“A minha filha tem 13 anos, anda numa escola pública em Lisboa e conta-me que os colegas, sobretudo os rapazes, cantam ‘Chega, Chega’ e a música ‘Isto não é o Bangladesh’ no recreio.”A informação vem de uma mulher de 43 anos cuja identidade o DN entende ocultar. A turma da filha, informa, tem muitas crianças filhas de imigrantes, várias delas de origem indostânica. Não são essas que cantam a música em causa, em cujo refrão se ouve, a rimar com Bangladesh, “tira os teus putos castanhos da minha creche”. Criada por um youtuber e divulgada num vídeo feito com recurso a Inteligência Artificial, alegadamente com o intuito de satirizar o discurso xenófobo e racista de André Ventura e do Chega (em alusão à menção, pelo líder e uma deputada do partido, de nomes de crianças alegadamente matriculadas num jardim de infância lisboeta, para “provarem” tratar-se de crianças “zero portuguesas” que teriam precedência sobre as “nacionais”, menção essa que foi objeto de uma carta de repúdio de seis associações de pais, de uma queixa-crime e de um processo cível), a canção foi apropriada pelo partido, que colocou o título num cartaz (ato que foi igualmente objeto de ações judiciais).A crer nos relatos que esta aluna do 8º ano faz à mãe, as crianças alvo da cantoria (ou seja, as oriundas do Bangladesh) não reagem: “Ou ignoram ou, se não ignoram, não fazem qualquer tipo de queixa.” Ao contrário, a filha de Sofia — vamos chamar-lhe assim — deu, em família, conta do seu incómodo. A mãe acha que essa sensibilidade se deverá em parte ao facto de terem sido elas próprias imigrantes no Reino Unido. “Estivemos sete anos no norte do país, e quando lá vivemos era a minha filha, como única portuguesa, a menina ‘diferente’. Dizia-nos que queria ser loira e de olhos azuis, queria ser igual às outras crianças. Pelo que acho que ela sente isto de uma forma mais pessoal.” A consciência da miúda também advirá, crê a mãe, de lá em casa, à hora do jantar, quando a família se reúne, falarem “muitas vezes destas questões da discriminação e do racismo sistémico”. Conversas que, supõe Sofia, não ocorrerão nas famílias dos miúdos que protagonizam os referidos cânticos, e que a filha descreve como “não imigrantes”. “Eles são um pouco papagaios nestas idades, repetem muito aquilo que ouvem”, reflete. “E a escola não faz nada em relação a isto.”“Conhecem mais o Chega do que tudo o resto”Não será bem assim. Ou melhor, depende. Dependendo de Rita (também não é o nome dela), 25 anos, professora de economia no secundário, na Grande Lisboa, a coisa não passa em claro. “No outro dia, numa turma que se porta particularmente mal, começaram a cantar o ‘Isto não é o Bangladesh’ durante uma aula. Exprimi o meu desagrado e quiseram saber porquê. Falei-lhes do estafeta imigrante que foi assassinado [Shamin Bhai, de 32 anos, natural do Bangladesh, mortalmente esfaqueado a 28 de setembro na Costa da Caparica, quando tentava recuperar a sua bicicleta, que lhe fora furtada]. Ficaram um bocado calados mas a seguir houve quem perguntasse ‘mas então o que é que ele estava a fazer?’”Rita tem um sorriso amargo na voz. “Noutra turma estávamos a falar de literacia financeira e uns alunos perguntaram ‘Sabe o que é que andam a fazer? O André Ventura falou disso, os imigrantes estão a tirar as coisas da Segurança Social’. Perguntei ‘Estão a tirar o quê?’, responderam: ‘Estão a tirar dinheiro.’ Quando questionei como tiravam o dinheiro não me souberam responder, porque não percebem sequer do que estão a falar. Estes miúdos não veem debates, não veem TV, não veem notícias. Veem coisas de 10 segundos descontextualizadas, no TikTok. E têm uma grande tendência para dizer que é tudo corrupção, que é tudo roubar.”Porém, nota Rita, aqui não se trata de pré-adolescentes, como no caso da escola da filha de Sofia, mas de jovens no 12º ano, alguns já com idade para votar. “Têm uma conversa bastante aberta comigo, dizem o que veem, quem seguem. E conhecem mais o Chega do que tudo o resto. Levam muito mais tempo a dizer o nome do primeiro-ministro do que o do líder do Chega. Para eles é tudo uma brincadeira, são um bocado infantis, não têm a consciência de que estas coisas têm um carácter político.”Aliás, informa esta professora, há jovens imigrantes que alinham nesse discurso. “Tenho muitos alunos cujos pais são oriundos dos PALOP, e um dos que disse que os imigrantes estão a tirar dinheiro da Segurança Social é imigrante ou filho de imigrantes. Claro que não lhe chamei a atenção para isso, mas pensei.” Como se lida com isso? “Eu sou o mais imparcial possível, como tem de ser”, responde Rita. “Tento ensinar pensamento crítico, dar informação.”“Os ciganos não são de Portugal”Os testemunhos de Sofia e Rita surgiram na sequência do noticiário sobre a agressão, numa escola do distrito de Viseu, a uma criança brasileira de 10 anos, a qual perdeu parte dos dedos de uma mão, entalada por colegas na porta da casa-de-banho. A tragédia, recorde-se, ocorreu a 10 de novembro e, dada a nacionalidade da vítima e o clima de hostilidade contra imigrantes de determinadas proveniências (entre as quais o Brasil, país de onde vem a maioria da imigração para Portugal) que tem vindo a ser alimentado por certos discursos políticos, surgiu de imediato a suspeita de que poderia ter sido motivada por discriminação. Uma suspeita que a mãe, Nivia Estevam, viria a adensar, narrando episódios anteriores: a 5 de novembro, afirmou aos media, o filho aparecera em casa com o pescoço marcado, tendo contado que um colega lhe puxara os cabelos e lhe dera pontapés; antes disso já comentara que a forma como falava português (com sotaque brasileiro) lhe era apontada amiúde por outros meninos, que se queixariam de não o perceber.Para já, não há uma versão oficial dos motivos da ocorrência: o caso está a ser investigado pelas autoridades e é objeto de um inquérito interno na escola. Mas Nivia garante que os seus alertas anteriores, referindo os episódios citados, foram ignorados. E que no próprio dia em que o filho teve os dedos mutilados lhe disseram na escola que se tratara de “uma brincadeira que correu mal”, nem sequer a advertindo logo de que o menino, que quando a mãe chegou estava com a mão ligada, perdera parte dela (foi, diz, um bombeiro que, na ambulância para o hospital, lhe deu os dedos decepados do filho).Face a estes relatos de Nivia, surgiram, no Instagram e Twitter/X, publicações dando testemunho de situações de discriminação protagonizadas quer por alunos quer por professores, assim como do entusiasmo de crianças e adolescentes com o partido de extrema-direita e os seus slogans e discurso anti-imigrantes. Publicações que, por sua vez, suscitaram comentários como o desta “mãe de três”, encontrado na conta de Instagram de @volksvargas: “Os mais velhos (13 e 11 anos) contam histórias de arrepiar sobre os colegas da turma gritarem ‘Chega’ no meio das aulas e andarem pelos corredores a cantar ‘O Ventura é o dono desta merda!’. A mais nova, de cinco anos, ontem chegou a casa a dizer que uma amiga da turma tinha dito que os ciganos não eram de Portugal. Com muita calma explicámos que na verdade os ciganos são de Portugal e que mesmo que não fossem isso não importa. Importa serem humanos. Isto assusta-me muito.”Outra, identificada como “mãe de um aluno do 10º, com 14 anos”, corrobora: “É verdade, miúdos repetem as frases xenófobas do Chega e gritam 'Chegaaaa' por tudo e mais alguma coisa.”No mesmo local, o funcionário de uma escola de Tavira assevera ser o “Isto não é o Bangladesh” a música mais cantada, e um professor de Educação Visual do 8º ano comenta: “É assustadora a quantidade de miúdos que ouvi a cantarem o refrão da música em diferentes turmas”. “Se não percebes a pergunta, vai para a tua terra”Trata-se, alegadamente, de cidadãos preocupados com aquilo que veem como um alastrar de slogans e ideias xenófobas e racistas entre os mais jovens — aquilo que, na citada carta de associações de pais e encarregados de educação em reação à utilização de nomes de crianças pelo Chega, é denominado de “narrativa de ódio” — e que o DN tentou ouvir, conseguindo chegar à fala com vários (outros não responderam aos pedidos de contacto do jornal). Entre os que responderam, para além das já citadas Sofia e Rita, está Maria (outro nome fictício), de 48 anos, com um filho de 13 no 8º ano da escola secundária Pedro Nunes, em Lisboa. Este contou-lhe que numa aula de Matemática a professora respondeu “se não percebes a pergunta, vai para a tua terra” a um aluno cuja língua materna não é o português.Os colegas, narra Maria, protestaram de imediato e queixaram-se à direção, assim como aos respetivos pais, que pediram explicações à diretora de turma. O DN contactou a escola, identificando a professora e perguntando se se confirmam os factos relatados, O jornal quis também saber quais os procedimentos, se alguns, adotados. A primeira resposta, assinada pelo diretor, agradeceu o interesse do jornal mas foi pouco esclarecedora: “Neste momento estamos a diligenciar no sentido de saber efetivamente o que se passou na sala de aula, apesar de no momento do seu contacto já estarmos a acompanhar a situação”. O DN insistiu e a escola, desta vez num email assinado por toda a direção, certificou que "foram ouvidos todos os intervenientes e contextualizada a situação. Mais: não existiu/verifica, até ao momento presente, a entrada de qualquer queixa formal nos serviços da Escola Secundária Pedro Nunes".Não há, na resposta, qualquer esclarecimento sobre o que significa a "contextualização da situação", tão-pouco a confirmação ou infirmação, que o jornal pediu logo de início, dos factos relatados, ou qualquer posicionamento sobre os mesmos. Maria nem quer acreditar. “Se não houve queixa como ouviram os intervenientes? Adivinharam o que se passou na aula? O que é que a direção considera uma queixa? É uma participação à Inspeção Geral da Educação e Ciência? Se é o que querem, vão ter." Suspira. "Que história. Ainda assim, o que me animou foi a indignação geral dos miúdos. Porque vai sendo raro acontecer.”Teresa, 41 anos, professora do 3º ano de escolaridade numa escola da Grande Lisboa, acredita, como a outra docente ouvida pelo DN, que só é derrotado quem desiste. E ela não desiste de tentar que os seus alunos aprendam a distinguir entre o certo e o errado — entre avaliar cada um pelo que faz e diz ou decidir que há grupos de pessoas, definidas pela origem, cor, etnia, nacionalidade, ou outra característica identitária, que merecem, à partida, animosidade e discriminação. Pelo que quando, em outubro, apanhou um deles, no regresso do recreio, a entoar “isto não é o Bangladesh” no meio da risada de alguns, disse-lhes para parar. “Ainda por cima tenho uma menina do Bangladesh naquela turma. Ela ficou um bocado parada, não sei se estava a assimilar a situação. Mas creio que depois, penso que pela forma como tratei do assunto, levou como uma brincadeira de mau gosto, sem outra intenção.”. “Acho que temos medo, nós, professores”E como tratou Teresa, a professora primária, do assunto? “Primeiro perguntei ao rapaz por que estava a cantar aquilo, e ele esclareceu que leu nos cartazes do Ventura, ‘que é o maior’. A seguir disse-lhes, com toda a calma, que é preciso ter cuidado, até porque os portugueses já estiveram em situações semelhantes. Expliquei o processo migratório que houve para França nos anos 60 do século passado, em busca de uma vida melhor, fugindo à pobreza, como foram tratados os portugueses e como viviam lá, e que há países de onde as pessoas fogem pelas mesmas razões ou por causa da guerra (tenho um aluno do Afeganistão e outro da Ucrânia). Perguntei-lhes o que achavam de serem colocados nessa situação. Falei-lhes também, até porque faz parte da matéria do 3º ano, de Estudo do Meio, na Declarações Universais dos Direitos da Criança e dos Direitos Humanos.” A reação foi satisfatória, crê. “Eles depois entendem que gostam uns dos outros e não querem que os meninos do Bangladesh e do Afeganistão se vão embora, querem que fiquem e reconhecem-lhes o direito de procurar uma vida melhor. Acho que os fez repensar. Pelo menos nunca mais se referiram a estrangeiros e até já me vieram fazer queixa de alunos de outras turmas que dizem ‘não sei o quê do Bangladesh’. Ou seja, fazem o processo contrário, assinalam o erro dos outros.”Ainda assim, não está otimista. “Não sei se de hoje para amanhã não volta a acontecer. Porque em casa a aula de história será outra. Até porque não é a primeira vez que me deparo com este tipo de situação. Há dois anos fui professora no Norte e em relação aos alunos brasileiros surgiam alguns comentários um bocado tristes.” De que tipo? “Os zucas [de “brasuca”, termo derrisório para brasileiro] vêm para aqui, só querem tirar os empregos aos nossos pais, e esse tipo de comentários. Na altura, até com alunos do segundo ano [sete anos de idade].”Questionada sobre se as escolas estão preparadas para lidar com esta realidade, Teresa hesita. “Depende muito de cada professor. Na minha sala de aula abordo esses temas da melhor maneira possível. Não garanto que isso se passe com os meus colegas. Quanto ao agrupamento, tem algumas atividades de inclusão, vamos fazendo algumas coisas. Mas sou muito sincera: acho que temos medo, nós, professores. Não falo de mim, mas sinto que há colegas que têm receio de entrar por esses campos. É como o tema da igualdade de género, há quem não aborde por medo de que os pais façam queixa. Acho que não se faz mais por medo.”Respira fundo. “E é terrível, porque estamos aqui a formar cidadãos. Eu falo para eles como futuros adultos, falo tudo o que tenho a falar, com o filtro necessário, para que eles possam, no futuro, tomar as decisões certas. Mas tenho a certeza de que tenho colegas que não o fazem porque no dia seguinte pode estar aqui um pai a dizer ‘Você falou do André Ventura, ou disto ou daquilo.’ Eu contorno: falo do regime fascista que existiu antes do 25 de Abril, e para eles um dia poderem comparar. E digo-lhes que a história nos ajuda a perceber o que está a acontecer, para não cometermos os mesmos erros. Porque antes de engenheiros, médicos, professores, estamos a formar pessoas. Eu estou a tentar.”."Em Portugal não gostam de pessoas mais escuras"."Um negro português não faria o que Marega fez. Estamos habituados a meter para dentro".Machismo tóxico: “A escola é extremamente ignorante sobre isto”.Quantas vezes falou com o seu filho sobre racismo?