Praticamente quatro semanas depois de um agente do Serviço de Informações de Segurança (SIS) ter ido recuperar um computador, alegadamente com documentos classificados e informações sensíveis, que teria sido "roubado" por um adjunto acabado de ser despedido pelo ministro das Infraestruturas, João Galamba, ainda não houve uma explicação oficial verosímil, legalmente enquadrável, que justifique esta operação..Ouça o podcast Soberania:.Esta foi, de uma forma geral, a opinião dos três convidados desta semana do podcast Soberania, uma parceria do Diário de Notícias com o Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT): a ex-diretora-geral do SIS, Margarida Blasco, o ex-presidente do Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa (CFSIRP), Abílio Morgado, e o ex-diretor de departamentos do SIRP e autor do mais recente livro sobre os serviços de informações nacionais, António Freitas, debateram o caso que tem marcado a atualidade e sublinharam a sua "enorme preocupação" com as consequências para a confiança da opinião pública nas "secretas"..Citaçãocitacao"Quando ouvi a notícia de que o SIS tinha ido buscar o computador das mãos de alguém para o entregar nas mãos de outra pessoa, devo dizer que as luzinhas vermelhas se me acenderam todas. E percebi que tínhamos uma situação com enorme potencial disruptivo relativamente à confiabilidade do SIS".."Quando ouvi a notícia de que o SIS tinha ido buscar o computador das mãos de alguém para o entregar nas mãos de outra pessoa, devo dizer que as luzinhas vermelhas se me acenderam todas. E percebi que tínhamos uma situação com enorme potencial disruptivo relativamente à confiabilidade do SIS. Não conhecia ainda pormenores, mas o SIS, em democracia, é um serviço que só pode existir, subsistir e atuar se o contrato de confiança que entre ele e todos os cidadãos portugueses existir não for quebrado. E a base essencial para esse contrato de confiança tem um nome, que é legalidade estrita, que é imposta pela Constituição, é imposta pela lei, e, portanto, o SIS tem de atuar em termos de legalidade. E não há lacunas", avança Abílio Morgado..O ex-presidente do CFSIRP, já tinha escrito, num artigo publicado no DN a 7 de maio, que a atuação do SIS neste caso foi um "erro grave", e veio agora revelar que o que o motivou a quebrar o seu longo silêncio, foi, precisamente o comunicado dos seus sucessores na fiscalização, presididos pela ex-ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, no qual foi legitimada a intervenção do SIS.."É um comunicado que lança mais dúvidas do que aquelas que veio resolver, agrava a situação, e senti que, perante a crítica óbvia que sabia que iria surgir relativamente àquela intervenção do CFSIRP, não podia deixar de tentar demarcar uma linha, de forma a que os anteriores Conselhos de Fiscalização não fossem poluídos"..Salvaguardando ter a "certeza" de que a direção do SIS tomou a iniciativa de atuar como atuou pelas razões subjetivas corretas, na intenção de resolver um problema, Abílio Morgado frisa que as "consequências" de não terem assumido depois o erro "estão à vista"..Citaçãocitacao"É que, na nossa Democracia, sobretudo em questões maiores como o SIS, não podemos contentar-nos com retóricas de inconsequência ou com narrativas de inconsequência (...) Estamos, ao mesmo tempo, com a crise de confiança mais grave que alguma vez o SIS viveu"."É que, na nossa Democracia, sobretudo em questões maiores como o SIS, não podemos contentar-nos com retóricas de inconsequência ou com narrativas de inconsequência. Nós estamos num momento em que o país atravessa, talvez do ponto de vista da sua Democracia constitucional, a partir de 76, a crise política mais grave, estamos, ao mesmo tempo, com a crise de confiança mais grave que alguma vez o SIS viveu", assevera..A ex-diretora-geral do SIS começou por aceitar a intervenção dos seus sucessores como podendo ser justificável. "É acionado porque lhe dizem que há um determinado computador, não sei o que é que esse computador, que tem sido o móbil de tudo isto, tinha, mas era do Ministério das Infraestruturas. Sei que o Ministério das Infraestruturas contém em si tudo o que são infraestruturas críticas do Estado, é isto que tenho como certo. E se assim foi, que era para recolher, para saber se poderia haver aqui uma situação urgente ou um estado de necessidade, o SIS terá, eventualmente, atuado, como creio que terá, neste estado de necessidade pela urgência que havia em recolher esse computador", afirmou..DestaquedestaqueMargarida Blasco não tem qualquer dúvida de que, caso seja confirmado que se tratou de um "roubo" - tal como o governo alega - logo "o SIS não poderia ter atuado, era uma ação ilegal, passível de processo disciplinar"..Margarida Blasco não tem qualquer dúvida de que, caso seja confirmado que se tratou de um "roubo" - tal como o governo alega - logo "o SIS não poderia ter atuado, era uma ação ilegal, passível de processo disciplinar"..Morgado acenou negativamente a cabeça. "Para lá do que é produzir informações e para lá das finalidades dessas informações o SIS não pode atuar. E não pode atuar por razões democraticamente bem compreensíveis. É que o que se pretendeu com esta opção, é atingir dois objetivos que são fundamentais para a credibilidade dos serviços de informações: que não tenham contacto com os cidadãos alegando ou arvorando a autoridade que não têm. É por isso que os serviços de informações não podem violar direitos de liberdade e garantias, não podem deter ninguém, não podem praticar atos de polícia, não podem intervir nas competências dos tribunais, não podem fazer investigação criminal. Agora, não basta dizer que eles não podem fazer isto. É preciso dizer o que é que lhes permite atuar. E ainda hoje não temos ninguém que nos tenha vindo dizer qual é a base legal para esta atuação. Aliás, verificamos um raro consenso, quase unânime de juristas, a dizer que isto não tem fundamento"..O antigo conselheiro de segurança nacional do Presidente Cavaco Silva até concorda com o facto de ter sido dado a conhecer, primeiro à secretária-geral do SIRP, embaixadora Graça Mira Gomes, depois ao diretor do SIS, Neiva da Cruz que havia a "informação extraviada", mas "para atuar de acordo com as competências que tem"..Isto porque, continua Abílio Morgado, "o grau de pressão que tenha sido utilizado nas palavras é relativamente indiferente, porque a própria intervenção do SIS, ao apresentar-se, evocando uma pseudo qualidade e autoridade que não tem é em si mesmo ilegítima. E é exatamente isso que a democracia e a lei querem evitar. Evitar os tais contactos com os cidadãos"..Recordando a notícia do Expresso da passada sexta-feira, segundo a qual poderiam estar também no computador, além dos documentos classificados sobre a TAP, também material relacionado com os cabos submarinos, alvo de risco para sabotagem, o ex-presidente do CFSIRP, refuta também esse pretexto..DestaquedestaqueHavendo "um indício fundamentado, de que pudesse estar a ser preparada uma possível atividade criminosa, que teria a ver com o perigo de divulgação dessa informação, ou de a passar para mãos onde não podia estar, então esse é um ato de polícia que competiria à Polícia Judiciária praticar"..Havendo "um indício fundamentado, de que pudesse estar a ser preparada uma possível atividade criminosa, que teria a ver com o perigo de divulgação dessa informação, ou de a passar para mãos onde não podia estar, então esse é um ato de polícia que competiria à Polícia Judiciária praticar"..Não havendo esses indícios mas apenas "uma preocupação enorme, extremada, de urgência relativamente a essa intervenção", aclara, de acordo com a lei em vigor, "quem é responsável por estas quebras de segurança é a Autoridade Nacional de Segurança, não é o SIS. E, portanto, o SIS o que é que fez aqui? O SIS, com o tal voluntarismo, praticou uma ação de bons ofícios. É uma espécie de representação do Vaticano em Lisboa, com a melhor das intenções". No seu entender é "dramático" que fique a "desconfiança" em relação ao SIS..António Freitas, dos três o que esteve mais tempo, de facto, ligado ao SIRP, com a direção de vários departamentos, é igualmente perentório: "Não é, de facto, aceitável e estou a usar esta palavra para não usar outra palavra mais cáustica, que os serviços tenham sido envolvidos neste processo, independentemente de estarem convencidos de que se estava na presença de um iminente risco de comprometimento de uma informação classificada de interesse nacional"..CitaçãocitacaoIndependentemente dos factos já conhecidos e que venham a ser apurados, infelizmente a imagem que já está, ficará presente na mente do cidadão, é de dúvida e desconfiança sobre a finalidade e a atuação dos serviços de informações, neste caso, o SIS em particular". .No seu entender "o quadro jurídico é claríssimo. (...) Independentemente dos factos já conhecidos e que venham a ser apurados, infelizmente a imagem que já está, ficará presente na mente do cidadão, é de dúvida e desconfiança sobre a finalidade e a atuação dos serviços de informações, neste caso, o SIS em particular"..O seu olhar experiente e do qual fez eco no livro recente que publicou sobre as "secretas", para ajudar a promover uma "cultura de informações", identifica um "manifesto um desconhecimento sobre as atribuições e competências dos serviços por parte de quem exerce funções públicas e políticas. A motivação para ter sido solicitado o SIS, e os consequentes relatos de entidades políticas afirmando da licitude dessa solicitação, é revelador desse desconhecimento"..Recorda o "general Pedro Cardoso, por muitos considerados o pai das informações em Portugal" que "em 1980, ele disse, e exprimi isso também no meu livro, que era necessário reforçar a confiança do público em geral e dos políticos nos serviços de informações nacionais e valorizar a atividade profissional daqueles que trabalham neste serviço"..CitaçãocitacaoÉ imperioso capacitar e apetrechar devidamente os serviços de informações, capacitar os recursos humanos, que não só concernem ao número de efetivos, mas também à valorização do seu estatuto e carreira. É igualmente fundamental uma liderança e gestão estratégica do capital humano"..Para isso, salienta, "é indispensável que exista uma clara estratégia para o SIRP que passa, desde logo, por repensar a estrutura atual e o quadro jurídico existente de forma a torná-lo mais eficaz e a reforçar a sua centralidade" e " é imperioso capacitar e apetrechar devidamente os serviços de informações, capacitar os recursos humanos, que não só concernem ao número de efetivos, mas também à valorização do seu estatuto e carreira. É igualmente fundamental uma liderança e gestão estratégica do capital humano nos distintos âmbitos, nomeadamente nos critérios de seleção e informação inicial, nas dinâmicas da atualização e qualificação permanente dos saberes e das competências que são necessárias para o presente, mas também antecipar aquelas que serão determinantes no futuro"..Depois de ouvir ambos, Morgado e Freitas, Margarida Blasco acabou por anuir em relação ao "erro". "Penso que qualquer um de nós tem confiança no SIS. Isto foi um episódio que aconteceu infeliz, que teve as repercussões que está a ter e que esperamos que efetivamente cesse o mais rápido possível. Mas aceito que possa ter havido um erro de avaliação", admitiu quando questionada se os serviços de informações eram confiáveis para lhes ser permitido o acesso total aos metadados das comunicações, tal como as polícias de investigação criminal, uma medida que está a ser debatida, já com acordo do PS e do PSD, em sede do processo de revisão constitucional em curso.."Isto é efetivamente preocupante (...) Os serviços de informações não podem ser trazidos à praça pública da forma como estão a ser trazidos (...) É que não estamos a falar de coisas, que também são graves, mas estamos a falar da segurança de Portugal. E quando falo da segurança de Portugal, falo da segurança de todos os outros países que fazem a comunidade europeia (...) todo este burburinho, que foi natural, que foi justificado, toda esta situação tem de ser clarificada e finalizada o mais rápido possível. Porque enquanto se estiver nesta intranquilidade, quer as pessoas, a nossa comunidade, os portugueses, quer a comunidade de informações nacional ou internacional, vivem uma instabilidade que não é de todo desejada", afiança Blasco..As últimas notas foram de Abílio Morgado, que concordou com Margarida Blasco quanto aos metadados e quanto ao "episódio infeliz" que não deve atingir a "confiança nos serviços de informações"..Precisa que "a intelligence portuguesa, não vive de recursos ilimitados" mas tem "algo que a põe, em muitos momentos, muito acima dos seus congéneres, que é a qualidade humana de quem os serve, análises que propiciam"..CitaçãocitacaoGostei muito de ver, e só abona relativamente ao seu caráter e à sua dimensão ética, o diretor do SIS, segundo a notícia que surgiu, assumir a responsabilidade por esta atuação. Devo dizer que gostei menos de ver também uma notícia que surgiu em que o gabinete da secretária-geral se limitou a dizer que foi mera caixa de correio a pôr em contato entre a chefe de gabinete e o diretor do SIS"..Conclui dizendo que gostou "muito de ver, e só abona relativamente ao seu caráter e à sua dimensão ética, o diretor -geral do SIS (Neiva da Cruz), segundo a notícia que surgiu, assumir a responsabilidade por esta atuação"..Porém, gostou "menos de ver também uma notícia que surgiu em que o gabinete da secretária-geral se limitou a dizer que foi mera caixa de correio a pôr em contacto entre a chefe de gabinete e o diretor do SIS"..Ouça o podcast na íntegra: