Europol e Interpol fora da PJ. Constitucionalistas admitem risco para a separação de poderes
Marcelo Rebelo de Sousa avisou o Governo que pode enviar para o Tribunal Constitucional o diploma que determina a transferência, da PJ para o Sistema de Segurança Interna, na tutela do primeiro-ministro, dos Gabinetes da Europol e Interpol que processam milhares de informações sobre investigação criminal. O Presidente quer que fique salvaguardado na lei que só a PJ e o MP têm acesso a estes sistemas.
A integração dos Gabinetes da Europol e Interpol, atualmente da Polícia Judiciária (PJ) para o Sistema de Segurança Interna (SSI) pode por em causa a separação de poderes (judicial e executivo), na opinião de constitucionalistas ouvidos pelo DN.
Relacionados
Esta medida está prevista numa proposta de lei que o Governo enviou à Assembleia da República neste mês de agosto e pretende colocar os terminais destas agências - que fornecem informações de natureza criminal para as diversas polícias, numa cooperação destinada a combater vários tipos de criminalidade, incluindo tráfico de estupefacientes, fraude bancária, branqueamento de capitais e tráfico de armas - sob a responsabilidade do Ponto Único de Contacto para a Cooperação Internacional (PUC-CPI), controlada pelo secretário-geral do SSI, cargo na dependência do primeiro-ministro.
Nesta quinta-feira, o Presidente da República deu o primeiro sinal que pode por em causa a intenção do Governo de querer mostrar à União Europeia, que cumpriu uma das suas recomendações de criar o chamado Single Point of Contact (SPOC) por altura da designada "avaliação Schengen" que decorrerá em novembro.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Esta medida está por cumprir desde 2017 e Portugal já foi alvo e reparos por duas vezes.
Marcelo Rebelo de Sousa admitiu enviar esta proposta do Governo para o Tribunal Constitucional "se tiver alguma dúvida" de constitucionalidade - o que para os analistas políticos é só por si um aviso de que, neste momento, não está satisfeito com o que foi apresentado.
Ao que o DN soube junto a fontes próximas de Belém, o Presidente quer salvaguardar que uma vez o diploma em vigor não sejam suscitadas questões de inconstitucionalidade em matéria de separação de poderes e por isso quer que fique claro nesta alteração à Lei de Organização e Investigação Criminal e à Lei de Segurança Interna que apenas a PJ e o Ministério Público (MP) têm acesso a matérias de investigação criminal. "Tem de ficar garantido na lei", sublinha uma dessas fontes.
Garantias de secretário-geral não chegam
Não parecem ser assim suficientes, para Marcelo, as garantias dadas pelo secretário-geral do SSI.
Em entrevista ao DN, Paulo Vizeu Pinheiro assegurou que a PJ vai manter o controlo permanente dos gabinetes da Europol e Interpol, apesar de serem transferidos fisicamente para o SSI.
De facto, na proposta de lei não há referência a esse garantia, apenas que cabe ao secretário-geral a nomeação das chefias das estruturas que integram o PUC-CPI.
Será em sede de decreto-lei da organização da PJ, que o Governo pretenderá registar essa norma, mas nada foi ainda publicamente conhecido.
Questionada pelo DN, a Direção da PJ, que desde que esta medida foi pela primeira vez anunciada em 2016, sempre se opôs, não se pronunciou ainda.
"Não parece que seja adequado misturar a "legalidade" com elementos de "informalidade" ou de "acordos de cavalheiros" - como é o facto de se prometer que, na prática, ainda que se escreva outra coisa na lei, "será só a PJ a tratar do assunto" - porque não é assim que as coisas funcionam em Estado de Direito e não é assim que se legisla", assinala o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, que acredita que é essa clarificação que Marcelo Rebelo de Sousa quer ver no diploma que venha a ser aprovado no parlamento.
Principios fundamentais em causa
Na sua análise "podem estar em causa dois princípios fundamentais: em primeiro lugar, o princípio da separação dos poderes, através do qual a função administrativa não pode interferir na função judicial de investigação criminal, sendo certo que para a Constituição da República Portuguesa (CRP) o monopólio da ação penal é do Ministério Público (MP), que no assunto não é tido nem achado, atuando as polícias de investigação criminal sob a orientação do MP, ainda que conservando a sua necessária autonomia tática, técnica e operacional, sendo a troca de informações criminais uma dessas dimensões, tanto faz se interna ou internacionalmente".
Em segundo lugar, aponta este catedrático de direito e também presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), "os princípios da legalidade, tipicidade e especialização funcional das polícias, previsto no art. 272º da CRP, podem ser beliscados, na medida em que esta mudança perturbe o âmbito específico das suas competências de prevenção policial, que se traduz na tomada de medidas de polícia, sendo certo que o SSI não é uma polícia, nem um órgão de investigação criminal, pelo que não pode aceder ou tratar conteúdos a estes organismos reservados por exercerem aquela função, a não ser em casos excecionais de incidentes tático-policiais em que o SG-SSI assume as vestes de entidade de defesa da ordem pública com poderes policiais extraordinários, o que não sucede no quotidiano da troca de informações ao nível europeu".
No seu entender, e conclui, "a questão fundamental passa ainda pela distinção entre a natureza das informações que vão ser partilhadas: uma coisa são "informações policiais", utilizadas nas tarefas de ordem pública; outra coisa são as "informações criminais", as quais se relacionam com processos criminais em curso ou iminentes, no contexto de uma atividade criminosa que já se consumou ou que está em preparação".
"Afastamento da tradição democrática"
A constitucionalista Teresa Violante, por seu lado, não vê que o TC possa escrutinar se este diploma permite ou não a interferência do Governo, mas vê um "afastamento da tradição democrática" na separação de poderes.
"Acho difícil que exista uma violação jurídica do principio da separação de poderes, pelo menos face ao que consta da arquitetura normativa, isto é, do diploma. Não excluo que isso possa suceder na prática. O que a Constituição exige é que o poder judicial seja independente e o MP autónomo, sendo que depois ao MP cabe, por via de atribuição legal, dirigir a investigacao criminal. O que consta do diploma não fere este parâmetros. Saber se depois na prática há interferência ou não do Governo na investigação ou acesso indevido a informação é algo que não é escrutinável na fiscalização da constitucionalidade pelo TC, que é apenas uma fiscalização de normas", afirma Teresa Violante.
Mas para esta investigadora na Universidade alemã de Erlangen-Nürnberg, "questão diferente é o juízo político: em democracia a investigação criminal esteve sempre claramente separada do poder executivo. Aqui há um afastamento dessa tradição democrática e isso provavelmente merece uma censura política pelo esbatimento das fronteiras da separação de poderes e pela ingerência que propicia. Essa separação não existe noutros países mas existe entre nós porque temos os traumas do que se passou durante a ditadura. Há lições que não deveríamos deixar cair no esquecimento com tanta facilidade".