Em janeiro, as escolas receberam 268 profissionais com uma missão: ajudar na integração dos mais de 140.000 estudantes estrangeiros matriculados (número que entretanto subiu para 157 mil, como revelou o DN). São os chamados mediadores linguísticos e culturais, uma figura nova, mas reivindicada há muito por especialistas em Educação para melhorar o acolhimento das crianças vindas de outros países, em especial dos que não falam português. Ana Azevedo, licenciada em Ciências da Comunicação e com doutoramento, é uma destas 268 profissionais. Com atuação também na área de imigração através de voluntariado, ações sociais e passagens por salas de aula, viu a vaga aberta e pensou ser uma boa oportunidade profissional. Munida de uma orientação dada pela Direção-Geral de Educação (DGE), em conjunto com a direção da escola onde atuou, em Lisboa, começou a planear aquilo que seria o trabalho.O mesmo aconteceu com a brasileira Thaís Brito, outra mediadora que viu na vaga uma oportunidade de trabalhar em algo que considera essencial, a integração das crianças migrantes nas escolas. Ambas as profissionais relataram o mesmo ao DN: os primeiros meses de trabalho foram para descobrir o que é ser um mediador, porque as ordens não foram claras e específicas sobre o que fazer e como atuar. “As próprias escolas ainda não sabiam muito bem o que fazer com os mediadores, o que eu acho que é natural, por ser o primeiro ano. As diretivas eram bastante gerais, tivemos de desbravar tudo”, conta ao DN Ana Azevedo..“Eu é que defini quais eram as funções, porque também não estava muito claro da parte do ministério quais eram, exatamente, as funções da mediação cultural. Ficámos todos um pouco perdidos, sentámo-nos e vimos as necessidades do agrupamento. A partir daí, fui intervindo com cada uma das crianças que eram prioritárias”, relata Thaís Brito. Outro relato, de uma mediadora, que pediu anonimato, é semelhante. “As direções não sabiam bem o que fazer, porque não receberam pormenores de como seria o nosso trabalho”, conta.Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), também concorda, mas faz a ressalva de que é por ser algo novo. “Nós nunca tivemos os mediadores, uma figura nova. É normal que se tenha de fazer alguns ajustes no trabalho que eles fizeram, até porque só o fizeram durante meio ano letivo”, diz ao DN. Ao mesmo tempo, defende que as escolas tenham autonomia para decidir sobre as atividades, de acordo com a realidade de cada estabelecimento de ensino.De facto, o cargo é novo e foi lançado em janeiro. Com burocracias, algumas escolas só receberam mediadores em março, a poucos meses do fim do ano letivo. O mesmo pode acontecer neste arranque de ano escolar, porque, novamente devido à burocracia, os contratos não podem ser renovados e as escolas terão, assim, de abrir novamente procedimentos concursais. “Tendo em conta a data da sua primeira contratação, os mediadores linguísticos e culturais não estão abrangidos pela renovação, sendo necessário abrir procedimento concursal. Nesse sentido, os diretores poderão contratar os mesmos mediadores linguísticos e culturais ou poderão optar por contratar outros candidatos que se apresentem a concurso”, explica ao DN fonte oficial do Ministério da Educação, Ciência e Inovação. O Governo autorizou a contratação de 310 profissionais, mais 42 do que no ano anterior. “Um trabalho essencial”As profissionais entrevistadas pelo DN querem continuar a trabalhar como mediadoras. Apesar do desafio inicial de começar algo totalmente novo, ambas partilham que gostaram muito da experiência e acrescentam tratar-se de “um trabalho essencial” nas escolas. “No meu caso, correu muito bem, consegui conectar-me com os alunos, até mesmo com os adolescentes, que podem ser um bocadinho mais difíceis”, conta Ana Azevedo. “Gostei muito e eles sentiram confiança em mim, inclusive relataram-me situações de preconceito de que tinham medo de falar às professoras”, sublinha Thaís Brito..A mediadora acredita que o facto de ser também imigrante “com certeza” fez toda a diferença na interação com as crianças e também com os pais. Aliás, conforme o DN já revelou, 52% dos 157 mil alunos estrangeiros, são brasileiros. “Cria esse sentimento de empatia, não só com os alunos, a quem podia dizer ‘está tudo bem, eu também já fui tratada muitas vezes assim, e vai ficar tudo bem’, mas principalmente com os próprios pais, pois podia chegar e falar que eu também tive muitos problema com a AIMA, por exemplo”, relata a imigrante.Na visão de Ana Azevedo, as escolas deveriam ter mais mediadores de outros países. “Eu acho que deviam ser pessoas migrantes a fazer mais este trabalho. Mas sei que têm muito mais dificuldades por causa das revalidações de diplomas. É uma coisa em que eu reflito bastante, porque tenho de me informar bastante para fazer mediação de culturas que, às vezes, eu não conheço assim tão bem. Tenho de estar sempre a tentar manter-me atualizada”, frisa a mediadora.O ensino de Português foi outro aspeto comum aos mediadores: apesar de não ser esta a função, a maior parte também teve de atuar neste âmbito. Foi um reforço a mais nas aulas de Português como língua materna, uma vez que alguns não dominam nada do idioma. Mas não só: as profissionais usaram conhecimento e criatividade para ensinar sobre Portugal, costumes, datas comemorativas e aspetos culturais. “Eu fiz intervenções diretas, semanais. Escolhemos as crianças, principalmente as que não falavam o Português e ia fazendo acompanhamento semanal, tanto no desenvolvimento da língua, quanto em questões mais culturais, como os feriados”, destaca Thaís Brito.Ana Azevedo entende que é preciso também fazer o papel inverso: mostrar a cultura destas crianças imigrantes à restante comunidade escolar, por exemplo através de jogos de palavras, atividades lúdicas e gastronomia. “É preciso estar aberto às culturas que vêm de fora, porque isso também é uma mais-valia. Permite abrir um bocado as mentalidades para as pessoas de cá também quererem aprender mais com os outros”, analisa a profissional.PreconceitoAs duas mediadoras já presenciaram situações de discriminação, não só entre alunos, mas também por parte de professores e pessoas de fora do círculo escolar. Na sua visão, neste contexto torna-se ainda mais essencial o trabalho de mediação. “Eu comecei a sentir, principalmente com os adolescentes. Havia um grupo grande de alunos do Bangladesh entre os 13 e os 16. Às vezes ficava preocupada com eles, porque são miúdos que já são lidos como homenzinhos e eu acho que, neste momento, são os homens dos países desta região que são vistos como alvos, é preocupante”, relata Ana Azevedo. “É bem complicado para as crianças. No geral esses alunos sofrem essa discriminação, mas também falta de paciência de alguns professores, que gritam, que falam alto. Não estão preparados para lidar com essa diversidade”, analisa Thaís Brito. A mediadora Ana, que participa em várias atividades sociais, vê o cenário de forma mais ampla. “Acho que esse preconceito tem aumentado bastante de uma forma desenfreada, como a discriminação religiosa. Eu tenho sentido isso, não tanto dentro da escola, mas noutros sítios”, admite. “É uma das razões de este trabalho ser tão importante, eu sou um elo numa cadeia de passos”, diz.Para Thaís Brito, o preconceito entre as crianças parte dos adultos. “Eu acredito muito que isso vem dos pais ou de algum adulto responsável que elas tenham como referência. Depois, no contexto escolar repetem o que ouvem. As crianças mais pequenas não têm essa capacidade de entender exatamente o que está acontecendo”, destaca.Além de atividades de tutoria com as crianças, as mediadoras foram em busca das mães e pais para integração escolar, por acreditarem que é fundamental este envolvimento. “É muito importante também a intervenção com os encarregados de educação, porque eles não têm muitas informações por parte da escola, no geral, desde a parte burocrática, às férias e feriados. Eles não tinham essa informação, porque esta, muitas vezes, vai só em português, e eles não conseguem entender o que está a acontecer ali”, destaca a mediadora brasileira. “No meu caso, a direção deixou-me muito livre para falar com eles e para fazer reuniões”, complementa. A mediadora criou guias de acolhimento com várias informações importantes. “Depois de os enviar, recebi ainda mais questões, a que respondi”, conta. “Senti também que muitos não participam por preconceito, porque comentariam sobre as roupas serem diferentes, por exemplo. São assuntos que temos de abordar, temos um caminho muito longo a percorrer com todos”, complementa.amanda.lima@dn.pt.“Preocupa que o preconceito agora seja também contra as crianças”, diz líder da comunidade Sikh .Alunos estrangeiros nas escolas aumentam 12%. São mais 17 mil num ano