José Ribeiro, coordenador  de investigação criminal da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime  e à Criminalidade Tecnológica.
José Ribeiro, coordenador de investigação criminal da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica. Foto: Reinaldo Rodrigues

Organização criminosa chefiada por mulheres fez 60 casamentos arranjados entre portuguesas e imigrantes

Segundo soube o DN, a maior parte das nubentes são jovens, entre os 20 e menos de 30 anos, com situação económica vulnerável. Nalguns casos houve mesmo o recurso à ameaça. PJ desmantelou o grupo.
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Em troca de “alguns milhares de euros”, 60 mulheres portuguesas - nascidas em Portugal - aceitaram casar com cidadãos estrangeiros por conveniência, para que estes pudessem obter um título de residência. Eram a base da pirâmide de um arrojado esquema criminoso desmantelado pela Polícia Judiciária (PJ) ontem, na operação Aliança Digital. Foram mais de dois anos de investigação, realizada pela unidade Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica.

Na base desta organização estavam as nubentes, que eram angariadas por outras mulheres, que estavam um degrau acima no esquema criminoso. Por fim, no topo desta pirâmide ficavam mais mulheres, as organizadoras de todo o esquema, soube o DN. Segundo revelou em conferência de imprensa na tarde de ontem José Ribeiro, coordenador de investigação criminal da unidade, praticamente todas as mulheres envolvidas foram detidas. Em causa estão crimes como auxílio à imigração ilegal e falsidade informática.

As mulheres procuradas para os casamentos de conveniência estavam em situação de vulnerabilidade económica, por isso, aceitavam os valores pagos pelos imigrantes às mandantes do esquema criminoso. “As angariadoras conhecem as fragilidades, as vulnerabilidades financeiras, em particular. São pessoas que passam por momentos de fragilidade. Sabendo disso, aproximam-se, fazem a proposta, mostrando esse esquema como ‘algo muito fácil’, disse ao DN fonte familiarizada com a investigação.

A estas nubentes, era dito que após os cidadãos obterem a nacionalidade portuguesa poderiam divorciar-se e que não teriam nenhum problema. O pedido de nacionalidade portuguesa devido a casamento pode ser solicitado após três anos de matrimónio - sendo que a análise pode demorar anos. Com isto, a PJ concluiu que nenhum dos imigrantes realizou o pedido de naturalização. “Falamos de noivas e noivos que não se conheciam de parte nenhuma, que apenas se encontraram para registar o contrato de casamento e nunca mais se voltaram a ver”, explicou José Ribeiro.

Há casos em que algumas das mulheres já tentaram o divórcio e estavam com dificuldades em obtê-lo. Um dos principais entraves é o facto de que todos os maridos já não estão em Portugal, mas sim, em outros países do Espaço Schengen e sem contacto algum com as falsas esposas. “Aliás, essa tem sido até uma grande dificuldade, fazer regressar esses noivos a território nacional para obter o divórcio”, complementa o coordenador da investigação.

Uma fonte familiarizada com esta investigação afirma que estas mulheres “veem seu futuro comprometido, com uma série de dificuldades associadas”. Houve ainda casos de recurso à ameaça por parte das mandantes do esquema criminoso. “Num ou no outro caso, havia o compromisso, mas depois havia a concretização. O que isto significa? Faz-se a proposta, aceita-se, o cliente sabe que tem uma noiva em Portugal, faz o pagamento e a viagem. Só que depois, quando está a chegar à ‘noiva’, ela, pensam ‘afinal não quero’, porque caí em mim, afinal já não preciso tanto do dinheiro”, conta, exemplificando um dos casos em que houve ameaça.

As nubentes são todas mulheres jovens, entre 23 e menos de 30 anos. Com o passar do tempo, existiu o “boca a boca”, ou seja, a informação sobre o esquema foi sendo transmitida, além de as angariadoras saberem onde procurar estas mulheres para os casamentos, sobretudo na Grande Lisboa. Foi também nesta zona onde a maior parte dos casamentos foram realizados em conservatórias.

Cooperação para encontrar os “noivos”

Pela envergadura da operação, a PJ decidiu nesta primeira fase ir em busca das nubentes e das angariadoras do esquema criminosa. Uma outra fase da investigação será realizada para tentara indiciar os imigrantes, já identificados pela PJ, mas a viver em outros estados do Espaço Schengen.

A Polícia Judiciária recorrerá à cooperação europeia para encontrar estes indivíduos. “Obviamente não foi possível, com uma operação desta envergadura, envolver as atividades de outros países, para fazermos também a sua detenção e interrogatório”, detalha José Ribeiro. A Lei dos Estrangeiros prevê que um título de residência obtido mediante fraude documental pode ser cancelado.

Falsidade informática na origem desta investigação

A operação Aliança Digital começou em 2023 e identificou que a divulgação do esquema criminoso era feita nas redes sociais e se tornou popular de imediato. Inicialmente, a fraude era realizada com a abertura de empresas em território nacional para posterior pedido de título de residência. No entanto, explica o coordenador da investigação, pela alta complexidade do procedimento o modus operandi foi alterado. “Inicialmente, era proposto aos clientes imigrantes a constituição de empresas, obviamente que isto envolve alguma complexidade, como devem imaginar, o registo, a autoridade tributária, a abertura de contas bancárias, etc. Mas, rapidamente, perceberam que os casamentos de conveniência eram um esquema muito mais fácil, muito mais rápido de obter essa autorização de residência”, explica.

Outro empecilho do primeiro esquema era que obrigava os estrangeiros a permanecerem por algum tempo em território nacional. “Além de muito complexo, era muito difícil esse procedimento, porque obrigava a que os noivos permanecessem em território nacional durante algum tempo, e esse não era o interesse dos noivos”, explica. A solução encontrada pelos esquema criminoso foi o recurso aos casamentos brancos. A PJ preferiu não informar a nacionalidade dos imigrantes que recorreram a este esquema de fraude, mas o DN sabe que eram cidadãos argelinos.

Este tipo de crime não é novo

Os relatórios anuais do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) já referiam esta criminalidade associada aos fenómenos migratórios, entre eles, os casamentos por conveniência. Numa análise desde 2020, este tipo de crime tem vindo a subir. No relatório de 2020 foram identificados 20 casos e 78 arguidos pela prática deste crime. Em 2021 foram 27 casos e 79 arguidos. Já o relatório de 2022 trazia o dado de que foram identificados 19 casamentos de conveniência naquele ano, com 52 arguidos por este tipo de crime. Já em 2023 não é possível saber quantos aconteceram, porque o relatório da Agência para Integração, Migrações e Asilo (AIMA) não tem essa informação. Desde o fim do SEF, a AIMA não possui competências para investigação destas criminalidades associadas aos fenómenos migratórios.

O relatório do SEF de 2021 frisava no capítulo da atuação internacional que o combate aos documentos falsos era uma das prioridades. Naquele mesmo ano, agentes do SEF participaram “enquanto líder, na ação operacional 2.14 - Operação Bride, que foca as suas atividades no combate ao fenómeno dos casamentos de conveniência (sham marriages)” e também na “operação ZUMA, em conjunto com as autoridades do Reino Unido (envolvendo as agências de investigação da Escócia e Inglaterra) que investiga crimes de casamento de conveniência”.

Com uma pesquisa no site da Europol encontram-se diversas operações policiais em vários países europeus para combater este fenómeno, que possui semelhanças no modo de operar. Em 2024, uma rede criminosa foi desmantelada no Chipre.

Já em 2020, uma operação da Polícia Espanhola, apoiada pela Europol, desmantelou uma rede criminosa acusada de orquestrar pelo menos 50 casamentos brancos. A cobrança era de 20.000 euros por cada casamento. O mesmo aconteceu naquele ano na Alemanha, quando o líder uma organização acusada deste crime foi preso.

No início deste ano, a câmara alta do Parlamento francês aprovou um projeto de lei que limita as regras de casamento de imigrantes com cidadãos franceses. O argumento utilizado era de que trata-se de uma medida para combater a imigração irregular, nomeadamente os casamentos brancos. Os relatos da imprensa francesa são de que o país possui cerca de 400 casos de casamentos fraudulentos a cada ano, com ofertas que chegam aos 10.000 euros para quem aceitar o casamento.

amanda.lima@dn.pt

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