Se o Estado fosse inquilino, estaria em risco de despejo e multa: a lei em vigor prevê um máximo de 30 dias para análise dos pedidos de compensação pelas rendas congeladas, relativas a contratos habitacionais anteriores a 1990. Mas já passaram três meses desde julho, quando o processo foi “aberto”, e os cerca de 3000 proprietários que apresentaram os respetivos requerimentos aguardam até agora, sem resposta nem pagamento. Ou esperança, após o Governo desmentir o que escreveu na sua proposta de Orçamento de Estado (OE) para 2025, de algum dia assistirem ao descongelamento dessas rendas – mesmo se o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem vindo a exarar condenações sucessivas dos países que mantêm tal medida, considerando-a uma violação do direito à propriedade, consagrado na Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Em desmentido às notícias que na quinta-feira 10 de outubro anunciavam, com base na proposta de OE, o fim do congelamento, o Governo veio certificar, contra o prometido no programa eleitoral da AD, não pretender alterar tal regime. Em comunicado enviado às redações, a secretária de Estado da Habitação, Patrícia Gonçalves Costa, afirmou que a intenção é “garantir um tratamento justo tanto para inquilinos como para senhorios, assegurando a eficácia do mecanismo de compensação aos senhorios, pela função social que estes têm desempenhado ao longo de décadas”. Irene, 59 anos, tem muito a dizer sobre a eficácia do mecanismo de compensação e o tratamento justo assegurados pela governante. Proprietária de um T2 na Amadora herdado dos pais, é obrigada pelo Estado a prover, por via da sua propriedade, habitação a preço de bairro social – mais exatamente, 53 euros mensais. Tendo entregado, por via digital – a única admitida – o seu requerimento de compensação, que calcula em 144 euros mensais, ao Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) logo no primeiro dia de julho, conta mais de 100 dias sem resposta. Agora, garante, nem os telefones são atendidos no instituto: “Liguei a partir das nove horas desta quarta-feira [9 de outubro] e tem uma gravação a dizer ‘lamentamos mas não é possível estabelecer a sua chamada. Por favor tente mais tarde.’ Tentei umas 10 vezes e nada.” No grupo de Facebook “Senhorios – Rendas anteriores a 1990”, criado em julho para partilha de informação sobre o processo de compensação, com centenas de membros, outros proprietários queixam-se de também não conseguirem qualquer contacto com o IHRU: “Alguém aqui recebeu alguma comunicação? Até tentei telefonar, mas os números estão indisponíveis”, diz João Pires. O mesmo lamenta Carmindo Lopes: “Contacto há 3/4 dias. Mudos e calados.” No início de outubro, a administradora e criadora do grupo, Suéli de Carvalho, postara um apelo: “Quando alguém receber o pagamento ou comunicação do IHRU, por favor partilhem aqui no grupo.” Nos comentários, apenas descrença: “Isto vai ficar aqui até morrermos”, escreveu Daniel Lopes.Governo mantém “medida errada do Mais Habitação” – quiçá a cumpra em novembroRecorde-se que em agosto o IHRU, alegando dificuldades no processo pelas muitas questões colocadas pelos proprietários – a verdade é um pouco diferente, como o DN reportou, mas já lá vamos – anunciara que os pagamentos estavam atrasados, devendo iniciar-se em outubro (com retroativos ao momento do pedido). Porém o dia aprazado – o oitavo do mês -– passou sem que pingasse um cêntimo nas contas dos senhorios expectantes. E se até então todos os emails enviados para o gabinete de apoio ao arrendamento do IHRUeram respondidos com a frase “ainda nos encontramos na fase da análise dos pedidos submetidos e não dispomos de data de conclusão da análise”, a 10 de outubro surgiu uma nova versão: “Ainda nos encontramos em fase de análise. Previsivelmente os primeiros pagamentos serão efetuados no próximo mês.” Novembro, portanto. Por coincidência, esta informação do IHRU – que está desde o início do outubro para responder às perguntas do DN sobre o número de requerimentos que ali deram entrada, quantos tiveram parecer favorável e qual o motivo do seu atraso no cumprimento da lei – surgiu no exato dia em que o executivo de Montenegro entregou ao parlamento a proposta de OE. Na qual se comprometia a tomar “as medidas necessárias para a conclusão dos processos de transição dos contratos de arrendamento habitacional anteriores a 1990, de modo a repor a justiça”, garantindo “em contrapartida o apoio que permita aos arrendatários em situação de carência suportar a atualização das rendas”. Como já referido, tal comprometimento – consonante com a página 180 do programa eleitoral da AD, onde se lê “Revogação das medidas erradas do programa Mais Habitação, incluindo (…) congelamentos de rendas (aplicando subsídios aos arrendatários vulneráveis)” –, foi, logo no dia seguinte, renegado. Assim, o executivo AD assumiu como boa a medida “errada” do Governo Costa e não vai promover o processo de transição dos contratos anteriores a 1990 (ano no qual o Governo Cavaco Silva liberalizou o mercado de arrendamento habitacional, até aí vinculístico) para o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU). Ao contrário do que parece ser o entendimento geral, a transição destes contratos para o NRAU não implicaria entrarem no “mercado liberalizado”. De acordo com o NRAU, aos contratos anteriores a 1990 relativos a inquilinos com mais de 65 anos (a esmagadora maioria; decorreram 34 anos desde 1990) ou grau de deficiência superior a 60%, e “insuficiência económica” (que nos termos do NRAU corresponde a rendimentos anuais brutos corrigidos até cinco ordenados mínimos mensais – 4100 euros em 2024), seria aplicada, no máximo, uma renda correspondente a 1/15 do Valor Patrimonial Tributário (VPT) do imóvel, existindo ainda um subsídio estatal para inquilinos com a dita “insuficiência económica”. Tratar-se-ia, então, de algo muito semelhante à medida do Mais Habitação, com uma diferença: na transição para o NRAU, quem recebia um subsídio do Estado seriam os inquilinos. Percentagem considerável dos senhorios não tem direito a compensaçãoA escolha do Governo de António Costa – subsidiar os senhorios e não os inquilinos – nunca foi explicada, mas tendo em conta o desenho da medida e a escolha do valor de referência, a ideia terá sido gastar o menos possível, dificultando o mais possível o acesso ao “subsídio”. O estudo elaborado pelo IHRU sobre estes contratos (publicado em novembro de 2023) dava três alternativas de cálculo para a compensação: a do “valor de mercado” (calculado de acordo com o índice de preços do Instituto Nacional de Estatística/INE); a do programa de arrendamento acessível (20% abaixo do valor de mercado); e uma fórmula baseada no Valor Patrimonial Tributário, nos mesmos termos da do NRAU. A escolha foi a última, a que sai mais barata ao Estado e, consequentemente, menos compensa os proprietários: o estudo mencionado calculava que, para um universo de 125 mil contratos anteriores a 1990, o gasto anual seria no máximo 26,6 milhões de euros (correspondendo a uma compensação média de 17,7 euros/mês).Conclui-se pois que às baixas rendas congeladas correspondem “compensações” igualmente baixas. Isto porque, como o dito estudo informa, os VPT dos imóveis correspondentes aos contratos anteriores a 1990 são pouco elevados. Aliás, uma percentagem bastante considerável dos proprietários não tem sequer direito a compensação, porque a renda que recebem já é mais alta do que a que resultaria da divisão de 1/15 do VPT por 12 meses. Por exemplo um VPT de 35 500 euros, como é o do T2 de Irene, resulta numa renda de 197 euros; subtraindo os 53 que a inquilina lhe paga, a compensação que tem a receber do Estado é de 144 euros. Caso a inquilina dispusesse de um rendimento mais elevado – as rendas congeladas tendem a corresponder a uma percentagem do rendimento bruto corrigido dos locatários (era assim na chamada “Lei Cristas”, a alteração ao NRAU efetuada em 2012 pelo Governo Passos) –, digamos uma pensão na ordem dos 1200 euros, a renda seria 17% desse valor, ou seja 204 euros, superior ao correspondente à fórmula do VPT, e Irene não teria direito a compensação. E mesmo para os proprietários com direito a compensação o valor pode ser tão diminuto que não justifica o trabalho de a requerer. Aliás o processo – que no citado grupo do Facebook os senhorios referem como uma “corrida de obstáculos”– parece ter sido desenhado para a desistência. Desde logo, só se pode efetuar por via digital (quando mais de metade destes senhorios têm acima de 70 anos). E depois porque, como o DN noticiou em junho, não só são exigidos documentos que não foram atempadamente disponibilizados pela Autoridade Tributária, como o IHRU começou por apresentar um formulário digital desadequado (não previa mais de um pedido por proprietário nem mais que um senhorio para cada imóvel) e só com a alteração do mesmo, a 25 de julho, os requerimentos com essas características puderam ser apresentados. Era ainda necessário, para se poder indicar um IBAN no qual o IHRU depositasse a compensação, possuir chave móvel digital ou certificá-lo em notário (exigência que o instituto acabou por abandonar). Atualização da renda com base na inflação poupa dinheiro ao Estado Por outro lado, a lei exige que os proprietários passem pelo mesmo processo todos os anos. E que notifiquem, sob pena de perderem o direito à compensação, o IHRU sempre que procedam a uma atualização da renda pelo índice da inflação determinado pelo INE - o que puderam fazer nestes contratos este ano pela primeira vez, mantendo-se tal autorização em 2025. Isto porque, como explica o ministério da tutela em resposta às questões do DN, o valor da compensação "encolhe" a cada aumento da renda paga pelos inquilinos. Assim, a atualização é calculada apenas com base na renda paga pelo inquilino, e apenas pode ser aplicado se “se a renda, após atualização, não ultrapassar 1/15 do VPT”. Como, prossegue o ministério, “a compensação do Estado é igual à diferença entre a renda, em determinado momento, e 1/15 do VPT da habitação, (…) o montante da compensação do Estado ao senhorio diminuirá proporcionalmente ao valor da atualização da renda (…).” Apesar de a explicação indiciar o contrário, o ministério, perguntado pelo jornal sobre se a quantia relativa ao aumento decorrente da inflação reverte para o Estado, nega: “A quantia resultante da atualização da renda é do senhorio. O Estado não se apropria do acréscimo do valor renda resultante da atualização da mesma.” Sobre como se justifica que um aumento que decorre da inflação não beneficie os donos do bem em causa, compensando-os pelo agravamento dos preços, o ministério não apresenta resposta, e esclarece que a única forma de o proprietário ver aumentar o valor total que recebe é caso “o VPT seja atualizado e o seu valor aumente (por exemplo, devido a obras de reabilitação).”Não ficou claro porém se, para terem direito à compensação, os proprietários são obrigados a atualizar a renda. A resposta do executivo, tautológica, não é inteiramente esclarecedora: “Os proprietários/senhorios têm o direito de atualizar as rendas que decorrem de contratos de arrendamento anteriores a 18 de novembro de 1990, aplicando o valor do IPC (índice de preços ao consumidor), publicado pelo INE, não ultrapassando 1/15 do VPT. Podem, ou não, exercê-lo.” “Não mexem, é do tipo quem está mal fica mal”Não pode pois surpreender que os últimos números de pedidos de compensação “entrados”, segundo informação do IHRU à LUSA a 13 de setembro, não alcançassem 3000, correspondendo a uma “compensação média” de 216 euros e a uma percentagem ínfima do universo estimado de 125 mil contratos anteriores a 1990. O que será mais difícil de entender é que, sendo tão poucos os requerimentos e os requerentes obrigados a apresentar a “papinha toda feita” – todos os elementos documentais habilitantes – não tenha até agora existido qualquer pagamento ou, sequer, esclarecimento. Várias vezes confrontado pelo DN com o atraso do IHRU no cumprimento da lei, e com o facto de o processo, como está desenhado, implicar enormes dificuldades para os proprietários – desrespeitando inclusive uma recomendação recente da Provedoria de Justiça que reputa de inconstitucional a não existência de alternativas à via digital nos contactos com o Estado – o ministério das Infraestruturas e Habitação nada adiantou até ao momento, remetendo qualquer explicação para o IHRU. “Não tenho adjetivo para classificar isto, é revoltante”. É de novo Irene a falar. “Parece que estamos com uma cenoura à frente para ficarmos calados, anestesiados. Sendo que a situação tem décadas. Tenho uma casa em que sou a Segurança Social da pessoa. Obras são mais que muitas, agora são 7000 euros para o esgoto a dividir por oito frações (houve uma inundação e o seguro só paga parte) e em breve mais obras vão ser precisas pelo mesmo valor. Este ano abordei a inquilina sobre o valor da renda e disse-me que não se pode enervar e que a lei a protege. Isto enquanto os jovens não conseguem comprar casas e arrendam quartos a 400 euros e casas a mil e tal.” Como Irene, muitos destes senhorios herdaram a situação: são filhos, netos ou até bisnetos de décadas e décadas de rendas congeladas. Depois de tanta espera por justiça (nem “descontos” no IRS tinham até agora sido concedidos a estes proprietários; só em 2024 se efetivaram), o anúncio de quinta-feira sobre a “promessa” inscrita na proposta do OE não dissipou a mistura de desânimo, sarcasmo e raiva que caracteriza o grupo. A reviravolta subsequente foi recebida como a confirmação de um fado maldito. “O tema é politicamente inconveniente e incómodo. Arrasa votos e eleições futuras por muito que reconheçam a injustiça! Corrigir a distorção que resultou da legislação e se prolonga há décadas é para a sociedade em geral apenas mais rendas que aumentam! Justiça não interessa”, escreveu Alexandrina Pereira. Mário Silva corrobora: “Tudo o que façam nunca vai ser justo, não existe fórmula para haver justiça num assunto que tem décadas e décadas de injustiça. Este assunto se fosse popular, se desse votos, todos falavam e queriam resolver, mas é um assunto delicado, nada popular, pelo contrário. Não mexem, é do tipo quem está mal fica mal… Senhorios com rendas congeladas são um milhar, inquilinos um milhão eles preferem ficar do lado dos inquilinos.” Elda Gama resume: “Estavam à espera de milagres?”