“Desde que tomou posse, o Governo tem vindo a intensificar o controlo sobre a aplicação do Subsídio Social de Mobilidade (SSM) nos serviços aéreos entre o Continente e as Regiões Autónomas e entre estas. Na sequência do reforço dessa fiscalização, verificou-se existir uma falha na implementação do mesmo, no que respeita aos beneficiários elegíveis. (…) Não foi alterada qualquer norma jurídica ou dada nova interpretação, apenas foi detetada uma falha na aplicação da lei no passado.”.Foi assim que os ministérios das Finanças e das Infraestruturas, em comunicado conjunto, responderam esta terça-feira às perguntas que o DN lhes tinha enviado na passada semana a propósito da súbita exclusão, no início de novembro, de imigrantes não-UE, que residem e trabalham nos arquipélagos, do reembolso de viagens nacionais de e para Açores e Madeira (o denominado subsídio social de mobilidade, ou SSM). Uma vez que a prática dos anteriores nove anos de vigência da lei que rege o SSM (decretos-lei de 2015) foi no sentido de incluir todos os imigrantes em situação legal, independentemente da respetiva nacionalidade, o que estes ministérios estão a dizer é que houve durante esses nove anos uma “falha na aplicação” da lei e que agora se limitaram a retirar o subsídio a quem não tinha direito ao mesmo..De facto, como se referia na notícia do DN à qual o Governo veio reagir, os decretos-lei de 2015 que estabeleceram as regras do SSM parecem excluir os imigrantes residentes nas Regiões Autónomas que não sejam nacionais de países da União Europeia, de países com os quais esta tenha acordo de livre circulação e do Brasil (com o qual Portugal tem um tratado de igualdade de direitos) - ou seja, excluiriam todos os nacionais de PALOP à exceção dos brasileiros, assim como os imigrantes de todos os continentes à exceção da Europa..Porém, se durante os últimos nove anos a interpretação na aplicação dos decretos incluiu os imigrantes agora excluídos, dificilmente se pode afirmar, como faz o comunicado governamental, que não foi “dada nova interpretação”. Se a interpretação a à lei. Se a interpretação anterior dos decretos era no sentido de tratar todos os imigrantes, desde que legalizados e com contrato de trabalho, por igual, independentemente da respetiva nacionalidade, houve agora uma alteração na interpretação..Pelo que, de acordo com juristas ouvidos pelo jornal, não só a prática do Estado durante nove anos criou expectativas legítimas, como é necessário que a atual exclusão seja justificada com “um motivo forte”, uma vez que põe em causa o princípio constitucional da equiparação, estatuído no artigo 15º da lei fundamental. Justificação que, à partida, os referidos juristas não estão a ver qual possa ser..É o caso de Ana Rita Gil, especialista em direito das migrações e ex-adjunta da Provedora de Justiça: “Não há razão para excluir do subsídio de mobilidade residentes em situação legal no território. Não vejo qual o interesse público que justifique essa exclusão, e não existindo, é inconstitucional”..Bloco questiona governo. Provedora de Justiça "não tem posição sobre assunto".No mesmo sentido se pronuncia o Bloco de Esquerda, em pergunta dirigida ao Governo, e na qual solicita esclarecimento sobre o motivo da alteração de aplicação da lei: “Desde a entrada em vigor destes diplomas [os referidos decretos-lei de 2015], há nove anos, que o subsídio tem vindo a ser pago aos cidadãos imigrantes com contrato de trabalho e residência legal na Madeira e nos Açores, independentemente da sua nacionalidade. Estamos a falar de cidadãos que residem há vários anos nas Regiões Autónomas, trabalham e pagam as suas contribuições para o nosso país. Não tendo ocorrido qualquer alteração legislativa, está por explicar o fundamento legal que tem conduzido a uma diferente aplicação da lei e à recusa de atribuição do subsídio social de mobilidade a estes imigrantes. É que, antes de tudo, esta interpretação configura uma evidente violação do princípio da equiparação entre cidadãos nacionais e estrangeiros residentes legalmente previsto no artigo 15.º da Constituição da República Portuguesa. Além disso, esta recusa está a ser aplicada retroativamente, abarcando reembolsos de viagens ocorridas nos 90 dias anteriores à alteração de interpretação, o que é inaceitável.”.No entender de Ana Rita Gil, citado pelo DN, também esta aplicação retroativa é problemática: “Sem um anúncio público, sem apresentar qualquer justificação, alterou-se a forma de aplicar a lei. E com efeitos retroativos, o que é ainda mais grave – porque o Estado está aplicar a alteração a viagens passadas, sem haver um ato público que permitisse perceber que ia haver uma mudança. O público tem de estar a contar com as alterações e saber por que acontecem. É assim que funciona o Estado de direito”. .O DN questionou os dois ministérios sobre a retroatividade da aplicação da nova interpretação, assim como sobre a data da decisão e respetiva base, mas o comunicado governamental ignora essas questões, limitando-se a asseverar que, “na decorrência do relatório apresentado pelo grupo de trabalho [que nomeou em maio para analisar o SSM e apresentar propostas de alteração], o Governo encontra-se a trabalhar não só na clarificação do modelo de atribuição do SSM e na sua desmaterialização através de uma plataforma digital, mas também na uniformização da legislação entre as Regiões Autónomas de molde a, simultaneamente, evitar situações de desigualdade entre cidadãos residentes”. O jornal requereu acesso a tal relatório, invocando a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos [que obriga as instituições requeridas a dar resposta ao pedido em 10 dias úteis], mas não obteve qualquer resposta..O DN também questionou a Provedora de Justiça sobre a nova interpretação, adotada pelo atual Governo, na aplicação no SSM, nomeadamente: se considera que aquela que está em prática desde 8 de novembro é compatível com o princípio constitucional da equiparação; se a prática dos últimos anos criou expectavas legítimas; se uma alteração de interpretação deste tipo pode ocorrer sem qualquer aviso público prévio e aplicar-se a viagens ocorridas anteriormente à alteração..A resposta da Provedora, cuja função é, de acordo com o respetivo site, “defender e promover os direitos, liberdades, garantias e interesses legítimos dos cidadãos, assegurando, através de meios informais, a justiça e a legalidade do exercício dos poderes públicos”, foi sucinta: “Relativamente às questões que coloca, não recebemos nenhuma queixa. Embora se reconheça a sua relevância, não temos, de momento, uma posição sobre o assunto.”