Gagandeep Singh lembra-se de quando chegou a Portugal, depois de ter saído do Punjab, região no noroeste da Índia. Era o início dos anos 2000 e não era tão comum ver pessoas de Dastar (turbante) nas ruas. “As pessoas sorriam para mim, tinham curiosidade, eram gentis”, recorda um dos líderes da comunidade Sikh de Lisboa. Hoje, o templo comunitário Gurdwara - que serve refeições gratuitas aos fiéis 365 dias por ano e promove várias atividades - é alvo de protestos e agressões, como a promovida pelo grupo extremista Reconquista recentemente. Mas esta não é a principal preocupação do imigrante: são, sim, as crianças. “Antes não víamos as crianças a sofrer com preconceito. Agora, nas escolas, elas são alvo. Mas aprendem isto com quem? Com os adultos, uma criança não aprende sozinha a dizer ‘vai pra tua terra’, diz ao DN, num português com pouco sotaque, aprendido nos primeiros anos de Portugal. De acordo com o imigrante, esse tipo de comportamento contra miúdos é mais recente. “Nunca foi um problema usar as nossas roupas ou um pequeno turbante para as crianças, que usam porque querem, mas agora tem sido”, explica. A viver há mais de 20 anos em Portugal, Gagandeep Singh viveu as várias fases do país na área de imigração. Salienta não ter dúvidas de que este momento é um dos mais perigosos, mas que ainda vai piorar, especialmente para as crianças, conforme os vários relatos que chegam diariamente ao templo - milhares de pessoas passam por ali semanalmente. “As pessoas estão com medo. As crianças estão com medo, os pais e mães estão com medo”, explica. Segundo frisa há casos de crianças a ser ofendidas e atletas Sikh impedidos de participarem em torneios desportivos. “O que já faziam com os adultos, ser um alvo, estão a fazer com crianças. Um ambiente assim, nas escolas, nas universidades, não é saudável, é muito preocupante”, reflete. “Elas estão a perder a alegria de viver aqui”, complementa.Gagandeep Singh, que tem uma empresa de tecnologia e emprega 11 pessoas, começou a ver o cenário em Portugal mudar quando fotos e vídeos de pessoas da comunidade Sikh foram divulgados nas redes sociais do Chega. “As pessoas passam horas por dia na internet. Se assistem a vídeos com mensagens de ódio, qual vai ser o resultado?”, questiona. Além dos insultos contra as crianças já há algum tempo que percebe existir um aumento da tensão contra todas as pessoas da comunidade, como condutores de TVDE, entregadores de refeições por aplicativo e mesmo pessoas a andar na rua. “Estão a viver com medo todos os dias, porque não sabem o que vai acontecer quando saírem na rua para trabalhar”, detalha.Outro episódio de medo foi quando o líder da Reconquista, Afonso Gonçalves e com ligações ao Chega, foi até a entrada do templo intimidar os imigrantes. “Veio quando o templo estava cheio. Colocámos as crianças e as mulheres lá dentro, mas não fizemos nada, chamámos a polícia, ou então nós é que íamos ser os vilões”, explica. Afonso Gonçalves foi ao local com uma faixa em que se lia: “Estamos em Portugal. Onde estão os portugueses (sic)? Remigração”.Além destes episódios de violência, Singh vê que outro resultado deste cenário político em Portugal é a divisão entre as próprias comunidades imigrantes. “Assim eles nos dividem, mas temos que ser unidos, porque somos todos imigrantes, saímos de um país em busca de uma vida melhor em Portugal”, salienta. O líder chegou a marcar uma reunião na Assembleia da República (AR), mas que não foi realizada, mas quer mesmo falar com o líder do Chega, André Ventura. E o que quer dizer ao deputado? O imigrante responde sem hesitar: “Eu só quero dizer, por favor, deixa a minha comunidade em paz. Também não apoiamos quem comete crimes e somos contra, mas a maioria das pessoas trabalha, quer viver em paz e não faz mal a ninguém”. Cita que os fiéis Sikh - cerca de 85.000 em todo o país, nas contas do religioso - são pessoas “pacíficas, vegetarianas, que meditam e que gostam de ajudar os outros”. O sikh diz que percebe as críticas sobre o idioma, mas destaca que a prioridade dos que chegam é conseguir um emprego para “sobreviver” e depois aprender português, salientando também a dificuldade de conciliar o trabalho com os horários disponíveis de aulas de português.Nomes de crianças lidos pelo ChegaSegundo Gagandeep Singh, o vídeo da deputada Rita Matias a ler os nomes de crianças e o facto de André Ventura o fazer no Parlamento foi “chocante” e que este tipo de atitude fomenta o ódio contra as crianças. Esta semana, o Ministério Público (MP) confirmou a abertura de inquérito contra os dois deputados. “Estes senhores são zero portugueses”, disse André Ventura, perante os aplausos de pé da sua bancada, considerando que as crianças imigrantes mencionadas passaram à frente de crianças de nacionalidade portuguesa na lista para conseguirem um lugar na escola pública. Na altura, o líder do Chega disse que a lista era “pública”, mas a deputada Rita Matias admitiu posteriormente que não tinha confirmado a “veracidade” dos nomes. Na sequência da divulgação da lista, dirigentes associativos, partidos políticos e cidadãos anunciaram publicamente que iriam apresentar queixa contra o facto de o Chega ter divulgado nomes de origem estrangeira de crianças que frequentam uma escola portuguesa. Logo depois da notícia do inquérito ser tornada pública, André Ventura afirmou ter a certeza que apenas usou o direito de liberdade de expressão. “Estou confiante de que chegaremos ao fim e perceberemos que esta é uma questão de liberdade política, de ação política e de discurso político”, afirmou, salientando que, em casos parecidos como este, incluindo em processos que o envolveram, a Justiça concluiu que estava “na linha da liberdade de expressão”..Pai de criança referida pelo Chega promete avançar com queixa contra Rita Matias.É justamente pelas escolas que aumenta a preocupação de Gagandeep Singh, não só pelo preconceito crescente contra as crianças, mas também pelas dificuldades que enfrentam. “Bullying entre crianças é uma coisa, faz parte, mas este comportamento não. Se as crianças estiverem educadas, se alguém dizer que não pode ser assim, elas vão aprender”. E, para o imigrante, a educação é “simplesmente tudo”. O líder da comunidade cita o facto de que muitas crianças perdem um ou dois anos até conseguir entrar na escola e ficam atrasadas no ensino, além de avaliar que algumas escolas não estão preparadas para o ensino do português e das demais disciplinas adequada à realidade das crianças que vêm de fora de Portugal. “Isso é matar o futuro”, resume o imigrante, que é filho de um piloto da força aérea que dava aula a outros pilotos, além de ser casado com uma professora de matemática.. Projetos na área de educaçãoPor acreditar na educação, o imigrante está a planear projetos nesta área, com foco no ensino de disciplinas para as crianças. “Queremos dar aulas de português, matemática, ciências. Queremos que elas possam entrar na universidade no futuro, serem médicas, enfermeiras, que vivam em Portugal”, explica. Outro projeto passa por financiar bolsas de estudo para estes futuros universitários. Singh acredita que o combate ao preconceito passa pela integração, a qual passa igualmente por ter pessoas da comunidade Sikh nos empregos referidos em Portugal. Com uma vida financeira confortável e um negócio próspero, agora sublinha que está empenhado nestes projetos, voltados ao futuro. Questionado de sempre teve esta ideia, responde do DN que não, que nunca foi o objetivo, mas passou a ser quando viu a sua comunidade sofrer com o preconceito que antes não viviam. Além disso, o líder da comunidade assinala que todos estão sempre disponíveis para ajudar e faz contactos neste sentido, mas nem sempre consegue. “Por exemplo, nos casos de incêndios, ofereci ajuda, posso mandar 20, 30 pessoas para ajudar, mas nunca pediram”, conta. “A nossa comunidade está pronta para ajudar Portugal. Estou pedindo ajuda para isso, para que nos abram a porta, não estou a pedir dinheiro, estou a pedir que nos ensinem o caminho porque estamos a aprender a andar”. amanda.lima@dn.pt.Governo fecha as portas ainda mais à imigração. “Economia terá que se adaptar”, diz ministro.Grupos extremistas influenciam Chega a falar sobre remigração