Miguel Castelo-Branco, médico e investigador na área do autismo
Miguel Castelo-Branco, médico e investigador na área do autismoFOTO: Fernando Fontes / Arquivo Global Imagens

Miguel Castelo-Branco: “Não está provada uma associação, muito menos uma causalidade, entre Paracetamol e autismo”

Em entrevista ao DN, um dos maiores especialistas nacionais no estudo do autismo rejeita o recente anúncio de Tump e alerta que este tipo de declarações, “sem base científica”, pode encontrar terreno fértil numa comunidade em busca desesperada de respostas. “O autismo está na última fronteira de complexidade”, diz. “Continua a ser muito enigmático e ainda não temos marcadores biológicos”.
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Médico, investigador e diretor do Centro de Imagem Biomédica e Investigação Translacional (CIBIT) da Universidade de Coimbra, Miguel Castelo-Branco é uma das vozes mais respeitadas no estudo do autismo. Ao longo das últimas duas décadas, tem procurado decifrar os mecanismos do cérebro autista e explorar novas formas de intervenção terapêutica, da farmacologia ao uso pioneiro de terapias de reabilitação e de intervenção neuocognitiva, que envolvem até jogos de realidade virtual. Esse trabalho tem-lhe valido vários prémios e reconhecimento internacional, mas há também uma superior motivação pessoal: é, ele próprio, pai de um jovem autista.

Entre a ciência de ponta e a experiência pessoal, a sua perspetiva combina rigor académico e sensibilidade humana. É com esse olhar credenciado que reage às palavras do presidente norte-americano Donald Trump, que associou o autismo ao uso de paracetamol durante a gravidez. Para Castelo-Branco, trata-se de mais um exemplo de alegações "sem fundamento científico", vindas de um político que já antes deu provas de ignorar a Ciência.

Como reage ao anúncio feito por Donald Trump, e pela sua administração, de que o Paracetamol pode estar associado a casos do espetro de autismo?

Não tive tempo de ler os artigos que dão suporte a isso, mas em geral, no autismo, nós apanhamos muito destas, não diria fake news, mas notícias com muito pouco fundamento científico.

Mas não estamos habituados a vê-los transmitidos por um presidente de um dos principais países do mundo.

Pois, mas ele também tem historial… a começar pela Covid. Falando de uma forma muito franca, o presidente americano, mesmo na questão da Covid, não ouvia os cientistas. Portanto, ele não tem credibilidade científica para um statement desses, não é?

Era precisamente isso que lhe ia perguntar, se há alguma evidência científica recente que sustente esta tomada de posição nesta altura?

 Eu não tenho qualquer conhecimento de evidência que suporte, e o conhecimento que tenho, como lhe digo, é sem uma análise aprofundada desses artigos. Pode aparecer um artigo científico com uma amostra relativamente pequena, que não é representativa da população. Os estudos que existem com populações maiores, e até da revisão da literatura, não suportam de maneira nenhuma esse claim (alegação). Nós somos quase todos os dias confrontados com claims que depois se verificam não serem verdadeiros.

Também se tentou associar o autismo com as vacinas [uma associação mencionada até pelo atual responsável da Saúde na administração norte-americana, Robert Kennedy Jr.]

 Sim. Houve um trabalho no final dos anos 90, que relacionava a vacinação com o autismo, mas foi provado que era fraude. A investigação era uma fraude. E, todavia, não se conseguiu apagar essa alegação. Ainda hoje continuam a ser mencionados os resultados, quando a própria revista que os publicou já se retratou e os considerou uma fraude. Não estou a dizer que seja aqui o caso do Paracetamol.

Miguel Castelo-Branco, diretor do Centro de Imagem Biomédica e Investigação Translacional (CIBIT) da Universidade de Coimbra
Miguel Castelo-Branco, diretor do Centro de Imagem Biomédica e Investigação Translacional (CIBIT) da Universidade de CoimbraFernando Fontes / Arquivo Global Imagens
Houve um trabalho no final dos anos 90, que relacionava a vacinação com o autismo, mas foi provado que era fraude. A investigação era uma fraude. E, todavia, não se conseguiu apagar essa alegação

Mas a referência ao Paracetamol, em si, é nova ou já tinha havido antes algumas tentativas de ligação anteriores?

 É muito frequente haver estudos, a que nós chamamos de estudos epidemiológicos, que tentam relacionar determinadas manifestações clínicas com a ocorrência de determinadas doenças. São estudos que por vezes, não estabelecendo uma causalidade, estabelecem uma determinada associação. Neste caso, nem sequer está provada uma associação, muito menos uma causalidade. É normal na saúde pública tentar verificar se há uma associação entre a toma de fármacos e algum tipo de evento clínico. Isso faz parte do avanço do conhecimento. É importante haver registos que mostrem se existe ou não, mas até agora, que eu saiba – e repare, eu não estou particularmente interessado no Paracetamol nas minhas investigações -, não há qualquer evidência que sustente esse tipo de recomendação como a que foi feita pelo presidente norte-americano.

Fazendo um enquadramento, o que é o autismo e porque é que o estudo desta condição continua tão complexo nesta altura?

Há aqui duas coisas. Primeiro, o autismo não tem cura e há vários tipos de severidade. Mas também não há medicamentos que abordem os sintomas primários do autismo. Não há nada. E como não há nada, há uma procura, eu diria desesperada – e eu tenho também um filho com a síndrome do autismo - por respostas terapêuticas que não existem. Existem alguns medicamentos que minoram certos sintomas e que têm efeitos secundários. E há formas graves de autismo, como o autismo de severidade 3, em que as famílias têm sempre mais desespero, porque muitas vezes está associado à epilepsia e a comportamentos que não são adaptativos. E, portanto, há uma grande recetividade da parte da comunidade quando aparecem anúncios quer sobre o risco de autismo, quer sobre novos medicamentos. Há uma grande procura de respostas para diminuir fatores de risco e para procurar terapias. Por outro lado, o autismo continua a ser muito enigmático e ainda não temos marcadores biológicos.

Não há medicamentos que abordem os sintomas primários do autismo. Não há nada. E como não há nada, há uma procura quase desesperada por respostas terapêuticas que não existem.

Ainda se sabe muito pouco, cientificamente, sobre as possíveis causas do autismo?

As pessoas falam muito da genética, e já ouvi até divulgadores de ciência dizerem que a genética explica 80% dos casos de autismo. Isso não é verdade. Há formas de autismo que têm uma causa genética clara, como por exemplo a esclerose tuberosa, mas essas formas são relativamente raras – 1 a 2% dos casos - e têm muitos outros tipos de sintomas, não só o autismo, como epilepsia, alterações cardíacas ou renais. O autismo tem uma hereditariedade forte, ou seja, dentro da mesma família a probabilidade está aumentada, mas isso não quer dizer que haja um gene a causar o autismo. Os critérios de diagnóstico do autismo são de observação e são clínicos. Não há nenhum exame, neste momento, biológico que diga se a pessoa tem autismo ou não. Não há nenhum biomarcador. E, basicamente, os critérios de diagnóstico são as dificuldades na comunicação e os comportamentos repetitivos.

Não há nenhum exame, neste momento, biológico que diga se a pessoa tem autismo ou não. Não há nenhum biomarcador.

Tem-se evoluído pouco, nos últimos anos, na compreensão do autismo?

Eu sou investigador da área do autismo, não posso dizer isso. Nós percebemos muito melhor porque é que aqueles sintomas aparecem, porque é que as pessoas tendem a ser mais obsessivas, mais compulsivas, tendem a ter mais comportamentos repetitivos. Nós sabemos muito já da neurobiologia do autismo, ou seja, porque é que a célula funciona de forma diferente. Mas isso não é ainda suficiente para termos medicamentos. Aliás, a investigação que eu faço, apesar de também se tentarem abordagens farmacológicas, vai mais na intervenção neurocognitiva, na reabilitação, técnicas que melhorem o comportamento adaptativo.

Podemos perspetivar alguns avanços significativos neste campo nos próximos anos, face ao que vai sendo feito na investigação, ou ainda estamos muito “às escuras”?

 Eu acho que vamos ter avanços significativos no tema a que  chamamos neuroreabilitação, que é encontrar métodos para melhorar a vida no dia-a-dia. As competências sociais, a capacidade da pessoa se adaptar a novos ambientes, ou seja, é mais a intervenção nas competências. Nisso eu acredito que as novas tecnologias vão proporcionar uma evolução enorme.

E é nesse campo que está a trabalhar também, na sua investigação?

Sim. O meu trabalho consiste em perceber porque é que o cérebro é diferente, e, sabendo porque é que o cérebro é diferente, como é que nós encontramos técnicas de reabilitação que desenvolvam a autonomia, o bem-estar, diminuam a ansiedade… no fundo, trabalhar na aceitação de que são pessoas diferentes. Porque nós não vamos mudar um cérebro que tem um circuito demasiado complexo. O autismo está na última fronteira da complexidade. Nós não vamos curar, não vamos mudar circuitos, vamos é tentar treinar as pessoas que precisam de maior autonomia a ter um melhor desempenho na sociedade. Ao mesmo tempo não ignorando que é importante perceber melhor a biologia e, por exemplo, se houver um medicamento melhor para epilepsia e autismo, porque não?

Acho que vamos ter avanços significativos no tema a que  chamamos neuroreabilitação, que é encontrar métodos para melhorar a vida no dia-a-dia. As competências sociais, a capacidade da pessoa se adaptar a novos ambientes, ou seja, é mais a intervenção nas competências.

Mas consiste exatamente em quê a investigação que lidera? Sei que envolve jogos e ambiente virtual, certo?

Nós tentamos estudar o funcionamento do cérebro num contexto mais realístico possível. Isso envolve jogos que podem servir para perceber o funcionamento do cérebro, mas também podem servir para a reabilitação. Nós hoje ouvimos falar muito nos jogos sérios para treinar competências, e estes servem toda a população. Temos jogos para treinar presidentes de Câmara, para desenvolver melhor as capacidades de gestão. Isso não é usado aqui em Portugal, mas é muito usado na Holanda, por exemplo. Aqui estamos a falar de jogos para desenvolver competências que estão alteradas no autismo.

Para fechar o círculo, e voltando aqui ao ponto de partida: preocupa-o que o Presidente daquela que é considerada a maior potência mundial tenha este tipo de intervenção pública sobre um problema tão sério e complexo quanto o autismo?

 A mim preocupa-me, porque ele não tem idoneidade científica e já mostrou que não sabe ouvir a comunidade científica. Estou a ser, se calhar, um bocadinho assertivo, mas para o impacto que têm as declarações de uma pessoa como ele, devia atender a uma base científica. Não quero aqui fazer um discurso anti-Trump, mas no que concerne à Ciência, ele devia fundamentar-se e ouvir os cientistas.

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