José Fernandes fundou a Techari, Associação Nacional e Internacional Cigana, em 2020. Grande parte do trabalho da Techari é nas escolas, com mediadores ciganos, para certificar que as crianças da comunidade "percebam que é ali que está o futuro, que é dali que tudo parte".
José Fernandes fundou a Techari, Associação Nacional e Internacional Cigana, em 2020. Grande parte do trabalho da Techari é nas escolas, com mediadores ciganos, para certificar que as crianças da comunidade "percebam que é ali que está o futuro, que é dali que tudo parte".Leonardo Negrão

José Fernandes: “Se Salazar fosse vivo já tinha mandado prender André Ventura”

O presidente da associação cigana Techari entendeu reagir ao ataque contínuo de André Ventura às pessoas da sua comunidade. E pergunta: "Vão continuar a deixá-lo difamar-nos?"
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Tem 62 anos e “a terceira classe”. Começou, conta, a trabalhar “muito novo”, porque era o mais velho de seis irmãos e “era preciso ajudar a mãe, que ficou a criar-nos sozinha porque houve um separamento do nosso pai”. O primeiro trabalho foi como ajudante de soldador, andou nas madeiras e nas obras. Casou cedo, aos 17/18 anos, e foi com a mulher viver para uma barraca no mesmo bairro do Prior Velho onde fora criado. Passou pelas feiras e foi tendo negócios vários, até, a partir de 1997, abrir dois restaurantes em Loures. 

Foi aí que o DN o encontrou, em 2017, numa reportagem a propósito do discurso anti-cigano de André Ventura como candidato do PSD à presidência da autarquia. Na altura, José Fernandes assumiu-se um votante no PSD muito revoltado com a escolha do partido. Três anos depois, a pandemia levou-o a trespassar os restaurantes e decidiu dedicar-se ao ativismo. Com oito amigos, fundou a Techari, Associação Nacional e Internacional Cigana

“Sempre procurei beneficiar, lutar pela minha comunidade”, diz. “E pensei: Tenho os filhos criados, posso fazer alguma coisa para ajudar a juventude. Porque faltavam muito à escola, e às vezes havia confusões, por não serem bem entendidos.” 

Grande parte do trabalho da Techari (que significa “liberdade” em romani, a “língua dos ciganos”), incide precisamente nas escolas, onde, através de protocolos com as câmaras, coloca mediadores ciganos. São para já 20, “metade mulheres e metade homens”.

A ideia, explica, é “criar paz”, certificar que as crianças e jovens em geral, e os ciganos em particular, vão às aulas. “Queremos que façam a escola e que tenham um comportamento adequado, que percebam que é ali que está o futuro, que é dali que tudo parte.”

A conversa com o DN ocorre antes de se saber que o Ministério Público (MP) instaurou um inquérito criminal na sequência de queixas apresentadas contra os cartazes do líder do Chega e candidato à presidência da República André Ventura, um dos quais prescreve: “Os ciganos têm de cumprir a lei”, e que um grupo de seis cidadãos ciganos deu entrada de uma ação cível a propósito desse mesmo cartaz.

A Techari e José Fernandes não integram esse coletivo que processou Ventura. O que a associação fez, informa, foi pedir audiências ao Presidente da República, ao primeiro-ministro e ao procurador-geral da República. Dos três, só Marcelo tinha já respondido

“Ainda é cedo, só passaram uns dias”, comenta Fernandes, que não esquece o facto de o PR ter enaltecido em 2022 o papel dos ciganos na história do país e na luta pela independência face a Espanha. Sabe-lhe a pouco, porém: “Temos sido sempre, mesmo em democracia, tratados como portugueses de segunda. Sabe onde estamos, em termos de instituições? Estamos na AIMA [Agência para a Integração, Migrações e Asilo]. Como se fôssemos imigrantes. A comunidade cigana tem de fazer parte da sociedade. Abro a associação precisamente por isso. Porque estamos fora.”

"Costumam dizer que quem suja são os ciganos, agora quem limpa são os ciganos"

No Expresso, Rui Tavares escreveu “dos ciganos pode-se dizer tudo”. De onde acha que vem a tolerância social para a difamação dos ciganos?

A sociedade em si não foi educada para socializar com a comunidade. Os ciganos foram sempre tratados como culpados de tudo. E os governos têm feito muito pouco. Sabe-se muito pouco de nós… Por exemplo, dizem que a comunidade cigana não trabalha. Temos mais de três mil ciganos a trabalhar no estrangeiro, sabe? Porque aqui não lhes dão trabalho. Muitos vão em casal, deixam aqui as crianças com os avós. A meu ver, a melhor integração é o trabalho. Nos meus restaurantes vi as pessoas a trabalhar juntas e deixavam de ser ciganos, deixavam de ser negros, deixava de ser… havia uma socialização enorme. Porque as pessoas começam a conversar e afinal percebem que não existem as diferenças que julgavam que havia. É como nas escolas. É muito importante termos a nossa juventude a poder dizer: “Havia na escola contínuos ciganos e não me fizeram mal”.

Melhor ainda seria terem professores ciganos.

Mas há. Aliás vou-lhe dizer, temos muitos empresários ciganos, mas não querem dar a cara, por causa da xenofobia e do preconceito. Temos mulheres a trabalhar em bancos — a gerir em bancos… 

E que não querem aparecer como ciganos, é isso?

Não se querem dar a esse trabalho. É uma das coisas que queria fazer, pegar nesses empresários para eles aparecerem. Mas com o que se está a passar há muitas portas que são fechadas. O André Ventura trouxe um ódio, uma arrogância… 

No site da associação lê-se: “Como membro da comunidade cigana penso que o governo português nos deve um pedido de desculpa pelos atos cometidos contra nós.” O que seria este pedido de desculpa?

O que eu gostava que sucedesse? Que fizessem alguma coisa como um ato de compensação. Que por exemplo abrissem as portas do emprego à comunidade cigana. As empresas deviam ter um ou dois por cento de empregados da comunidade cigana.

Antigamente quando viam um adulto cigano na escola achavam que era para a zaragata. Agora temos adultos ciganos nas escolas a trabalhar com os auxiliares, com os professores."

Ou seja, quotas. Admite uma relação difícil entre a comunidade cigana e a escola, entre a comunidade cigana e o emprego. Porque acha que é assim?

Fomos sempre ostracizados, massacrados, através dos séculos, e mesmo em democracia… Estávamos habituados a que não nos dessem emprego por não sabermos ler nem escrever, os ciganos eram quase todos analfabetos… E as crianças na escola foram-se deparando com xenofobia e racismo. É preciso criar paz. As crianças têm de se focar nos estudos e não nos problemas do racismo, têm de aprender a fazer queixa, a escrever, se alguma coisa corre mal, em vez de gritar. Antigamente quando viam um adulto cigano na escola achavam que era para a zaragata. Agora temos adultos ciganos nas escolas a trabalhar com os auxiliares, como os professores. O nosso trabalho nas escolas tornou-se imprescindível. Outra coisa importante: temos equipas a limpar os bairros. As pessoas costumam dizer que quem suja são os ciganos, agora quem limpa são os ciganos. Isso para mim é o que funciona.

José Fernandes na sede da associação, que foi criada por nove homens e hoje tem, garante com orgulho, mulheres nos corpos sociais.
José Fernandes na sede da associação, que foi criada por nove homens e hoje tem, garante com orgulho, mulheres nos corpos sociais. Leonardo Negrão

"Antigamente tínhamos medo que as raparigas estudassem"

O que é um cigano? O que faz de si um cigano?

É o meu pensamento, a minha cultura, preservar os meus costumes, os meus hábitos. Preservar valores.

No último grande estudo sobre a comunidade cigana, que é de 2014, os valores indicados como mais importantes eram o respeito pelos mais velhos e “a pureza da mulher”. Que “pureza” é essa?

Nós gostamos de preservar as mulheres, olhamos muito por elas. Para nós uma mulher é muito valiosa, é um pilar essencial da comunidade. Respeitamos muito as nossas mulheres. A jovem cigana pode estudar, estão a estudar mais, até temos mais mulheres licenciadas que homens. Mas as meninas ciganas não namoram — a  mulher da comunidade cigana é preservada para o casamento como ato de lealdade para com o esposo.

Ela não pode namorar mas o rapaz pode?

No caso dele não se faz essa prova.  

E se ela não chegar virgem ao casamento?

Tem de dar uma explicação sobre o que aconteceu. Se perdeu a virgindade com 14 ou 15 anos e não sabe com quem… Aí os pais têm de ver qual o prosseguimento que têm de tomar.

A jovem cigana pode estudar, estão a estudar mais, até temos mais mulheres licenciadas que homens. Mas as meninas ciganas não namoram — a  mulher da comunidade cigana é preservada para o casamento como ato de lealdade para com o esposo."

Está a descrever preceitos da cultura patriarcal que existiu até ao 25 de Abril, que estavam aliás na lei. E diz “as nossas mulheres”. Sabe quem usa essa expressão? Ventura.

Pois, não sei. Quando digo isso, é com carinho. Se eu vir uma menina cigana a passar sozinha, tenho por obrigação ir lá e perguntar “filha, o que andas aqui a fazer? Precisas de alguma coisa?” Pode estar perdida, pode precisar de ajuda. Mas, repare, se as jovens não respeitarem a cultura, fazem a vida delas. Há mulheres ciganas casadas com pessoas que não são da comunidade, o meu filho por exemplo é casado com uma não cigana. E não é nada por aí além. Simplesmente quem quer seguir, segue, quem não quer não segue. Hoje em dia, não há mão nos jovens. Já não é aquela coisa cerrada… Elas são livres, completamente. Mas se alguém quiser preservar um bocado da cultura, se quiser fazer casamento, à lei da cultura, é uma coisa; se quiser ir ao registo civil, ou à igreja, vai. As coisas estão a mudar. Antigamente tínhamos medo que as raparigas estudassem, por exemplo.

Era receio de que conhecessem rapazes não ciganos.

Por exemplo, podia acontecer. O meu filho por exemplo conheceu a mulher dele na escola.

É o normal numa comunidade aberta. Esse controlo sobre as raparigas pressupõe medo da mistura.

Não, o único medo que havia aqui era de que a menina perdesse a virgindade.

Fora da comunidade, pois. Não acha que a prova da virgindade é uma violência?

Uma cultura não sou eu que decido. E estamos a trabalhar nisso. Mas se não houver a prova não há casamento cigano. Hoje em dia muitas vezes não há casamento, eles fogem. Temos jovens de 14, 15,16 anos que fogem, conheceram um jovem e fogem.

É normal uma miúda de 14 anos casar?

Não. Pela lei portuguesa ela não casa, e na comunidade cigana também não. Porque nós os pais não deixamos. Mas eles fogem, dormem fora de casa, e uma vez que ela perdeu a virgindade consideramos que ela é mulher dele e ele marido dela. 

Que acontece a esses miúdos?

Primeiro têm de fazer a escola obrigatória, que é de lei, até aos 18 anos, não é? E depois ver o estatuto dos pais… Se for uma jovem que ainda sabe muito pouco de tratar de casa, a sogra e a mãe ajudam-na a crescer, ensinam-lhe certas e determinadas coisas.

O destino das miúdas, mesmo muito novas, é tomar conta da casa e ter filhos?

Não é o destino delas…

Os rapazes também são ensinados a tomar conta de casa?

Sim, as coisas mudaram um bocadinho. Mas não estou a dizer que isto é bom, deviam só casar a partir dos 18, e não devia haver esses fugimentos, e nós os pais muitas vezes… Com muita tristeza minha, aconteceu-me. A minha filha conheceu um jovem e casou-se.

"Onde é que o Salazar aguentava com um linguarudo desta forma?"

Se tivesse oportunidade de falar com Ventura cara a cara, que lhe diria?

Para começar, dizia-lhe para tirar os cartazes e pedir desculpa à comunidade cigana, ter um comportamento diferente daquele que tem tido. Porque se alguém do Chega, como está a acontecer, andar a roubar malas, a traficar droga, etc, não é o André Ventura que paga, expulsa-o do partido. O mesmo se passa com a comunidade cigana. Se há ciganos que se portam mal, são esses ciganos que estão em causa, não todos. E fazia-lhe também algumas perguntas: qual é o projeto que ele apresentou para o país nestes seis anos? Porque se ele deixar de falar da comunidade cigana e da imigração não tem mais nada. 

O surgir desse discurso que escolheu os ciganos como alvo teve alguma coisa a ver com a sua decisão de se tornar ativista?

Também. Já era mau antes… Mas devo dizer que nunca pensei que houvesse tantos racistas e xenófobos em Portugal. Antes era vergonha ser racista, era vergonha ter xenofobia… O que André Ventura fez foi dar força a isso, que estava escondido dentro do nosso país. E está cada vez pior e ninguém faz nada.

O que quer dizer com “ninguém faz nada”?

Quando o MP deixa passar as coisas pequenas, das formalidades na formação e funcionamento do partido, mais as outras coisas, dos cartazes como este que agora aí está… Veja, o André Ventura não tem nada para propor para construir o país. Só quer destruir. E está a gozar, a usar uma democracia que não é a dele. Imaginemos que vivia o Salazar nesta altura…

Devo dizer que nunca pensei que houvesse tantos racistas e xenófobos em Portugal. Antes era vergonha ser racista, era vergonha ter xenofobia… O que André Ventura fez foi dar força a isso, que estava escondido dentro do nosso país."

Refere-se ao facto de ele ter dito que eram precisos três salazares?  

Sim. Já o tinha prendido! Se o Salazar fosse vivo, já o tinha mandado prender, ao Ventura. Onde é que o Salazar aguentava com um linguarudo desta forma? A dizer as coisas que diz, a insultar toda a gente? Impossível, prendia-o logo. Por muito menos o Salazar prendia. 

Qual seria a forma correta, em democracia, de “parar” Ventura?

A justiça atuar. Porque ele está a provocar as pessoas — não apenas a comunidade cigana, mas tudo o que lhe aparece à frente. Imigrantes, etc. Uma pessoa da comunidade cigana que não conheço, comete um crime. Que tenho eu a ver com isso? E vem o AV e diz “foi a comunidade cigana”.

Considera que está a difamar a comunidade. Como quando diz que têm de cumprir a lei, o que pressupõe que não cumprem.

É isso. É difamatório, claro. E as autoridades deviam agir. Não pode falar assim de todas as pessoas de uma comunidade.  Este discurso, de pôr pessoas contra pessoas, infeta a população. Eu como cidadão acho que o discurso do André Ventura tem de ter uma limitação. Se não o param por ser ódio, racismo, xenofobia… Se isto não parar, o que pode acontecer? Pode acontecer um maluco…

Está a dizer que pode acontecer violência?

Pode acontecer o que ninguém quer. Uma desgraça. Já viu se fosse eu a fazer aquele discurso… Se eu me pusesse a dizer na televisão por exemplo “os polícias são todos corruptos”, ou “os bombeiros é que andam a atear fogos”, que acha que sucedia?

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