Sobre o SIS(o); e a falta que ambos fazem
1 - É muito perigoso o rumo que tomam algumas posições institucionais sobre a sui generis atuação operacional do Serviço de Informações de Segurança (SIS) de recolha de um computador portátil (e respetivos ficheiros) das mãos de alguém, perfeitamente identificado, para o entregar nas mãos de outrem.
Pretender justificar o que todos sabem ou intuem ser injustificável é estultícia ou obstinada irresponsabilidade, em qualquer caso com a consequência de, não sem razão, os Portugueses poderem vir a tomar a nuvem por Juno, com este inaudito ato do SIS a converter-se numa seríssima crise da Instituição em que se constitui todo o Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP).
CitaçãocitacaoPretender justificar o que todos sabem ou intuem ser injustificável é estultícia ou obstinada irresponsabilidade, em qualquer caso com a consequência de, não sem razão, os Portugueses poderem vir a tomar a nuvem por Juno, com este inaudito ato do SIS a converter-se numa seríssima crise da Instituição em que se constitui todo o Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP)
Uma tal crise deve ser imediatamente estancada e, para isso, é precisa uma análise rigorosa, transparente e responsável do que ocorreu, liberta de qualquer desejada pré-conclusão.
E, dada a gravidade do caso, é muito saudável que os Deputados tenham querido ouvir diretamente os responsáveis do SIRP nele envolvidos.
2 - No Parecer do Conselho de Fiscalização do SIRP relativo ao primeiro semestre de 2018 (disponível em https://cfsirp.pt), os seus membros de então fixaram fronteiras sobre a atuação do SIRP, sublinhando a sua natureza essencialmente democrática e assumindo "que, sujeitos à necessária e adequada fiscalização e criteriosamente enquadrados normativamente, os Serviços de Informações representam na Democracia Portuguesa uma contribuição insubstituível para a segurança nacional, no respeito pela Constituição e pela lei e com garantia dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos".
E o Conselho de Fiscalização explicitou esta afirmação, fazendo-o nos termos seguintes:
"O significado (da) evolução constitucional é claro: reconhecendo-se que o poder executivo democrático não pode dispensar no governo do País o contributo dos Serviços de Informações, estes estão estritamente vinculados na prestação desse contributo às finalidades, aos limites e aos meios de atuação previstos em lei, necessariamente aprovada pelos representantes eleitos dos Portugueses, (...)."
"Por outro lado, se logo em 1984 a Lei Quadro do SIRP impôs ao Primeiro-Ministro a incumbência de informar o Presidente da República "acerca dos assuntos referentes à condução da atividade" dos Serviços de Informações, assinalando assim uma plena participação institucional democrática no âmbito do SIRP, em 2004 uma tal obrigação foi claramente dignificada, (...)."
"Não basta, contudo, conceber democraticamente o SIRP e assim o expressar na Constituição e na lei. É igualmente essencial garantir que o SIRP se move exclusivamente dentro do espaço traçado pela sua legitimidade democrática, o que se traduz, rigorosamente, na garantia de que todas as estruturas que o integram atuam sempre com sujeição a uma estrita vinculação às finalidades, aos limites e aos meios de atuação previstos na lei que os representantes do Povo aprovam."
Citaçãocitacao"Não sendo de excluir situações pontuais que reclamem ponderações particulares inerentes a institutos como a "legítima defesa" ou o "direito de necessidade" (...), toda a atividade do SIRP de pesquisa, processamento e difusão de informações só pode ocorrer enquanto se mantiver dentro da fronteira que é fixada pela Constituição e pela lei, de forma clara, densa e exaustiva; e, portanto, sem "espaços cinzentos" que possam pretextar-se."
"Não sendo de excluir situações pontuais que reclamem ponderações particulares inerentes a institutos como a "legítima defesa" ou o "direito de necessidade" (...), toda a atividade do SIRP de pesquisa, processamento e difusão de informações só pode ocorrer enquanto se mantiver dentro da fronteira que é fixada pela Constituição e pela lei, de forma clara, densa e exaustiva; e, portanto, sem "espaços cinzentos" que possam pretextar-se."
"Toda a atividade do SIRP (...) está, pois, sujeita a um duplo limite: o das finalidades tipificadas na lei, que limitam a utilização dos meios de atuação previstos na lei; o dos meios de atuação previstos na lei, que limitam a prossecução das finalidades tipificadas na lei. E, assim sendo, como é, deve sublinhar-se que, na atuação do SIRP, os fins não só não justificam os meios como os limitam concretamente."
Citaçãocitacao"Nos regimes democráticos, não só a "razão de Estado" tem de ter legitimação democrática e não pode ser apropriável por juízos individuais, como toda a atividade (...) de informações não pode ser passível de quaisquer instrumentalizações, estritamente sujeita, como está, à Constituição e à lei."
"Nos regimes democráticos, não só a "razão de Estado" tem de ter legitimação democrática e não pode ser apropriável por juízos individuais, como toda a atividade (...) de informações não pode ser passível de quaisquer instrumentalizações, estritamente sujeita, como está, à Constituição e à lei."
"Certamente que a atuação do SIRP - maxime, as prioridades que lhe são determinadas, o seu modus operandi, a sua organização, as suas fontes, as informações que produz - não pode deixar de ser classificada, sujeita portanto a segredo."
"Mas tal segredo não serve para esconder o SIRP dos Portugueses. Serve, isso sim, para preservar a sustentação da produção da segurança que incumbe ao SIRP produzir, essencial aos Portugueses (...), garantindo que a atuação do SIRP não é devassada, apropriada, prejudicada ou inutilizada pelos atores das ameaças que precisamente compete ao SIRP, pela natureza própria da sua missão preventiva, procurar detetar o mais precocemente possível."
Citaçãocitacaosubmetido a uma estrita legalidade, ao SIS não é permitido fazer tudo quanto lhe não esteja expressamente proibido por lei; com sujeição a tais proibições expressas e para além delas, o SIS só pode fazer o que a lei expressamente lhe permite e no âmbito das finalidades que lhe atribui
Feita esta citação do que disse em 2018 o Conselho de Fiscalização do SIRP, sejamos agora claros e diretos: submetido a uma estrita legalidade, ao SIS não é permitido fazer tudo quanto lhe não esteja expressamente proibido por lei; com sujeição a tais proibições expressas e para além delas, o SIS só pode fazer o que a lei expressamente lhe permite e no âmbito das finalidades que lhe atribui. Compreende-se, por isso, que o enquadramento legal do SIRP se preocupe expressamente com os efeitos disciplinares do desvio de funções.
3- Mesmo concedendo que alguém pertencente ou ligado ao Governo não tenha instruído a direção do SIRP ou do SIS para uma concreta atuação, limitando-se, ainda que com confrangedora ignorância, a "participar" os degradantes factos que envolveram o computador portátil (qualificando-os como "roubo", "furto" ou seja lá como for), o certo é que por alguém foi o SIS "acionado" para uma peculiar operação que nunca ele deveria ter concretizado e que, diga-se até, sempre ele deveria ter começado por recusar, precisamente em nome do princípio da legalidade, garante da conformação da sua atuação aos ditames do Estado de direito democrático.
CitaçãocitacaoMesmo concedendo que alguém pertencente ou ligado ao Governo não tenha instruído a direção do SIRP ou do SIS para uma concreta atuação, limitando-se, ainda que com confrangedora ignorância, a "participar" os degradantes factos que envolveram o computador portátil (qualificando-os como "roubo", "furto" ou seja lá como for), o certo é que por alguém foi o SIS "acionado" para uma peculiar operação que nunca ele deveria ter concretizado e que, diga-se até, sempre ele deveria ter começado por recusar, precisamente em nome do princípio da legalidade, garante da conformação da sua atuação aos ditames do Estado de direito democrático.
É que não basta dizer, candidamente ou talvez não, que o SIS não adotou "medidas de polícia" (elencadas na Lei de Segurança Interna), limitando-se a receber a entrega voluntária do computador portátil na via pública, "sem recurso a qualquer meio coercivo ou legalmente vedado", para logo o entregar ao Centro de Gestão da Rede Informática do Governo - o qual, sendo uma estrutura do Governo, nem deve qualificar-se como "organismo que tem a seu cargo a segurança eletrónica do Estado e a prevenção da perda ou circulação indevida de informação".
E também não colhe a afirmação de que o SIS não violou direitos, liberdades e garantias, até porque as coisas podem não ser bem assim, já que, para além do mais, alguém telefonar a alguém, a desoras ou não, identificando-se como funcionário do SIS (e, porventura, referindo "ordens de cima", "muitas pressões" e vontade de "resolver as coisas a bem") é, de per se, uma invocação de um determinado estatuto de poder, contendo uma carga de pressão e intimidação que condiciona a estabilidade anímica e a autonomia de vontade de quem é contactado; não podendo, de todo, equiparar-se a um qualquer ato de voluntarismo para salvar um afoito cidadão que se afoga num pântano.
4 - Dando de barato que o SIS não utilizou meios proibidos, a interrogação determinante é, contudo, esta: Como acomodar uma tal incursão sem precedentes protagonizada pelo SIS nas finalidades tipificadas na lei para a sua atuação, pois, como se disse, no que é critério indeclinável, "os fins não só não justificam os meios como os limitam concretamente"?
É certo que a informação produzida pelo SIS tem natureza classificada - submetida, aliás, ao especialmente pujante "segredo de Estado" -, tal como é certo que o SIS é responsável pela preservação desta informação por si produzida. Mas, sem necessidade de mais, nada disto está agora em causa.
Por outro lado, é inquestionável que o SIS tem de colaborar, no âmbito da Autoridade Nacional de Segurança - incluindo o Gabinete Nacional de Segurança e o Centro Nacional de Cibersegurança - no esforço do Estado, seja de proteção e salvaguarda da demais informação nacional classificada, seja de promoção da cibersegurança portuguesa.
CitaçãocitacaoSó que, em qualquer destes dois âmbitos, o que compete ao SIS é pesquisar, processar e difundir informações úteis à prevenção, deteção e determinação da origem de quebras de segurança e de ciberataques (nas suas diferentes tipologias), capazes de contenderem com o segredo das matérias classificadas e com o funcionamento das infraestruturas críticas e os interesses nacionais.
Só que, em qualquer destes dois âmbitos, o que compete ao SIS é pesquisar, processar e difundir informações úteis à prevenção, deteção e determinação da origem de quebras de segurança e de ciberataques (nas suas diferentes tipologias), capazes de contenderem com o segredo das matérias classificadas e com o funcionamento das infraestruturas críticas e os interesses nacionais.
Ora, no asnático caso concreto para o qual se suscitou a intervenção do SIS era perfeitamente conhecido, ab initio, onde estava alojada a informação classificada (fosse ela qual fosse), que essa mesma informação estava na posse de quem a conhecia e trabalhava por razões funcionais e qual a identidade desta pessoa, inexistindo o mínimo indício de que tal pessoa a quisesse ou pudesse divulgar contra os interesses nacionais.
Mas, mesmo que o risco desta divulgação pudesse ter sido equacionado (ainda que por razões de mera cautela), deparava-se o SIS, novamente ab initio, com um outro limite inegociável: é que, face aos referidos concretos contornos perfeitamente conhecidos, a situação era, desde logo, do foro da investigação criminal, área onde o SIS não pode atuar, devendo até suster eventuais ações em curso mal a situação seja enquadrável criminalmente.
5 - Assim sendo, resta apenas uma via para tentar vislumbrar algum enquadramento legal para a atuação do SIS agora sob escrutínio. E essa via reconduz-se a uma figura jurídica de exceção, qual ultima ratio, que coloca inevitavelmente ponderações sobre as concretas fronteiras entre a "legalidade" e a "oportunidade". Referimo-nos ao "estado de necessidade", que aquele Parecer de 2018 do Conselho de Fiscalização do SIRP não ignorou.
É notório que o atual Conselho de Fiscalização do SIRP (cfr. Comunicado de 3 de maio de 2023, disponível em https://cfsirp.pt) terá intuído a necessidade salvífica de apelar à figura do "estado de necessidade". Na verdade, considerou, usando até o advérbio "determinantemente", "que estava em causa um quadro de urgência, tendo o SIS - que é um serviço de segurança - agido numa lógica de prevenção de riscos, movido pelo propósito exclusivo de, perante uma situação que se apresentava como uma ameaça de divulgação de informação classificada, preservar a sua integridade e confidencialidade, o que fez observando as exigências de necessidade e proporcionalidade que sempre balizam a atuação das forças e serviços de segurança".
CitaçãocitacaoAcontece que, onde quer que o direito o acolha, o "estado de necessidade" (tal como a "ação direta") implica uma impossibilidade de recurso em tempo útil aos meios de atuação normais, sendo que o SIS nada fez que não pudesse ter sido feito pela Polícia Judiciária, enquanto órgão de polícia criminal, com o mesmíssimo sentido de urgência e certamente com muito mais propriedade e solidez jurídica.
Acontece que, onde quer que o direito o acolha, o "estado de necessidade" (tal como a "ação direta") implica uma impossibilidade de recurso em tempo útil aos meios de atuação normais, sendo que o SIS nada fez que não pudesse ter sido feito pela Polícia Judiciária, enquanto órgão de polícia criminal, com o mesmíssimo sentido de urgência e certamente com muito mais propriedade e solidez jurídica.
Razão por que nem vale a pena aquela referência à atuação proporcional que se atribuiu ao SIS, porque o que este fez não era realmente necessário, de todo, que por ele tivesse sido feito. E nem foi adequado e equilibrado, pois um juízo destes não releva, in casu, quanto aos meios de que o SIS lançou mão, mas sim quanto ao próprio protagonismo assumido pelo SIS, sendo desnecessário reincidir na carga de pressão e intimidação que só isso acarreta em contexto de direitos, liberdades e garantias.
Citaçãocitacao Conhecendo a sua direção, estou absolutamente seguro de que ela só envolveu o SIS neste infeliz episódio, que em nada lhe interessava, por "sugestão" externa ou porque convictamente se convenceu de que, como sempre ocorre, atuava para proteger os mais dignos interesses nacionais. Terá agido por boas razões subjetivas, certamente com intenção de bem fazer e de proteger o País.
6 - Conhecendo a sua direção, estou absolutamente seguro de que ela só envolveu o SIS neste infeliz episódio, que em nada lhe interessava, por "sugestão" externa ou porque convictamente se convenceu de que, como sempre ocorre, atuava para proteger os mais dignos interesses nacionais. Terá agido por boas razões subjetivas, certamente com intenção de bem fazer e de proteger o País.
Mas acabou por errar objetivamente, expondo o SIS, como está hoje por demais patente, à suspeição pública de servilismo ao poder e de um padrão de atuação de má memória; suspeição pública essa que, sendo fundada mas injusta, apenas assenta nesse erro de atuação e tem de ser urgentemente colmatada.
CitaçãocitacaoReconhecer esse erro macula o ato concreto praticado pelo SIS, mas preserva o interesse superior da integridade do Serviço.
Reconhecer tal erro - nalguma medida até desculpável, face ao inusitado da situação com que o SIS se viu confrontado e à precipitação por ela induzida - é, não só uma atitude nobre e eticamente fundada, como, acima de tudo, nos tempos conturbados que correm na vida pública nacional, uma postura de franqueza, honestidade e transparência, capaz de consolidar a demonstração de que o que ocorreu é um caso absolutamente isolado e irrepetível e, assim mesmo, contribuindo para repor a confiabilidade, credibilidade, respeitabilidade e autoridade do SIS. Reconhecer esse erro macula o ato concreto praticado pelo SIS, mas preserva o interesse superior da integridade do Serviço.
Inversamente, procurar disfarçar o erro e normalizar esse mesmo ato, que notoriamente todos os Portugueses sabem ou intuem ser de repudiar e não querem ver associado ao desempenho do SIS, traduz-se na insensata obstinação de procurar justificação para o que objetivamente não a tem (a menos que se nos deparem ainda factos improváveis e desconhecidos), minando sem retrocesso possível a confiabilidade, credibilidade, respeitabilidade e autoridade do próprio SIS.
CitaçãocitacaoNum tempo de corrosivo conflito político extremado, nunca antes vivido no atual quadro constitucional português, o perigo de atropelo e destruição de Instituições vitais ao País aí está. O SIS é uma delas e o perigo é real. Daí este modestíssimo grito de alerta e apelo ao rigor, à transparência e ao bom senso.
Num tempo de corrosivo conflito político extremado, nunca antes vivido no atual quadro constitucional português, o perigo de atropelo e destruição de Instituições vitais ao País aí está. O SIS é uma delas e o perigo é real. Daí este modestíssimo grito de alerta e apelo ao rigor, à transparência e ao bom senso.
Ex-Presidente do Conselho de Fiscalização do SIRP