Foi a 2 de abril de 2025 que a secretária de Estado da Habitação, Patrícia Gonçalves Costa, recebeu uma carta da Provedoria de Justiça indicando vários problemas “relativos ao funcionamento do mecanismo de atribuição da compensação aos senhorios” com rendas congeladas, e solicitando “uma intervenção célere dos poderes públicos”. Cinco meses depois, malgrado a secretária de Estado ser a mesma e a Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, ter passado a ministra da Administração Interna, nenhum dos problemas apontados foi solucionado. Assim, tendo-se iniciado o segundo ano de vigência da compensação (que arrancou em julho de 2024), nada se alterou. O requerimento continua a ser exclusivamente digital — uma das críticas da Provedoria, que sublinha tratar-se de uma forma de excluir muitos possíveis candidatos, tanto mais que o universo dos proprietários em causa é predominantemente idoso —; os atrasos de muitos meses na análise e no pagamento permanecem, sem que, ao contrário do que propôs a Provedoria, o Estado pague juros de mora; a (ilegal) ausência de notificação dos interessados é quase generalizada. Isto apesar de, no seu relatório de 2024 (entregue a 17 de julho de 2025, após Maria Lúcia Amaral tomar posse como ministra), a Provedoria ter, quanto a essa ausência de notificação, falado de procedimentos “à margem da lei”.“As decisões são tomadas sem notificação aos interessados, sem fundamentação conhecida e sem que lhes seja conferida a possibilidade de participar no respetivo processo decisório. Muitos candidatos apenas tomam conhecimento do deferimento da sua candidatura através da constatação de um movimento bancário, o que traduz uma conceção profundamente deficitária da relação entre Administração e administrados”,afirma a Provedoria. “Este modo de funcionamento revela uma tendência preocupante para a criação de programas que são geridos, em última análise, à margem da lei”. Uma “conceção da relação entre Administração e administrados” que se prolonga na ausência de reação do Governo às observações da Provedoria, órgão criado precisamente para zelar pelos direitos dos cidadãos na sua relação com o Estado. Questionado pelo DN, na passada semana, sobre se irá acatar as recomendações da Provedoria, e, em caso afirmativo, quando, o ministério das Infraestruturas e Habitação não deu sequer nota da receção do email, no qual era também perguntado quantos pedidos de compensação foram até agora apresentados, quantos deferidos e quantos estão a pagamento.Arrendatários ou senhorios, problemas iguais nos apoiosO aparente desprezo do governo por esta intervenção da Provedoria é tanto mais inusitado quando uma recomendação de 12 de agosto do mesmo órgão, versando os problemas com o Programa de Apoio Extraordinário ao Arrendamento, lhe mereceu uma reação imediata, na qual se compromete a pagar já (em setembro), com retroativos, os apoios em atraso.Ora, como se constata no ofício enviado pela Provedoria à já referida secretária de Estado da Habitação a propósito do apoio extraordinário às rendas, os problemas apontados neste programa coincidem em quase tudo com os apontados no regime de compensação dos senhorios com rendas habitacionais congeladas.Desde logo, a ausência de notificação aos interessados: “Verificou-se, com base nas queixas recebidas, um significativo incumprimento de regras e princípios básicos do Código do Procedimento Administrativo nos processos de atribuição, redução, suspensão e cessação dos apoios, pondo em causa os direitos e garantias dos administrados, nomeadamente o direito à informação e notificação, ao dever de fundamentação dos atos administrativos e à audiência prévia dos interessados. (…) No apoio extraordinário à renda, a maior parte das decisões não tem sido, de todo, objeto de notificação – as pessoas desconhecem, por exemplo, quando vão receber o apoio”E este ofício aprofunda a crítica efetuada no relatório de 2024 quanto à não notificação dos candidatos à compensação por rendas congeladas: “Nos termos da Constituição, concretizados no Código do Procedimento Administrativo, constituem exigências da relação da Administração com os cidadãos, designadamente, o respeito pelo dever de notificação e fundamentação dos atos administrativos, o direito dos interessados à informação e a serem ouvidos no procedimento antes de ser tomada decisão final, bem como o direito a reclamar ou recorrer dos atos ou omissões da administração.”A ilegalidade e até inconstitucionalidade destes procedimentos redunda assim, como aponta a Provedoria, em opacidade, inviabilizando “a sindicância das decisões tomadas, dificultando a intervenção de poderes públicos de controlo, como sejam os da Provedoria de Justiça e até, em última análise, da própria Tutela”.Por fim, a Provedoria propõe, também em relação ao apoio extraordinário às rendas, a introdução de “uma previsão específica relativa a juros indemnizatórios”. AD prometeu descongelar rendas. E não descongelar, tambémSendo certo que o programa da Aliança Democrática para as legislativas de 2024 comprometia a coligação na revogação daquilo que designava de “medidas erradas do programa Mais Habitação, incluindo (…) o congelamentos de rendas” (a solução para os arrendamentos habitacionais anteriores a 1990 era, dizia a AD de 2023, aplicar “subsídios aos arrendatários vulneráveis”) e que o próprio ministro da Habitação, Miguel Pinto Luz admitiu em novembro de 2024, ante o parlamento, o enorme atraso no despacho dos requerimentos e respetivo pagamento, assim como as dificuldades encontradas pelos requerentes na submissão do pedido, reputando o processo de atribuição de compensação por rendas congeladas de “dantesco”, o assunto desapareceu no programa da AD para as legislativas de 2025.Recorde-se de resto que quando a 10 de outubro de 2024 foi noticiada, com base na proposta de Orçamento de Estado para 2025, a intenção do então executivo de acabar com as rendas congeladas, a secretaria de Estado da Habitação apressou-se a abjurá-la, assegurando que não se pretendia alterar o regime. O intuito do governo era antes, afirmava o comunicado, “garantir um tratamento justo tanto para inquilinos como para senhorios, assegurando a eficácia do mecanismo de compensação aos senhorios, pela função social que estes têm desempenhado ao longo de décadas”.Certo é que até este momento não se conhece qualquer ação governamental nesse sentido. Nem tão-pouco, como frisado, reação às recomendações da Provedoria.A qual, no seu ofício de 2 de abril de 2025, parecia prometer novas démarches relativas ao regime de compensação, ao comunicar: “Na presente comunicação (…) não se esgota a matéria que, sobre este tema, tem sido trazida ao conhecimento da Provedoria.”De facto, nas queixas que lhe foram chegando sobre a matéria, nomeadamente na da Associação Lisbonense de Proprietários, de dezembro de 2024, também se questionava a forma de cálculo da compensação (efetuada com base num valor patrimonial tributário dos imóveis “congelado”, sem a aplicação das atualizações efetuadas pela Autoridade Tributária para efeito da cobrança de IMI e portanto sem qualquer ajustamento à variação de preços, constituindo, na prática, um novo congelamento das rendas), e até o facto de, ao invés do que sucede com todos os outros apoios ao arrendamento, este visar os proprietários e não o grupo que se pretende proteger (os arrendatários).Até agora, porém, a Provedoria de Justiça não voltou ao assunto. E, quando o DN a questionou sobre se considera que o congelamento definitivo das rendas em causa e os termos da compensação legislada são conformes à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) sobre congelamento de rendas, a resposta não foi elucidativa.“A jurisprudência do TEDH — não apenas no que respeita ao Protocolo Adicional à Convenção em matéria de proteção da propriedade mas também na interpretação que faz de vários Artigos da Convenção em termos de conferir proteção à habitação — deixa uma significativa margem aos Estados para definir políticas públicas que procurem realizar um equilíbrio entre a proteção da propriedade e as demais obrigações dos Estados, designadamente no que respeita à promoção do acesso à habitação”, respondeu a Provedoria. “No mesmo sentido se tem pronunciado o Comité Europeu dos Direitos Sociais, responsável pela monitorização da implementação da Carta Social Europeia pelos Estados Partes, o que vale por dizer que nem toda a interferência dos Estados na relação contratual entre senhorios e arrendatários é, por si só, ilegítima, obrigando a uma ponderação de todos os elementos relevantes, no contexto global do regime em causa.”“Os senhorios ganham quase sempre no Tribunal Europeu”Naturalmente, a pergunta do DN à Provedoria não versava sobre se é legítima ou ilegítima a intervenção dos estados, em geral, no mercado da habitação, e em particular na relação contratual entre senhorios e arrendatários — intervenção que se pode revestir de muitas formas e gradações, como de resto as variadas legislações europeias de controlo de rendas demonstram — , mas sobre congelamento de rendas. E sobre congelamento de rendas — a imposição aos proprietários de uma renda fixa durante a duração do contrato, a qual não é sequer susceptível de ser atualizada em função da variação do índice de preços — a jurisprudência do TEDH, como aliás as dos tribunais constitucionais alemão e italiano, é bastante expressiva. De acordo com uma análise publicada em outubro de 2024 no European Journal of Law and Economics sobre as referidas jurisprudências, “existe uma tendência jurisprudencial clara: estes tribunais protegem o direito à propriedade contra a interferência estatal que impõe medidas de controlo de renda desproporcionadas”. Primeiro, resumem os autores (académicos da Universidade de Génova), “os juízes geralmente assumem que o preço correto é sobretudo uma função das leis da procura e da oferta e do valor de mercado. Os controlos de renda podem introduzir limites mínimos para impedir aumentos de renda para além do valor de mercado. Segundo, como direito fundamental, o direito à propriedade compreende, no seu âmago, o direito a lucro: quando muito, exclui um lucro excessivo. Terceiro, o preço justo da renda corresponde ao preço de mercado ou à média do preço de mercado. Quando os legisladores se afastam demasiado do preço de mercado, então o fardo imposto aos senhorios é desproporcionadamente elevado. Quarto, senhorios e proprietários de casas não podem ter de suportar o ónus de escassez de habitação (…).”Ou seja, conclui o estudo, “os senhorios quase sempre ganham, obtendo indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais. (…) De acordo com o argumentário do tribunal, o direito do senhorio à propriedade e à proteção contra a interferência [arbitrária] no seu gozo de propriedade pressupõe o direito a um valor de renda de mercado, não a um preço mais baixo, tendo de existir um equilíbrio justo entre os requisitos dos interesses sociais do Estado e a proteção dos direitos fundamentais do indivíduo consagrados na Convenção Europeia dos Direitos Humanos”.Assim, no que respeita à forma mais drástica de controlo de rendas — o congelamento, tal como existe em Portugal há várias décadas —, o TEDH tem-na sistematicamente considerado demasiado penalizadora, ao impedir os proprietários de obter “um lucro decente”. E os estados têm sido condenados mesmo nos casos em que houve, como se passa em Portugal, uma tentativa de “remediar” a situação. Por exemplo, em Bittó e Outros contra a Eslováquia, de 2014, os juízes de Estrasburgo decidiram, por unanimidade, que existia uma violação do direito à propriedade de 21 senhorios, uma vez que apesar de a partir de 2000 lhes ter sido dada a hipótese de subirem um pouco — com limites fixados pela lei — as rendas que antes tinha estado congeladas, estas continuavam “consideravelmente mais baixas que as de locados semelhantes não sujeitos a esse controlo”. E queos interesses dos requerentes, “incluindo o seu direito a retirar lucro da sua propriedade”, não estavam a ser respeitados. A conclusão foi de que as autoridades eslovacas não respeitaram o justo equilíbrio entre os interesses gerais da comunidade e a proteção do direito à propriedade dos requerentes.Até agora, nenhum caso relativo a rendas congeladas foi apresentado no TEDH contra Portugal. Para tal acontecer, será preciso esgotar todas as instâncias judiciais portuguesas. O DN não conseguiu confirmar a existência de qualquer processo relativo a congelamento de rendas, ou à compensação em vigor, nos tribunais nacionais. .Compensação por rendas congeladas: Provedora dá razão a senhorios e quer pagamento de juros de mora .Rendas congeladas. "Apoios" a senhorios calculados com base no valor patrimonial “mais baixo possível”.Rendas congeladas. Governo promete compensação "mais justa", mas deve 3 meses da que está em vigor.Rendas congeladas: Governo recusa explicar caos na compensação a senhorios