e consumo de canábis), tentou resistir a que o arguido a despisse, o tribunal considerou não credível a sua versão dos factos.

Afirmando que “a prova científica apenas demonstra que houve o emprego de força na relação sexual em causa (…), não significando que tal emprego de força não tenha sido consentido”, os juízes concluíram que “era necessária a prova de que a Assistente [a vítima] disse ou sinalizou por qualquer forma que não pretendia que o arguido lhe introduzisse o pénis na vagina, o que não logrou fazer-se com o grau de certeza exigido pelo processo penal português.”

Maria João Faustino, que, como todas as pessoas ouvidas pelo DN para a elaboração deste artigo, leu a decisão em causa, suspira. “É um acórdão que parte da ideia antiga de que sexo é uma coisa que os homens fazem às mulheres, não com as mulheres, e de que o comportamento masculino é predatório: se começou, vai ter de continuar e tem de acabar a não ser que ela se consiga opor. Há esta ideia de que os homens têm direito a sexo, e se dás beijos, não tens o direito de parar. É a ideia do impulso masculino incontrolável — ninguém fala dos impulsos sexuais das mulheres.”

Manifestação em Lisboa, em 2024, a favor da definição de violação como penetração sem consentimento e contra a culpabilização das vítimas.
Sexo violento deixou jovem de 16 anos em risco de vida. Tribunal não viu violação

Daí, considera, que os juízes tenham colocado, a partir das SMS trocadas pela adolescente com membros do grupo com o qual tinha saído na noite em causa, a possibilidade de que esta tenha começado por não querer a relação sexual, recusando-a e dizendo não (como ela sustenta nessas mensagens, quando ainda não fizera queixa e asseverava que não tencionava fazê-la) mas “que depois, perante a insistência do Arguido e o ambiente criado, assentiu e quis.” 

O que demonstra, prossegue esta doutorada em Psicologia, que é um acórdão “baseado numa noção de constrangimento [o constrangimento que no artigo 164º do Código Penal, que define violação, determina a existência do crime] como dominação pela força, e não como obrigar, por qualquer meio — que é o que está no Código Penal — alguém, contra a sua vontade, a sofrer penetração. É uma leitura completamente obsoleta da noção de constrangimento, que ignora a vontade da vítima, vontade que está no centro da alteração do tipo criminal de violação que foi feita em 2015 e 2019. É muito frustrante que tenhamos de continuar a repetir que as vítimas de crimes sexuais muitas vezes congelam, não reagem por medo -- até porque o primeiro dispositivo de reação das mulheres não é hostil.”

A expressão “vontade cognoscível” foi aditada em 2019 ao artigo 164º para tornar claro que violação não ocorre só quando a vítima é constrangida à penetração por meio de “violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a terem tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir”; é igualmente violação quando o constrangimento aos atos sexuais descritos ocorra, diz o Código Penal, “contra a vontade cognoscível da vítima”, por “qualquer meio” que não aqueles.

“Este acórdão está em 1999”

“Retrocesso” é a palavra utilizada pela penalista Helena Morão. “Este acórdão é um grande retrocesso.”

Para esta professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, “a decisão é fundamentalmente criticável por três razões”, que explicita.

“Em primeiro lugar porque o fulcro da avaliação crítica da prova é explorar as contradições do depoimento da ofendida, não do agente do crime. Há claramente uma valoração desigual nas declarações, porque as declarações dele praticamente não são sujeitas a escrutínio, o que é sujeito a escrutínio são as declarações dela. E — essa é a segunda razão pela qual o acórdão é criticável — são sujeitas a um escrutínio que ignora completamente tudo o que sabemos hoje em dia sobre as vítimas de crimes sexuais. Exploram as contradições de uma pessoa extremamente jovem, que estava embriagada e portanto com uma relativa incapacidade de defesa, como se fosse uma adulta, não embriagada, e como se não fosse uma vítima de crime sexual.”

Porque, diz a jurista, “é normal as vítimas de crimes sexuais terem vergonha, tentarem disfarçar, é normal que não assumam imediatamente que são vítimas, é normal que nem sequer percebam o contexto actual do crime de violação. Pelo que todas as reações que ela tem são normais nas vítimas de crimes sexuais.”

(A mesma opinião, releve-se, teve o Tribunal da Relação de Lisboa quando em junho de 2024 se pronunciou sobre a medida de coação de prisão preventiva que foi aplicada ao arguido (a qual manteve), chamando a atenção para o facto de não existirem “vítimas perfeitas”, e considerando que “resulta muito claro que a própria ofendida se culpabilizou pelo facto de o arguido não ter sabido controlar os seus impulsos perante a sua recusa, como se lhe não fosse legítimo não querer manter cópula com ele.”) 

Não ouvimos as declarações do arguido mas o acórdão não faz referência a que lhe tenha sido perguntado o que fez para se certificar de que a jovem queria ter uma relação sexual com penetração, que informação tinha ele para achar que podia fazer.”
Helena Morão, penalista, professora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

A terceira razão apresentada por Helena Morão vai ao encontro do que já foi dito por Maria João Faustino: “Não ouvimos as declarações do arguido, mas o acórdão não faz referência a que lhe tenha sido perguntado o que fez para se certificar de que a jovem queria ter uma relação sexual com penetração, que informação tinha ele para achar que podia fazer.”

Em suma, acusa Morão, “o acórdão está completamente desfasado do que foram as alterações efetuadas ao crime de violação em 2015 e 2019. Não fala uma única vez em vontade cognoscível da vítima, por exemplo. Ou da Convenção de Istambul [a Convenção do Conselho da Europa ratificada em 2013 por Portugal e que determinou que a definição dos crimes sexuais passasse a obedecer ao chamado “paradigma do consentimento”].  Fala em ser contra a vontade ou não ser contra a vontade, cita a lei, mas encara o constrangimento ‘à antiga’.” 

Tanto assim é, sublinha, que o acórdão cita a anotação de Jorge Figueiredo Dias (catedrático da Universidade de Coimbra considerado um dos “pais” do Código Penal português) de 1999 ao crime de violação — a mesma que foi citada no acórdão da Relação do Porto que em 2011 absolveu um psiquiatra da violação de uma paciente grávida de 36 semanas alegando que ela não resistiu fisicamente, e que não lhe bastava dizer não. “Por isso digo”, conclui Helena Morão, “que este acórdão está em 1999.” 

“Como é possível negar que é uma violação?”

Na verdade, pior. É que, reflete ainda a mesma penalista, “nem no paradigma antigo este caso levaria a uma absolvição. Porque no paradigma antigo, como é a palavra de um contra o outro, são os sinais de violência que comprovam a violação. Aquilo que me choca mais no caso é que os sinais de violência são tão claros, como é que é possível negar que é uma violação?"

O que levanta, considera, ainda outra questão: “Quando se muda para o paradigma de consentimento passa a ser relevante o tipo de ato sexual em que ela consente. E quando olhamos para este cenário, o conjunto do caso, alguém acredita que alguém, que aquela miúda, no estado em que estava, àquela hora, consentiu naquele tipo de penetração? Que a deixou 48 horas no hospital? Mesmo que os juízes achassem que ela consentiu na penetração, consentiu naquele tipo de penetração? Como é que o tribunal concluiu isso?”

Outro penalista ouvido pelo DN, e que pede para não ser identificado, corrobora: “As práticas sexuais agressivas, porque colocam em causa a integridade física de modo mais intenso e contêm riscos sérios, exigem um consentimento claro e informado, em que se estabelecem limites e condições. Ora, estando a vítima embriagada e pouco consciente, tendo apenas 16 anos e pouca experiência e maturidade sexual, num contexto em que mal se conhecem, não se pode presumir, sem mais, que houve consentimento para a prática de sexo muito violento. A existência de consentimento tem de ser interpretada atendendo à idade da vítima e ao contexto, tem sempre de ser espontânea, informada, consciente.”

O sexo ser doloroso, quase fatal, para as mulheres é visto como natural. Que as mulheres sejam obrigadas a sofrer sexo que não desejam também. Porque todo o centro da atividade sexual é colocado nos homens.” 
Maria João Faustino, investigadora em temas de violência de género e estudos feministas

Precisamente, reforça Maria João Faustino: “A Convenção de Istambul diz que tem de se apreciar o consentimento atendendo às circunstâncias envolventes. Mas o problema da questão do consentimento é que nos leva a questionar ainda mais o comportamento das vítimas. Temos de apreciar com base nas dinâmicas de poder. Tudo o que seja um exercício de poder contra a vontade livre do outro tem de ser questionado. E o que temos aqui é uma miúda de 16 anos, alcoolizada, num espaço que não é o dela [os factos passaram-se em casa do arguido], com um homem mais velho, um adulto, que conheceu naquela noite, e que é penetrada com enorme violência. E o tribunal diz que ela tinha ‘plena liberdade’ para fugir, para recusar, para gritar e chamar pessoas.”

Há, lamenta esta investigadora, uma naturalização da dor e do sofrimento das mulheres — “O sexo ser doloroso, quase fatal, para as mulheres é visto como natural. Que as mulheres sejam obrigadas a sofrer sexo que não desejam também. Porque todo o centro da atividade sexual é colocado nos homens.”

Talvez por esse motivo valha a pena perguntar se a decisão dos mesmos juízes seria igual se, em vez de uma adolescente de 16 anos, se tratasse de um adolescente — um adolescente que desse entrada nas urgências com um tipo de lesão semelhante, igualmente causado por uma penetração violenta ocorrida quando estava embriagado e numa relação sexual com um homem nove anos mais velho. Os magistrados estariam igualmente disponíveis para aceitar a ideia de que o adolescente tivesse consentido — ou seja, desejado, querido, tal violência? Perguntar-lhe-iam, igualmente, “se não querias, por que não fugiste? Por que não gritaste?”

Ou, pelo contrário, teriam, nesse caso, querido saber como se certificou o arguido de que conhecia a vontade do adolescente?

“Só sim significa sim”

Num texto a publicar em dezembro na revista Anatomia do Crime (do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais), Helena Morão escreve: “Vontade cognoscível da vítima significa tão-só que há uma vontade decisiva da vítima que pode ser conhecida, admitindo-se duas possibilidades interpretativas: a da atribuição à vítima de um dever de a transmitir ou de um dever de a apurar ao agente. (…) Uma interpretação conforme ao princípio constitucional da igualdade e à Convenção de Istambul apontam para a prevalência da segunda leitura.” 

Da mesma opinião é o penalista e ex-juiz do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos Paulo Pinto de Albuquerque, que no seu Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (2024) escreve: “O agente deve representar a oposição da vontade da vítima. Para tal, é suficiente que ele não esteja seguro do consentimento da vítima. Dito de forma positiva, atenta a natureza do bem jurídico em causa, que toca o mais íntimo de cada ser humano, o agente só pode agir na certeza da consentimento da vítima. A oposição da vítima não tem de se exprimir por uma resistência física, podendo sê-lo também por palavras, gestos ou qualquer outro modo perceptível ou ‘cognoscível’, como decorre do conceito de ‘constrangimento’ previsto no [Código Penal], que está consolidado há muitos anos no direito europeu dos direitos humanos e no direito intemacional criminal.”

Atenta a natureza do bem jurídico em causa, que toca o mais íntimo de cada ser humano, o agente só pode agir na certeza da consentimento da vítima. A oposição da vítima não tem de se exprimir por uma resistência física, podendo sê-lo também por palavras, gestos ou qualquer outro modo perceptível ou ‘cognoscível’”
Paulo Pinto de Albuquerque, penalista, ex-juiz do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos

E cita o Tribunal Penal Internacional: “O consentimento não pode ser inferido a partir do silêncio ou da ausência de resistência da vítima à alegada violência sexual”.

Tribunal Penal Internacional em cujo direito, de resto, Pinto de Albuquerque diz ter sido inspirada a Convenção de Istambul. A qual, frisa, “é clara ao exigir o consentimento livremente concedido das partes envolvidas como condição da liberdade sexual. Ou a vítima deu o seu consentimento (only yes means yes/só sim significa sim) ou não. Não havendo consentimento há constrangimento e, portanto, dano do bem jurídico da liberdade sexual. Nos casos de indiferença ou indecisão da vítima, não há consentimento e, portanto, o agente não pode impor a sua vontade à vítima. A manifestação do consentimento (rectius, acordo) da vítima depois do início da execução do ato sexual revoga a oposição anterior e afasta a ilicitude. Ao invés, a manifestação da oposição depois do assentimento inicial no ato sexual torna ilícito, a partir desse momento, o ato sexual. Desde que a mudança de atitude da vítima seja cognoscível, o agente incorre no crime de coação sexual. Assim, verifica-se o crime se houver um relacionamento sexual consentido, condicionado ao uso do preservativo, e no decorrer do relacionamento, o agente retira o preservativo sem o conhecimento ou consentimento da vítima.”

A conclusão fica para Maria João Faustino: "Temos de mudar completamente o guião de quem está a ser julgado nos crimes sexuais. E exigir que os magistrados cumpram a lei e a Convenção de Istambul: como se explica que mais de 10 anos após a respetiva ratificação continuem a ignorá-la? Será que é mesmo ignorância ou não conseguem perceber o que está em causa?" Respira fundo. "Deu-me alguma esperança, porém, ler o voto de vencida de uma das juízas no acórdão. Ela fez um acórdão paralelo, fundamentou aquilo como um futuro acórdão."

O caso está, como o DN já noticiara, em recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Manifestação em Lisboa, em 2024, a favor da definição de violação como penetração sem consentimento e contra a culpabilização das vítimas.
Violação vista pelos tribunais: princípio do fim da “coutada do macho ibérico”?
image-fallback
Vítimas de violação não têm de resistir, diz Tribunal da Relação
image-fallback
Tribunal invoca "sedução mútua" e "mediana ilicitude" em caso de jovem violada quando inconsciente
Diário de Notícias
www.dn.pt