“Eu sou melhor do que tu, eu jogo sempre.” Como lidar com o bullying, a pressão de ganhar e a morte

Marta é uma menina de 8 anos, muito alegre e sorridente, que adora jogar basquetebol, mas como irá ela enfrentar situações como o divórcio dos pais, a morte do avô ou o bullying? Será capaz de fazer amizades e regular as suas emoções? Criar estratégias para lidar com esses desafios é a proposta da psicóloga Sofia Cravo Santos no livro A Marta e o Basquetebol, que foi lançado no passado sábado. .O livro está repleto de “orientações práticas” para pais e treinadores, que são “os pilares” do desporto de formação, na opinião da psicóloga, que trabalhou no futebol e ciclismo e que recomenda a valorização da prática desportiva em detrimento do resultadismo. “Aí, o minibasquete é um exemplo a seguir. Não há um resultado final. Isto tem os seus benefícios e os seus malefícios. Deve haver objetivos, até para a criança não perder o interesse, mas falar num objetivo de desempenho é diferente de olhar apenas ao resultado. E muitas vezes os treinadores estão pressionados, têm de ganhar e ponto final. Mas um treinador não pode dar um treino ou orientar de forma igual um miúdo de 5 anos ou 10 ou um adolescente de 15”, na opinião de Sofia..O antigo diretor do Departamento de Formação do Sporting, Aurélio Pereira, dizia que o principal bloqueio à evolução de um jovem atleta são os pais, que estão na bancada a dar ordens aos filhos. A psicóloga concorda. “Sim. Há um capítulo sobre a pior viagem da Marta...entre o campo e casa. O treino não correu bem , o miúdo está frustrado e o pai ainda o frustra mais porque está ali constantemente a dizer: ‘Fizeste isto mal, fizeste isto mal.’ Os pais, sobretudo nas crianças, nos adolescentes já nem tanto, são os heróis das crianças. Mesmo tentando-se explicar que o pai no campo não tem autoridade, ele nunca deixa de ser o senhor da autoridade. Se o treinador diz A, mas o pai diz B, isto cria aqui um conflito que a criança, muitas vezes, não é capaz de resolver”..A titularidade é outro dilema. E, segundo a psicóloga, só faz sentido começar a ser falada na adolescência: “Na infância todos devem ter direito a jogar/competir. O desporto até aos Sub-12 é para eles brincarem, correrem e fazerem amizades.” Porque o “eu sou melhor do que tu, eu jogo sempre” pode ser uma forma de bullying encapotado na idade da inocência ou pouca consciência do que é correto e incorreto. O capítulo dedicado ao bullying aborda o caso de uma criança que tem problemas em casa e acaba por descarregar na personagem principal, a Marta. “Não pode haver tolerância para o bullying. Não interessa se é o melhor ou o pior jogador da equipa, as consequências têm de ser para todos. No bullying, o maior foco é na vítima, mas e o agressor? Como se muda a atitude dele para não continuar agressor? Porque alguma coisa gerou aquele comportamento.”.E é preciso olhar para o cenário todo. Incluindo o comportamento dos pais nas bancadas, que foi objeto de um estudo do psicólogo Pedro Teques. “Resultado? Quando lhes mostrou os vídeos, muitos pais nem sequer tinham consciência do próprio comportamento.” E isto merece reflexão profunda, segundo ela, porque, muitas vezes, o único apoio que as crianças têm nas bancadas são os pais e é “chocante” perceber que “são eles próprios que estão a ofender e a rebaixar o filho.”.Segundo Sofia Santos, o ideal seria, na primeira ou segunda semana de treinos, os clubes juntarem todos, incluindo os pais e os treinadores, definirem regras de bom comportamento e normalizar o não insultar, não bater, não agredir. Esta prática é seguida por alguns clubes nas camadas jovens. Um deles é o 1.º Dezembro (Sintra), que já foi objeto de uma reportagem premiada do DN. Porque “acima de tudo” é “preciso ouvir e respeitar as crianças” para não perder talento ao longo da pirâmide e dar espaço para que escolham o desporto que querem praticar e não o desporto preferido do pai ou o que dá jeito à mãe depois do trabalho..Outro assunto que costuma melindrar é o da morte. Como informar uma criança? “Nunca devemos mentir. E nunca devemos dar informação para além daquela que temos”, respondeu a psicóloga, defendendo que é preciso dar ferramentas a pais, treinadores e psicólogos para saber como reagir quando um miúdo, como aconteceu há uns tempos, vir um deles entrar em paragem cardíaca: “Não há respostas certas, nem erradas, mas vamos refletir sobre isto.”.Apenas 40 especialistas em Psicologia do Desporto.A Ordem dos Psicólogos Portugueses tem registados 40 psicólogos especialistas em Psicologia do Desporto, mas acredita que sendo esta “uma área em crescente procura” o número peca por escasso. Com base no Censos 2018, cerca de 3,4% (206) dos psicólogos respondentes (6078) atuavam no contexto desportivo. Um número residual tendo em conta que em 2023, Portugal tinha 774 mil atletas federados (mais de 500 mil são crianças e jovens). Treinadores, dirigentes e árbitros são cerca de 75 mil, num universo de mais de 11 mil clubes. O processo de atribuição de especialidade é desencadeado pelo psicólogo, sendo depois avaliado o seu percurso académico e profissional, e ter cerca de 5 anos de experiência profissional na área de Psicologia do Desporto..isaura.almeida@dn.pt

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