Violação vista pelos tribunais: princípio do fim da “coutada do macho ibérico”?
“Comete um crime de violação o agente que, no exercício de pretensa terapêutica osteopata, introduz um dedo na vagina de uma paciente, sabendo que tal era contrário à vontade desta (e sendo que esta só não reagiu por tal ser de todo imprevisível e por pensar erradamente que tal pudesse ter alguma justificação terapêutica), assim a constrangendo à prática desse ato. O silêncio ou passividade da vítima neste caso não pode ser entendido como forma de consentimento do ato em questão.”
Este é o sumário do acórdão do Tribunal da Relação do Porto que mantém a condenação por violação, e a três anos de prisão efetiva, de um osteopata que a 6 de julho de 2020, na sua clínica no Porto, introduziu, a pretexto de fazer parte do tratamento, o dedo na vagina de uma cliente.
A decisão, de 2022, teve como relator o juiz desembargador João Pedro Pereira Cardoso, sendo co-assinada por Paula Pires e
Raul Cordeiro, e destaca-se triplamente: pela dureza da pena - apesar de ser inferior a cinco anos e portanto permitir a suspensão da aplicação, os desembargadores (com voto de vencido de Raul Cordeiro) optaram por manter a efetividade -; pela fundamentação, que, ao aplicar o tipo criminal de violação alterado em setembro de 2019, torna claro que violação ocorre sempre que não exista consentimento para um ato de penetração sexual; e pelo facto de se certificar que a inexistência de consentimento não tem necessariamente de ser vocalizada ou performativa (evidenciada em resistência física) - aliás, como se sublinha, a vítima pode até pode assentir e isso não corresponder à sua vontade.
Explica o acórdão: “O preenchimento do crime de violação abrange os casos em que a vítima se encontra numa situação em que a formação ou expressão da sua vontade estão limitadas, por razões derivadas do seu estado físico ou psicológico, e por isso, a ausência do seu dissentimento ou consentimento (…). Nas situações em que a vítima dá expressamente o seu assentimento ou nada diz, mas quando avaliadas as circunstâncias concretas, conhecidas do agente, se pode concluir que aquela anuência, silêncio ou passividade não é livre e esclarecida, não poderá aquele, pelo menos não deverá o homem médio, colocado na mesma posição, concluir com razoabilidade que tal comportamento corresponde à vontade real da vítima.”
E prossegue: “A incriminação [da violação] não abrange apenas os casos de não consentimento claramente expresso da vítima, mas também as situações em que este inexiste, mas ainda assim estamos perante um constrangimento tipicamente relevante, porquanto determinável (…). Importando valorar todas as circunstâncias em que o comportamento se desenrola, tendo em conta, evidentemente, as regras da experiência (designadamente as relativas a relacionamentos interpessoais íntimos e não só); sem preconceitos infundados, sem estigmas ou mitos do passado, mas atendendo às características dos intervenientes e a todo o contexto envolvente (…), única solução que se apresenta consentânea com as exigências impostas pela Convenção de Istambul nos termos expostos e transcritos, reiteramos nós.”
Sacudindo assim expressamente teias de aranha, o entendimento do acórdão do Tribunal da Relação do Porto sobre o que define violação vai ao encontro, como os autores sublinham, do estabelecido pela Convenção de Istambul (Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, tratado internacional de 2011 que Portugal ratificou em 2013) - a qual define as “infrações penais de violência sexual, incluindo a violação" como “os atos sexuais impostos intencionalmente a outra pessoa sem o seu livre consentimento” - e do defendido há muito por juristas e coletivos feministas, como é o caso da Associação Portuguesa das Mulheres Juristas.
Trata-se assim de uma visão feminista - no sentido da consagração da igualdade, da recusa dos estereótipos de género e, muito importante, da valorização da palavra e vontade da vítima mulher - que se afirma como ainda rara na magistratura portuguesa, malgrado o tipo criminal ter sido sujeito, desde 2015, quando se efetuou a primeira transposição da Convenção para o ordenamento jurídico nacional, a várias alterações no sentido de o adaptar ao texto do tratado. Incluindo, em 2019, o adicionar ao artigo 164º do Código Penal (o que tipifica o crime de violação) de uma espécie de “explicador” sobre as várias interpretações possíveis do verbo “constranger”, ou seja “forçar a”, de modo, dir-se-á, a ultrapassar as dúvidas e resistências dos magistrados na aplicação da lei.
“É fundamental um tribunal superior fazer estas declarações”
A atual redação do tipo criminal de violação consta de três números, ou normas. A primeira (número 1), lê-se assim: "Quem constranger outra pessoa a sofrer ou praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou a sofrer ou praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos, é punido com pena de prisão de um a seis anos.
A segunda [número 2], dispõe: "Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou a sofrer ou a praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos, é punido com pena de prisão de três a dez anos.
Por fim, o número 3 (o tal "explicador"), diz: "Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos (...) contra a vontade cognoscível da vítima."
Ainda assim, e mesmo depois das várias alterações introduzidas desde 2015, muitos penalistas e magistrados persistem em recusar que a “mera” inexistência de consentimento defina o crime de violação, exigindo que para se concluir pela ocorrência de violação se verifique “violência”, havendo até muitos que só concebem, no caso deste crime (e ao invés do que sucede noutros tipos criminais, como a violência doméstica ou o roubo), violência na sua vertente física ou de ameaça de violência.
É por exemplo o caso (apesar de evidenciar um entendimento muito alargado do que é violência), de um acórdão de 2023 da Relação de Coimbra (da autoria dos magistrados Paulo Guerra, Alcina da Costa Ribeiro e Cristina Pêgo Branco), no qual se lê: “Também nós nos afastamos do entendimento que apresenta como suficiente para identificar uma situação de violência relevante para efeitos de tipificação criminal a inexistência de consentimento e/ou de vontade livre da vítima para a prática da cópula.”
Razão pela qual a investigadora da Universidade do Minho Isabel Ventura, autora do livro Medusa no Palácio da Justiça ou Uma História da Violação Sexual - no qual descreve a forma como este crime foi ao longo do tempo, na lei e na aplicação, imbuído de preconceitos de género e encarado com “interpretações toldadas por um pensamento falocêntrico e conservador, compreensivo para com o agressor e desconfiado para com a vítima” -, se congratula com o “acórdão do osteopata” (chamemos-lhe assim).
“Está muito bom e fico muito feliz. É fundamental termos um tribunal superior a fazer estas declarações, a fundamentar tão bem a decisão. É um sinal muito bom e que trará resultados ao nível de outras sentenças, é uma fonte de influência para toda a jurisprudência. Demonstra uma evolução na argumentação jurídica ancorada na literatura científica e na literatura que reconhece os direitos humanos das raparigas e das mulheres - ou os direitos humanos genericamente, mas neste caso estamos a falar de crimes altamente genderizados, com grande carga genderizada. Mas fico triste por ter de ficar feliz.”
O motivo da tristeza é, diz esta académica, “ter de me alegrar por ver um tribunal em 2022 a cumprir uma Convenção que Portugal ratificou em 2013. E porque está muito longe de ser comum. É que não obstante termos bons exemplos como este na nossa jurisprudência - e que podemos dizer que estão só a fazer o seu trabalho, e estão a fazer o seu trabalho bem, mas devem ser louvados e reconhecidos -, isso não significa que todos os outros registos que nós temos, mesmo recentes, que reproduzem lógicas que podemos considerar antiquadas, sexistas e violadoras dos direitos humanos das raparigas e mulheres, tenham deixado de existir. Porque é preciso lembrar que a estrutura jurídica faz parte de uma estrutura social que continua a reproduzir lógicas revitimizantes e culpabilizadoras das vítimas.”
"É o primeiro acórdão sobre a interpretação correta de consentimento à luz da Convenção de Istambul"
Também a penalista Inês Ferreira Leite, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membro do Conselho Superior de Magistratura (o órgão fiscalizador da judicatura), e uma das signatárias da carta aberta que em 2017 solicitou a este órgão que abrisse inquérito disciplinar contra o juiz desembargador Neto de Moura (o qual, recorde-se foi autor de vários acórdãos sobre violência doméstica nos quais desvalorizava o crime em função do alegado “adultério” das vítimas, chegando a citar a Bíblia e a prática da lapidação contra as “mulheres adúlteras”) elogia a decisão que condenou o osteopata.
“Apresento-o nas minhas aulas para falar da noção de consentimento. Tem um grande mérito e é muito importante, porque é o primeiro acórdão sobre a interpretação correta da necessidade de consentimento à luz da Convenção de Istambul, e é particularmente importante porque se trata de um caso que, pelas circunstâncias, tipicamente gera dúvidas, e por ter mantido a prisão efetiva - porque a necessidade de prevenção especial era muito grande.”
Outro aspeto relevante, opina a jurista, é tratar-se de um acórdão que, precisamente, se fundamenta na alteração na lei efetuada em 2019 - quando, como já referido, se acrescentou no tipo criminal da violação uma espécie de “explicador”, estabelecendo que o verbo constranger (ou seja “forçar a”) abarca, além do uso da “violência” da “ameaça grave” e da colocação da vítima em estado inconsciente ou “incapaz de resistir”, também “qualquer meio empregue para a prática dos atos referidos (…) contra a vontade cognoscível da vítima”.
Assim, aponta Ferreira Leite, o acórdão “estabelece que a vontade cognoscível da vítima é aquela que uma pessoa razoável colocada naquela posição concluiria existir. Uma pessoa razoável perguntar-se-ia: ‘Esta pessoa que tenho aqui à frente, deitada numa maca para uma sessão de osteopatia, está interessada num contacto sexual comigo ou não?’ Obviamente para haver um envolvimento sexual consentido ela teria de demonstrar interesse ativo - ora se ela estava ali como paciente, não havia razão nenhuma para achar que queria esse contacto sexual.”
E conclui: "Começa a haver sinais de um progresso nas gerações mais novas. Há juízes de uma geração mais nova, com no máximo 50 anos, que está a chegar à Relação, e que se preocupam com o Direito Internacional.”
Das “objeções não sérias”, expressas “apenas por palavras”, à não obrigação de resistir
De facto, está-se neste acórdão do Tribunal da Relação do Porto, quando diz que “qualquer estudo de psicologia e sociologia nos ensina que muitas vezes o silêncio, passividade ou mesmo colaboração da vítima são motivadas por um consentimento constrangido”, muito longe da visão do crime de violação que noutra decisão do mesmo tribunal, de 2011, permitiu absolver um psiquiatra que, no seu consultório e no decorrer de uma consulta, penetrou e teve, como se costuma escrever nas decisões judiciais, “cópula completa” com uma paciente grávida de 34 semanas. Considerou nessa altura o coletivo de desembargadores, do qual foi relatora Eduarda Lobo, que “o crime de violação tem de ser cometido por meio de violência, ameaça grave ou ato que coloque a vítima em estado de inconsciência ou de impossibilidade de resistir”, e que “a força física destinada a vencer a resistência da vítima pressupõe que esta manifeste de forma positiva, inequívoca e relevante a sua oposição à prática do ato”, sendo “a recusa meramente verbal ou a ausência de vontade, de adesão ou de consentimento da ofendida, por si só, insuficientes para se julgar verificado o crime”.
Lembrando que à época o tipo criminal não sofrera ainda as alterações que lhe foram efetuadas em 2015, devido à entrada em vigor da Convenção de Istambul, a verdade é que nada dizia sobre a obrigação de a vítima resistir - que é o que está subjacente à ideia, expressa no acórdão de 2011, ou "do psiquiatra", de que a violência utilizada tem de ser a necessária a colocar a vítima na “impossibilidade de resistir”.
Era essa porém a interpretação mais generalizada e aquela que uma autoridade de Direito Penal como Jorge Figueiredo Dias ensinava. Ainda em 2012, ou seja já após a existência da citada Convenção, este professor catedrático da Universidade de Coimbra escrevia sobre o artigo 164º do Código Penal: “Atua sem culpa o agente convencido de que a objeção da vítima não é séria, quando ela se exprime apenas por palavras, mas não por qualquer resistência corporal." E antes tinha pontificado: "Não basta nunca à integração do tipo objetivo de ilícito (...) que o agente tenha constrangido a vítima a sofrer ou a praticar, ato de violação - isto é, que este ato tenha tido lugar sem ou contra a vontade da vítima (...). O meio típico de coação é pois, antes de tudo, a violência, existindo esta quando se aplica a força física (como vis absoluta ou como vis compulsiva), destinada a vencer uma resistência oferecida ou esperada."
A este propósito, e desta forma culpabilizadora da vítima de encarar o crime, assim visto e calibrado da perspetiva do agressor (que só perceberia um não sob a forma de resistência física), Isabel Ventura sublinha a existência de outro acórdão que reputa de muito importante, por determinar que as vítimas de violação não têm de resistir.
É uma decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, de junho de 2019, cuja relatora é Teresa Féria (a presidente da Associação Portuguesa das Mulheres Juristas, que entretanto passou para o Supremo Tribunal), e que, dizendo respeito à violação de uma rapariga de 14 anos por um homem de 35, frisa: “Está hoje já estabelecido pela Psicologia que a ausência de resistência física por parte da vítima não pode ser considerada como uma forma de aceitação ou consentimento da agressão, mas pelo contrário expressa apenas o desejo de sobreviver a uma situação cujo controle não detém e relativamente à qual experimenta um sentimento de completa impotência. Assim, tal como num vulgar crime de roubo, a não manifestação pela vítima de qualquer reação de oposição à agressão não é nunca entendida como consentimento, também deste modo deve ser considerada a conduta não reativa da vítima de um crime de violação.”
Respondendo a um recurso que, tal como no caso do osteopata, invocava a não resistência e não reação da vítima - “não há relato nos factos provados de a Ofendida ter manifestado, por gestos ou palavras, qualquer recusa (…), inexistindo aliás relato de resistência” - e a alegada inexistência de "violência física adequada para vencer a auto-determinação sexual da ofendida", o tribunal lembra que “vítimas há em que o medo lhes impede a demonstração de qualquer reação, é a chamada imobilidade tónica, outras em que se opera uma dissociação da realidade, como se a agressão de que estão a ser vítimas não se passasse com elas e apenas estivessem a observá-la e outro grupo de vítimas decide não resistir para evitar ferimentos ou morte.”
"Atração pelo sexo oposto é um dado indesmentível e não é fácil dominá-la”
É uma longa caminhada, esta que se inicia no primeiro Código Penal da democracia - o de 1982 - o qual definia a violação no artigo 201 do Código Penal como um crime exclusivamente com vítima feminina (“Quem tiver cópula com mulher por meio de violência, grave ameaça ou, depois de, para realizar a cópula, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir ou ainda, pelos mesmos meios, a constranger a ter cópula com terceiro”) e no número 3 do artigo previa que a pena, de dois a oito anos, fosse “especialmente atenuada se a vítima, através do seu comportamento ou da sua especial ligação com o agente”, tivesse “contribuído de forma sensível para o facto”.
Esta redação do tipo criminal, que se manteve até 1995, é aquela que enformou a visão deste crime da maioria dos magistrados dos tribunais superiores e de grande parte dos professores de Direito Penal até muito recentemente.
E a que estava em vigor quando foi propalado o mais simbolicamente infame dos acórdãos sobre violação do pós-25 de Abril, referido no título deste artigo - aquele que ficou conhecido como “o da coutada do macho ibérico”. Datado de 18 de outubro de 1989, é do Supremo Tribunal de Justiça e diz respeito ao sequestro e violação (num dos casos tentativa) de duas turistas jugoslavas por dois portugueses no Algarve, no verão de 1988.
Respondendo a um recurso do Ministério Público (que via a pena como insuficiente), o acórdão, assinado pelo juízes conselheiros Vasco Tinoco, Lopes de Melo, Ferreira Vidigal e Ferreira Dias, estatui que se sequestro e violação “são dois crimes repugnantes e não têm qualquer justificação”, “no caso concreto as duas ofendidas muito contribuíram para a sua realização.” Isto porque, dizem os quatro magistrados, “não podemos esquecer que as duas ofendidas, raparigas novas mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do macho ibérico.”
E desatam a causticar as vítimas, por ser “impossível que não tenham previsto o perigo que corriam, pois aqui, tal como no seu país natal, a atração pelo sexo oposto é um dado indesmentível, e, por vezes, não é fácil dominá-la”, e por não terem resistido o suficiente - apesar de se descrever o arraial de pancada que ambas tinham sofrido ao tentar resistir.
Para os quatro juízes conselheiros, não bastava que se desse como provado que as jovens haviam sido pontapeadas, esbofeteadas, arrastadas por vários metros, como escreveu o advogado Francisco Teixeira da Mota no Público em dezembro de 1991, questionando: “Qual será o entendimento de ‘resistência’ que é necessário opor a um violador para que a justiça olhe para uma mulher como verdadeiramente digna da proteção da lei?”
29 anos depois, em junho de 2018, um acórdão do Tribunal da Relação do Porto assinado pelos desembargadores Maria Dolores da Silva e Sousa (relatora) e Manuel Soares (presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses), que ficou conhecido como "o acórdão da sedução mútua", demonstrava que a ideia de "atenuar consideravelmente" a pena de violação quando se "prove" que a vítima "contribuiu" continuava presente na mente dos julgadores.
É que, se os dois magistrados davam como provado que uma mulher de 26 anos tinha sido submetida, enquanto “incapaz de resistência” por estar muito embriagada, a relações sexuais “de cópula completa” por dois funcionários da discoteca Vice Versa, em Vila Nova de Gaia, na casa de banho da mesma e quando o estabelecimento se encontrava já encerrado, concluíam que a culpa dos arguidos se situava "na mediania", por os crimes terem ocorrido "ao fim de uma noite com muita bebida alcoólica, ambiente de sedução mútua" e "ocasionalidade (não premeditação), na prática dos factos", e que a ilicitude não fora elevada, porque, afirmava-se, "não há danos físicos [ou são diminutos] nem violência [o abuso da inconsciência faz parte do tipo].” Assim, mantinha a condenação “pela prática, em autoria material, de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência”, descrito no artigo 165º do Código Penal (e cujo enquadramento penal é, tal como o do tipo mais gravoso de violação, de dois a dez anos de prisão), e a pena (de quatro anos e meio de prisão) assim como a respetiva suspensão, tal como decidido na primeira instância.
O facto de os arguidos não reconhecerem o crime nem demonstrarem qualquer arrependimento não foi valorizado pelos desembargadores; tão-pouco foi tida em conta a possibilidade de serem condenados pela forma agravada do crime – a que prevê um aumento de um terço nos limites mínimo e máximo quando, nos termos do artigo 177º do CP, é “cometido conjuntamente por duas ou mais pessoas” e que tribunal inferior terá rechaçado argumentando “não se ter demonstrado o planeamento de uma decisão conjunta ou a sua execução com diferentes papéis atribuídos a cada um mas, em vez, duas resoluções autónomas e distintas.”
Igualmente, ter-se provado que pelo menos um dos arguidos não usou preservativo quando submeteu a vítima a “cópula completa, ejaculando” – foram encontrado resíduos do seu sémen no exame forense que foi feito quer à vítima quer às suas roupas – não mereceu qualquer censura penal ou sequer menção na decisão do tribunal superior, o qual no entanto não deixou de referir que a mulher tinha estado a dançar na pista.
No artigo do DN que revelou a existência do acórdão, uma magistrada que pedia para permanecer anónima indigava-se: "O acórdão refere que ela esteve a dançar na pista? Mas que importância tem isso? Que relevo, que relação? E de onde vem a 'sedução mútua'? Esta mulher tinha vomitado e estava na casa de banho mal disposta. Provou-se que estava incapaz de resistir quando a violaram. Até se podia ter despido na pista, caramba. Está a tentar-se que recaia na vítima uma parte da responsabilidade. E que é isto da 'baixa ilicitude'? O que seria alta ilicitude? Às vezes parece que a argumentação jurídica permite que a gente se perca e não veja a gravidade das coisas. Estamos a escudar-nos no argumento jurídico para branquear os factos.” E prosseguia: "O que mais revolta é que quando estão em causa crimes contra mulheres o sinal que os tribunais dão é sempre este, de desculpabilização do comportamento dos agressores. O que era preciso para terem pena efetiva? Que já tivessem violado ou roubado antes?. A medida da pena demonstra que o crime foi desvalorizado. Há um sinal de impunidade para a comunidade. Uma mulher inconsciente foi violada duas vezes! Que humilhação para ela constatar que ficam com pena suspensa.”
“É violência aquilo que verga a vontade do outro"
Decidir “sem preconceitos infundados, sem estigmas ou mitos do passado”, prescreve “o acórdão do osteopata”. Uma prescrição necessária: mais de três décadas depois da pergunta de Teixeira da Mota, e após várias alterações da lei, a questão da resistência ou da sua impossibilitação por meio de violência ainda divide, como se constata, a jurisprudência na definição do que é ou não violação.
Oiçamos a esse propósito a professora catedrática de Direito Penal Fernanda Palma: "O conceito de violência é polissémico. Aquilo a que se chama hoje violência integra a violência psíquica, outras formas de violência para além da agressão física. É violência aquilo que verga a vontade do outro.”
Por esse motivo, esta penalista continua a não estar contente com a formulação do artigo 164º, que tipifica o crime de violação, e que desde 2015 gradua o crime em duas situações diferentes - aquela que existia anteriormente, em que se fala de uso de violência, ameaça grave ou colocação na impossibilidade de resistir, com pena de três a 10 anos - e uma outra, em que se fala de constranger ao ato sexual de qualquer outra forma, com pena de um a seis anos.
"O Código Penal quis resolver um problema, tornando claro que não era preciso existir violência física para haver violação, mas criou outro." E esse outro problema é, explica, o de criar um tipo de violação "menos grave" - porque tem uma moldura penal muito mais baixa -- e que na sua redação implica que há uma forma de violação "não violenta”.
Enquanto nos tribunais se discute o que é ou não violência no contexto de violação, é normal, reconhece Isabel Ventura, aplaudir um acórdão por ser fiel a um tratado internacional com 13 anos e àquilo que é necessariamente o espírito da lei lida - como tem de ser - à luz desse tratado. Há porém quem esteja já bastante mais à frente, como esta investigadora feminista faz questão de lembrar: “Existem muitas críticas à noção de consentimento, porque exprime como que uma autorização - consente-se em algo que é proposto. Como diz Maria João Faustino [psicóloga, investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra], ninguém comenta “tive uma noite de sexo fantástica, consenti muito”. A lei continua a ser escrita do ponto de vista de quem transgride.” Suspira. “Mas ainda assim, mantendo muitas críticas à fórmula atual da lei, porque sei que a palavra da mulher vale menos, tenho de reconhecer que alguma da jurisprudência mostra que há progresso.”
(Nota: texto alterado às 18H25 de 9 de março, para acrescentar a reprodução da redação atual do artigo 164º do Código Penal e referência ao acórdão "da sedução mútua").