São caminhos ermos que não parecem conduzir a qualquer lugar naquele labirinto, por entre canas e lixo aleatório (tesouras ferrugentas, panelas, cabeças e outros membros de bonecas, vestígios de qualquer coisa que já foi calçado, restos de roupa, fragmentos de eletrodomésticos). No entanto, são o acesso ao bairro do Talude Militar, em Loures, que agora parece o rescaldo de uma batalha, desde que, no início desta semana, a Câmara Municipal avançou com uma ação de demolição, que vai continuar, garante o presidente da Câmara, Ricardo Leão. Por agora, os trabalhos estão suspensos, face à providência cautelar que entretanto o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa aceitou.Através de um vídeo publicado ontem nas redes sociais, o autarca do PS, já depois de ser pressionado por várias frentes, e sem ter respondido a perguntas do DN sobre que alternativas foram dadas aos moradores, afirma que o executivo municipal não permite “que se viva em condições desumanas, ilegais e perigosas”. Por isso, assegura que “esta não foi a primeira intervenção, nem será a última”.“Não permitimos no concelho de Loures a construção de barracas, não por falta de empatia, mas porque é única forma de garantir a segurança e justiça para todos”, sustenta o autarca no vídeo, acrescentando que “há movimentos e associações e figuras públicas que em nome de uma suposta solidariedade acabam por promover a indignidade”..“A ideia de que basta construir uma barraca, ocupar ilegalmente um terreno ou instalar sem regras para ter de imediato uma casa é profundamente desonesta para com as mais de mil famílias que estão em espera por habitação municipal, mas também para as que cumprem, que aguardam com dignidade e confiam nas regras e nas instituições”, sustenta Ricardo Leão.Para o chefe do executivo municipal, tendo em conta as demolições que foram levadas a cabo, em 55 das 67 barracas que estão naquele local - e que servem de habitação precária a 161 pessoas - “o apoio [da autarquia] continuou e continua disponível, apesar de nenhuma das pessoas abrangidas ter pedido ajuda antes, sem estarem inscritas em qualquer programa”. “A câmara esteve sempre presente com verdade, com meios, com soluções. Dos 65 editais de demolição, demolimos 55 construções ilegais. 43% tinham morada oficial fora do concelho. Lamento aliás que só 29 famílias tenham recorrido ao atendimento social e não a totalidade”, conclui..Perante a falta de resposta de Ricardo Leão sobre as alternativas que foram dadas às famílias que ali vivem, que se encontram numa situação que diz ser indigna e que contempla cerca de seis dezenas de crianças, o DN foi conhecer as histórias das pessoas, na sua maioria oriundas de São Tomé e Príncipe, que moram no Talude Militar.“Vou fazer de novo a minha barraca”Dentro de uma estrutura composta por vigas de madeira ligadas entre si por chapas onduladas está Marília, de 34 anos, acompanhada pela mãe, a avó, uma das suas irmãs, três filhos e outras crianças e jovens. Estão a fazer tarefas que noutras circunstâncias poderiam ser descritas como domésticas. Dividem-se nos afazeres: há quem arrume roupas dentro duma mochila, há quem varra tapetes e há quem tente que as chapas estejam na vertical, a simular paredes. Não há tomadas visíveis no chão de terra batida, irregular e poeirento, e não há água potável. Há alguns garrafões de água que alguém comprou e que cumpre todas as necessidades, desde combater a sede até à higiene. E continua a não haver paredes. E as crianças brincam por ali.Questionada sobre se vai passar ali a noite, Marília diz que não, enquanto desenrola a sua história. Mora no Talude há seis meses, mas está em Portugal há um ano e meio. Veio de São Tomé e Príncipe, mas o seu filho mais novo é português. Garante que está legal em Portugal, tem documentos e trabalha três dias por semana, a fazer limpezas, duas horas em cada dia. Ganha 130 euros, diz, e não recebe quaisquer subsídios.A mãe de Marília mora em Portugal há mais tempo. Veio por motivos de saúde, a “uma junta médica”, explica a filha. Tem uma casa municipal, só para si, que é onde Marília vai passar a noite..“Vivo todo o tempo aqui, de dia, para controlar as minhas coisas, para que não as levem”, confessa, enquanto explica que as suas irmãs, agora, depois da demolição, dormem na rua. “Os acampamentos já estão montados para elas”, revela, enquanto aponta de forma vaga para uma das tendas que emergem dos destroços.Sobre o futuro mais imediato, Marília só vislumbra uma hipótese: “Vou fazer de novo a minha barraca, porque eu não posso estar na rua com o meu filho. Vou fazer de novo a barraca.”Antes de morar no Talude Militar, Marília morava no Cacém.“Como a renda de casa estava a custar mais a cada ano, com a dona da casa sempre a mudar o preço da casa, eu regressei para aqui”, relata..Um dia, continua a moradora, “pediram o BI das crianças que moram comigo. Eu expliquei tudo, tomaram todos os dados das crianças, os meus dados e levaram. No mesmo dia, vieram pôr o número em casa, o papel de despejo. Era uma sexta-feira, às oito horas ou às nove horas. Eu fui para o trabalho na segunda-feira. Quando regressei, já encontrei a Câmara com bastante polícia por aqui.”Como resultado da ação, Marília viu a sua família desalojada.“No dia em que desmancharam a minha casa, desmancharam a dela também”, diz sobre a sua avó, de 74 anos.“Estamos na rua, todos”, queixa-se, revelando que na segunda-feira desta semana confrontou as pessoas que encontrou no bairro a demolir a sua barraca, argumentando: “Se vocês desmancharam a minha casa, é para me deixar na rua. Disseram que se é para proteger a criança, eles têm que me proteger, e depois proteger a criança. Se eles desmancharam a minha barraca, é porque eles me puseram na rua com a criança. Então, ligaram para a minha mãe”, conta Marília, que não está sozinha nesta história.“Estou aqui graças à minha mãe e ao pai dos meus filhos, que me dão uma mão”, explica a jovem mãe, desvelando a ideia de que não está com o pai dos filhos..O processo de demolição foi acompanhado por uma alternativa oferecida pelos serviços camarários, que, de acordo com Marília, passa por garantir o pagamento de um mês de renda, até 400 euros, e duas cauções. Quanto à casa propriamente dita, a procura terá de ser conduzida pelos moradores.“Não existe aqui isso, para eu morar com três crianças”, conclui Marília sobre o mercado de arrendamento naquela zona.Alternativas que não o sãoNo local, o DN encontrou o membro da coordenação do movimento Vida Justa Engels Amaral, que descreveu toda a ação de despejo, que já tinha começado há três semanas e que seguiu o padrão a que os moradores já estão habituados.“O edital é colocado à sexta-feira, no final do dia, às 18 ou 19 horas, dando aos moradores um período de 48 horas para deixarem as casas vazias de bens e pessoas. E na segunda-feira, logo pela calada, de manhã, vêm e, a qualquer custo, iniciam o processo de intervenções”, afirma.Numa fase seguinte, a Câmara “encaminha as pessoas para o Centro de Apoio Social, na Quinta de Mocho, onde fazem de conta que dão alternativa, mas não são alternativas”, acusa Engels Amaral, acrescentando “que todas as pessoas que tiveram a casa demolida estão a regressar” para o Talude Militar.Isto acontece porque, como explica o membro da Vida Justa, “a Câmara tem proposto o pagamento de uma renda e de uma caução no valor do teto máximo da renda de 400 euros”, relata, indo ao encontro do que disseram vários moradores do bairro. “As pessoas iam procurar e a Câmara pagaria. Nós sabemos que hoje em dia, de acordo com aquilo que é a realidade do mercado de habitação, esse valor não se encontra, não se encontra renda desse valor em lugar nenhum”, afirma..Por isso, continua, “as pessoas estão a morar mesmo aqui. Não têm outra alternativa.” Segundo Engels Amaral, se as pessoas pudessem, “não estariam aqui a viver, porque não têm acesso” a outras casas, “tendo em conta não só o valor da renda, mas também as condições que são impostas, as exigências de não haver cobrança de impostos pelos senhorios e um conjunto de fatores. E sabemos que não há casas disponíveis no concelho para arrendar”, desabafa.A acrescentar à situação que evidencia, Engels Amaral lembra que há “mais de 200 e tal mil casas, de acordo com dados do IHRU [Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana], cerca de 257 mil casas prontas a serem arrendadas ou para serem vendidas que estão aí vazias”. “Mas por que é que elas não entram para o mercado de arrendamento? Por que é que não são colocadas, uma vez que existe esse problema”, questiona, sem propor qualquer resposta.Para o membro da Vida Justa, a situação a que os moradores do Talude Militar estão sujeitos “parece até que é um jogo de empurrar as pessoas para aqui [para o bairro] e depois asfixiá-las. Parece mesmo que foi feito de propósito.” Segundo Engels Amaral, isto acontece porque “o país abre a porta para a imigração, diz que tem muito trabalho, alicia as pessoas a virem, as pessoas vêm, mas, quando chegam, não encontram condições mínimas”. Em qualquer caso, sublinha, “são famílias em que as pessoas trabalham, mas não conseguem pagar uma casa”.O DN teve acesso a um comunicado da Vida Justa que afirma que “em menos de 24 horas, mais de duas mil pessoas e mais de 60 organizações manifestaram-se contra os despejos nos concelhos de Amadora, Loures e Odivelas e exigiram uma solução”.A missiva da Vida Justa diz que “o facto de os despejos meramente administrativos proliferarem por todo o lado sem que haja respostas sociais adequadas não provocou qualquer reação do Estado central, apesar das múltiplas informações que têm vindo a chegar aos seus gabinetes sobre este assunto”..A Vida Justa critica o Governo por assistir “impávido e sereno, a toda esta situação, remetendo a responsabilidade para as câmaras”. “Para além disso”, continua o movimento, “não há nenhuma garantia de que os fogos em construção através do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] sejam destinados a realojamento, além de serem muito insuficientes perante as necessidades atuais. O Estado central é o principal responsável em matéria de habitação e perante a calamidade social a que assistimos.”O movimento lembra ainda que os mais afetados pela situação são famílias trabalhadoras, “migrantes e portuguesas. Vivem em bairros como o Talude, em Loures, a Estrada Militar, na Amadora, e em muitos outros lugares. Estão aqui porque o mercado de habitação é-lhes totalmente inacessível”, acusa.“O que importa mesmo é retirar as pessoas daqui”No terreno, no rescaldo das demolições e no sossego que a providência cautelar trouxe ao local, o DN conversou com o vereador da CDU na Câmara de Loures Gonçalo Caroço, que defendeu que “aquilo que foi feito aqui não devia ter acontecido da forma como aconteceu”, completando a ideia com a revelação do que é inadiável: “Temos é que discutir o que é que vamos fazer para retirar estas pessoas desta situação.” “As pessoas continuam aqui a dormir no meio destes escombros. Não têm dignidade absolutamente nenhuma. Temos aqui problemas de alimentação, problemas sanitários que se agravam de dia para dia. Temos aqui dezenas e dezenas de crianças.”Numa primeira fase, Gonçalo Caroço sugere que haja uma ação concertada entre a Segurança Social e a Câmara Municipal para que, “nos casos mais graves, sejam encontradas desde já soluções imediatas. E é possível também a Câmara e o IRHU trabalharem para soluções não tão imediatas, mas, em poucos dias, de terem algumas casas disponíveis para famílias monoparentais ou pessoas com deficiência.”.Para uma solução a médio prazo, o vereador da CDU propõe que seja seguido o exemplo do que aconteceu no bairro das Marinhas do Tejo, “onde a Câmara acabou por não avançar com o derrube das barracas - e bem - tendo chegado, com o Governo, à conclusão de que era possível aplicar” o programa “Porta da Entrada”. “Estas medidas são urgentes, porque não basta trazer alimentos para aqui. Isso é muito importante, mas não basta trazer água para aqui, ainda que isso seja fundamental. Mas o que importa mesmo é retirar as pessoas daqui”, conclui.Solidariedade sem nacionalidadeSem qualquer anúncio prévio ou estratégia por trás que não seja a de fazer bem a quem precisa, como revelou mais tarde ao DN, José Magina, de 44 anos, chega ao Talude no seu Daewoo Matiz, já com 24 anos. Consigo, estão os dois filhos e a sua filha. Não mora ali.As três crianças estão de férias da escola e acompanham o pai. Sorriem e ajudam o pai na tarefa de distribuir pão pelas pessoas. É só por esse motivo que estão ali.Está em Portugal há 27 anos e nasceu em Angola.Questionado sobre o que o levou a estar no Talude, diz, com simplicidade, que viu as notícias na televisão sobre as demolições e “quis fazer isto para os outros”, até porque, completa, “não sabemos o dia de amanhã”.José Magina, junto com a sua prole, visita cada uma das famílias dispersas no Talude e distribui pães com várias formas diferentes. Regressa várias vezes ao carro para se abastecer, para repetir o ato de dar pão. O processo decorre com naturalidade, como se já fosse frequente. Mas não é. As demolições tinham começado há dois dias.Sem recorrer a muitas palavras, José Magina, motorista de profissão, garante que não há “nenhum compromisso” por trás desta ação. “Solidariedade, acima de tudo”, conclui.Mas não é o único que visita as habitações precárias que por ali se encontram. Pedro Ribeiro, comerciante há mais de 40 anos, faz entregas no Talude. Já conhece as pessoas, faz preços de amigo - cada ‘mini’ de cerveja custa um euro, quando na sua mercearia, longe dali, consegue vendê-las a um euro e vinte.Naquele momento, no porta-bagagens do seu carro cor de laranja de 1987, tem várias grades de cerveja, que chegam ali providencialmente frescas. Nenhum frigorífico naquele bairro está a funcionar, ainda que haja vários associados às habitações que voltam a reerguer-se.Pedro Ribeiro diz que é mau para o negócio ter havido estas demolições, porém, defende que “tem de haver regras”..Descreve a vida dos moradores do Talude como “miséria”, motivo pelo qual, revela, “ainda no outro dia” deu “um saco de pão” e água.“Dei uma esmola, porque eu também sou filho de gente pobre, humilde. Trabalho honestamente, não devo nada. Pago as minhas contribuições, como é normal, e se eu for pedir alguma coisa não me dão nada”, diz sobre o Estado.“E as pessoas têm... Nunca fizeram nada. É um bocado injusto para com os portugueses. Não sou xenófobo, não sou racista, não sou nada. Tanto que a minha esposa é de Cabo Verde”, explica, num discurso difuso com que critica quem recebe casas camarárias e subsídios, que são duas coisas que as pessoas daquele bairro dizem não ter..Reconstruir a casa antes de anoitecerNum afã incansável, a pregar, com pregos ferrugentos, chapas de metal a vigas de madeira, Manuel luta para rapidamente reconstruir a sua habitação. Ainda não dá para adivinhar que forma terá no fim, mas não deve demorar muito tempo, até porque o são-tomense, legal em Portugal, diz que está a lutar contra o relógio para terminar de reconstruir a sua casa antes de anoitecer.Na verdade, não é uma barraca definitiva. É “construir uma forma só para desenrascar, para o anoitecer”, explica. Lá dentro, estão alguns móveis, pelo menos um frigorífico, algumas indicações de roupas.Manuel sorri enquanto continua a construção e conta a sua história com simpatia.Está sozinho em Portugal e vive no Talude há seis meses. Apesar da devastação que o rodeia, depois da demolição, Manuel descreve o ambiente de aldeia que se vive no bairro. “Nós temos organizado a união aqui. A gente cozinha, juntamente, em comunidade”, relata, enquanto viaja mentalmente a quem perdeu muito neste processo. “Há quem durma sentado, há quem ponha um pano sobre a cabeça. Eu vi que está a fazer demasiado frio, por isso estou a desenrascar.”Manuel trabalha na construção civil, mas diz que a obra em que trabalhava “enfraqueceu”.Agora, só faz “biscates”, que é o que lhe permite “sobreviver no dia a dia”.A Câmara ofereceu-lhe o mesmo que ofereceu aos outros moradores, isto é, uma renda, até 400 euros, e um mês de caução.“Mas não se vê casa por esse preço. Não se vê quarto por esse preço. Nós não vamos conseguir”, desabafa.“Quando eles [Câmara] conseguirem dar-me [casa], eu saio daqui. A minha vontade não é viver assim, como nós estamos”, garante Manuel, que não vê como opção ir morar para a estação do Oriente ou para “baixo da ponte”.“Então eu preferi fazer uma coisa dessas e sinto-me mais tranquilo”, justifica, enquanto desvenda um segredo pessoal: em São Tomé é proprietário..“Eu penso voltar para São Tomé, mas não é agora. Porque o que eu vim para realizar tem que ser realizado. Mesmo com problemas, vou lutando”, conclui.A escassos metros de Manuel, Jecira, de 30 anos, visita uns vizinhos no bairro. A sua casa é uma das poucas que não sofreu a intervenção.Jecira é são-tomense e é mãe de três crianças portuguesas. Tem “segunda via de residência” e o marido “é deficiente numa perna”, o que não o impede de trabalhar e sustentar a família.Quanto a Jecira, não tem “sorte com o trabalho”. Gosta muito de trabalhar, diz, mas não consegue contratos superiores a seis meses. A sua especialidade é cuidar de idosos, em lares, mas faz serviços domésticos, como engomar e lavar. Mas não tem conseguido.“A gente acaba ficando aqui, porque a gente não tem contrato. Importante é trabalho. Se não há trabalho, não há casa. A gente tem que ter trabalho”, apela.Questionada sobre se pretende voltar a São Tomé, dada a situação, Jecira afasta essa possibilidade, centrando as suas preocupações nos filhos.“As minhas crianças nasceram aqui. Não as posso tirar da escola e mandar para São Tomé. Têm de estudar para ser mulheres de amanhã. Para ser doutora, ser enfermeira. Aquilo que ela quiser ser na vida. A minha filha está a estudar. Vou lutar para ela estudar”, promete..PGR confirma abertura de inquérito sobre as demolições no bairro do Talude Militar.Tribunal impede Câmara de Loures de demolir habitações no Talude Militar.Movimento Vida Justa denuncia demolição de 80 habitações nos próximos dias em Loures e Amadora.O regresso das barracas e dos bairros de lata