"Independentemente do que os partidos - sejam de esquerda, sejam de direita - possam pensar, quem vive no dia a dia” com pessoas com deficiências profundas, “quem é realmente mãe, quem as tem, quem se preocupa com elas, tem o dever e a obrigação de zelar por elas”, defendeu ao DN Carla Claro, 53 anos, mãe da Margarida, que agora tem 26 anos, acrescentando que o que está em causa são pessoas inevitavelmente “dependentes dos pais a vida toda”. O zelo a que Carla alude tem que ver com esterilização cirúrgica, permanente, irreversível de pessoas com deficiência. Na sua maioria, mulheres. Apesar de ser entendido pelos pais como um ato de amor a pensar no futuro dos filhos, a lei, que permite esta prática, tem normas infralegais que podem deixar dúvidas sobre o que pode ou não ser feito. Por outro lado, algumas das pessoas sujeitas a esta via contracetiva, não por sua iniciativa, chegam aos blocos operatórios como consequência de uma resolução de uma instituição ou de acompanhantes legais. Algumas são também menores de idade.São questões como estas que serão esta quarta-feira discutidas no Parlamento na sequência de um projeto de lei do Bloco de Esquerda que propõe a criminalização da “esterilização forçada de pessoas com deficiência, sem garantir que existe uma forma de aferir a sua vontade”.Este é o contexto atual de um tema que é tabu, mesmo que tenha visibilidade suficiente para permitir discussões de bastidores entre órgãos de soberania, organizações internacionais, associações dedicadas aos direitos de pessoas com deficiência, centros de investigação e a própria Ordem dos Médicos.Para Carla, não há dúvidas de que a decisão, informada, que tomou sobre a filha foi para a “proteger” e implicou sempre um acompanhamento médico multidisciplinar.“Fomos observando a situação da minha filha desde o nascimento até uma determinada idade e começámos a ponderar esta situação”, explica Carla Claro, garantindo que, até à tomada da decisão, houve vários processos. “Falámos primeiro com a médica de família, que nos encaminhou para a consulta de Ginecologia de adolescente”, continua a mãe, eventualmente chegando a Filomena Sousa, a médica ginecologista na Maternidade Alfredo da Costa que acabou por fazer a laqueação das trompas à Margarida, que na altura tinha 17 anos.“É uma médica com muita ética”, garante Carla, sublinhando que “ela não aceita as coisas à primeira sem primeiro fazer ver, sem primeiro dizer determinadas coisas, interrogar”. “No final da nossa conversa, ela explicou-me que não podia tomar essa decisão e tinha que ver alguma resposta por parte de algum médico que estivesse mais dentro do assunto da parte cognitiva e que realmente fizesse um atestado da incapacidade”, que aferisse que a Margarida não poderia comportar uma “gravidez responsável”.“A minha filha é seguida em vários médicos desde o nascimento - tudo em hospitais públicos - e passou a ser seguida na Pedopsiquiatria do Hospital Pediátrico da Estefânia.”Sobre Margarida, com ternura, Carla Claro diz que “é uma menina que fisicamente não tem qualquer tipo de problemas”.“Como é óbvio, [os médicos] falaram com ela. Apesar de ter esse défice cognitivo, é uma menina que fala, que diz as suas coisas, mas que, de facto, posso dizer e atestar neste momento que a minha filha tem 82% de incapacidade cognitiva.”Para descrever o processo de aferição da incapacidade, Carla explica que o “médico que esteve com a Margarida fez-lhe perguntas. Não há melhor que um médico psiquiatra, que a conhece e que a segue, com o discurso que ele conseguiu arranjar para atingir o entendimento que ela tenha sobre o que ia acontecer.” No fim, houve um relatório, que depois seguiu para a ginecologista e formalizou o processo que antecedeu a laqueação das trompas.Numa conversa que Filomena Sousa teve com Carla Claro sobre a irreversibilidade da esterilização de Margarida e das consequências que teria para a vida da então adolescente, a ginecologista alertou que a jovem “não tem características de quem tem algum tipo de deficiência”, motivo pelo qual avançou a possibilidade de, no futuro, haver “uma pessoa que se interessa por ela e que a assume”. Carla Claro respondeu à médica que não iria impedir a filha de fazer “essa vida se for esse o caso”, até porque, generalizando, diz a mãe, as pessoas com deficiência têm todos os direitos.Mas Carla Claro, no papel de mãe, deixa margem para um temor: “Imaginando que essa mesma pessoa, passados três meses, está cansada e já não quer. Como é que é?”Para a mãe, “deixar estas crianças terem filhos” é “uma irresponsabilidade”. E se restarem dúvidas quanto à capacidade de pessoas com deficiência, mesmo as profundas, estabelecerem relações, Carla Claro explica que estas acontecem muitas vezes nos Centro de Atividades Ocupacionais (CAO), onde “normalmente tendem a arranjar um amiguinho”. Ainda assim, Carla partilha com o DN a sua perspetiva e defende que “eles não têm propriamente a noção do que é que é o namoro”, mas “têm uma vida sexual ativa”. Ou “podem ter, independentemente das incapacidades”, mesmo que haja supervisão dos educadores das instituições, explica a mãe, preocupada.Num momento de confidência, Carla Claro conta que conhece casos de esterilizações de pessoas com deficiência feitas à margem do que está legalmente estabelecido, um pouco à semelhança do que acontece com a interrupção voluntária da gravidez. Neste caso, ainda que seja um tema que está mais relacionado com mulheres, também toca aos homens.“Sei de pessoas que têm filhos que também fizeram vasectomias”, confidencia Carla Claro.“Pintar o mundo de cor-de-rosa era tão bom”O DN conversou com Filomena Sousa, a médica ginecologista na Maternidade Alfredo da Costa que fez a laqueação das trompas a Margarida, e que deixou claro que “todos os casos” de esterilização que conduziu foi com recurso a “documentos, com relatórios de outros médicos a dizer que a situação [de deficiência] era irreversível e incompatível com a maternidade responsável”.Filomena Sousa garante que há mais de 10 anos que não faz nenhuma laqueação de trompas a mulheres com deficiência que não possam tomar por si próprias essa decisão, precisamente porque a lei tornou-se mais obscura no que diz respeito aos procedimentos a seguir, para além de ser obrigatório haver uma permissão judicial.“Acabo por avaliar caso a caso com os pais e chegarmos ali a um acordo do que é que é melhor para aquela jovem”, relata Filomena Sousa, sobre os casos que lhe chegam às mãos. Até porque, além de cirurgias permanentes e irreversíveis que resultam na esterilização das mulheres há métodos contracetivos alternativos, que também levantam dúvidas, desde logo pela forma como têm de ser renovados, no caso dos implantes subcutâneos e dos dispositivos intrauterinos.Há também os métodos mais conhecidos, como preservativos, pílula ou o anel vaginal, mas que, nestas circunstâncias, acabam por ser menos eficazes ou sequer contemplados, tendo em conta que a sua utilização implica consciência ou supervisão constante, que não seria possível.. Portanto, face às reservas legais que agora se impõem, “os pais ficam muito revoltados”, explica a médica. “Não podemos ajudar a filha com essa alternativa [laqueação das trompas], mas pronto, temos que nos socorrer do que temos à nossa disposição”, esclarece, resignada.Para poder continuar a “ajudar famílias”, em conversa com o DN Filomena Sousa apela ao Conselho de Ética e Deontologia Médica, da Ordem dos Médicos, que encontre “uma via, um canal que permita chegar ao juiz e obter essa autorização. Ou não, se os juízes acharem que não.”“Porque ninguém sabe quais são as vias para se conseguir ter essa autorização judicial”, desabafa a ginecologista, esclarecendo que, nas poucas tentativas que fez, recentemente, para poder fazer a cirurgia de esterilização a mulheres com deficiência, sem o seu consentimento, nunca conseguiu.“Tentei algumas vezes. Uns mandam para um lado, outros mandam para o outro. Até telefonei para o procurador de turno, para saber o que fazer num caso destes, porque nem sempre se resolve a situação durante uma consulta”, continua a médica.No fim, Filomena Sousa fica com os dados da jovem, dos cuidadores, com os contactos e não há resolução.Os médicos acabam por ter de assumir esta função administrativa “porque muitas vezes os cuidadores nem sequer têm conhecimentos para escrever os e-mails ou para preencher os documentos”.“Chega ali a uma altura que a gente não sabe o que fazer. Agora com quem é que eu falo mais? E ninguém me sabe dizer com quem é que tenho de falar.”Para além das dúvidas legais, Filomena Sousa alerta também para o que fica por esclarecer quanto às potenciais gravidezes, nomeadamente às circunstâncias em que surgem. Questionada sobre eventuais abusos nas instituições, que ficariam com menos consequências na eventualidade das mulheres com deficiência estarem esterilizadas, a ginecologista lembra que “algumas vezes têm libido, mas estão sempre vigiadas”. “Só se ficasse com um cuidador que em vez de cuidar ainda fosse abusador”, sugere a médica, sem desenvolver esta possibilidade, mas lembrando que “há aquelas situações em que nem se consegue entender porque é que a pessoa em causa não pode ter relações sexuais com preservativo ou por que é que, se tiver relações vai acabar por engravidar”.No fundo, descreve, as mulheres “com deficiência podem ter vontade de ter relações e às vezes convivem” com homens “que também têm algum grau de perturbação, desenvolvimento intelectual, mas têm a sua sexualidade a funcionar”. “Portanto acaba por acontecer com a maior das ingenuidades, sem terem noção de que ali pode resultar uma gravidez”. E é neste capítulo que Filomena Sousa frisa que há um conflito entre direitos.“Então não têm direito a usufruir da sua sexualidade? Quem é que diz se têm direito ou não têm direito?”Confrontada com o que alguns juristas defendem, como acontece no Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, penalizando a esterilização não consentida de pessoas com deficiência, alegando que é um atropelo ao direito à reprodução, Filomena Sousa lança uma pergunta retórica: “Não têm lá uma pessoa destas em casa?” Ou avança a hipótese de terem “condições diferentes da maioria das outras famílias, que têm poucos recursos”.No fundo, explica a médica, o ideal seria adaptar o mundo às pessoas com deficiência, e usa uma alegoria para descrever este desejo: “Pintar o mundo de cor-de-rosa era tão bom. Bastava tentar mudar só dentro da nossa casa e já era bom.”O direito à reprodução das pessoas com deficiência O DN contactou a Ordem dos Médicos (OM) para saber como é que um médico deve agir perante esta situação, tendo em conta que o Regulamento de Deontologia Médica prevê que “os métodos de esterilização irreversíveis só devem ser executados em menores ou incapazes após pedido devidamente fundamentado no sentido de evitar graves riscos para a sua vida ou saúde dos seus filhos hipotéticos e, sempre, mediante prévio parecer do Conselho Nacional de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos”.Este órgão colegial esclareceu que qualquer médico, “no exercício da sua profissão, deve prestar os melhores cuidados ao seu alcance, sendo técnica e deontologicamente independente e responsável pelos seus atos”, por isso, pode também “recusar a realização de qualquer ato cuja indicação clínica lhe pareça mal fundamentada”.A OM diz também que não se “pode executar nenhum ato médico sem obtenção de consentimento informado que, no caso de menores ou doentes com alterações cognitivas que os tornem incapazes, deve ser solicitado ao seu representante legal”, ainda que “isto não invalide que o médico procure o assentimento do seu doente, na medida em que este seja capaz de o expressar”. Para além de uma série de enquadramentos legais para determinar a forma como uma pessoa maior de idade, não estando na posse das suas capacidades cognitivas, pode ter um acompanhante legal que tome as decisões por si, a OM explica também que “não pode um qualquer diagnóstico fazer presumir a existência de uma incapacidade total, aplicando-se o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, segundo o qual, na dúvida da incapacidade todo e qualquer cidadão deve considerar-se capaz”. Por este motivo, a OM acrescenta que, “mesmo que seja decretada por tribunal competente uma medida de acompanhamento com poderes de repre- sentação geral, todos os direitos pessoais, incluindo o direito de procriar, são livres, nos termos do artigo 147.º n.º 2 do Código Civil”.Como corolário, o órgão regulador da profissão de médico diz “que todas as decisões relativas à saúde do indivíduo devem ser baseadas nos princípios éticos do consentimento informado, autonomia, dignidade da pessoa, independentemente da sua deficiência (mormente a intelectual)”. Portanto, devem prevalecer os “meios alternativos menos permanentes ou não irreversíveis, para o fim a que o um qualquer procedimento se destine”. Por fim, “a incapacidade mental não pode legitimar, por força do artigo 12.º da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, que um qualquer cidadão que sofra de uma doença psiquiátrica e por isso necessite de cuidados de saúde mental, perca a capacidade legal para o gozo de um direito”. O “manto de silêncio” e a voz das pessoas com deficiência“Estas situações não vêm com facilidade à luz do dia”, disse ao DN a coordenadora do Observatório da Deficiência e dos Direitos Humanos, Paula Campos Pinto, reforçando a ideia de que, neste tema, “são mais mulheres que são vítimas destes processos”. “Tudo isto se passa debaixo de um manto de silêncio”, reforça.“Chamo-lhes de vítimas, porque, de facto, tudo isto [esterilizações] é feito sem o seu consentimento e sem a sua compreensão daquilo que se está a passar. O que nos chega são relatos, às vezes até por terceiras pessoas, que podem ser técnicos das instituições, pessoas que estão ligadas ao meio e que nos vão transmitindo o conhecimento que têm.”Para a professora e investigadora da Universidade de Lisboa, onde funciona o Observatório, o modelo que está em vigor para os processos de esterilização de pessoas com deficiência é “muito médico e olha sempre para a pessoa com deficiência como alguém a quem falta qualquer coisa, uma pessoa que está incompleta de alguma forma”.Para a coordenadora do Observatório, “a deficiência é um conceito bem mais complexo do que isso e que resulta da interação da pessoa com o seu meio”, motivo pelo qual defende que a melhor resolução para os problemas destas pessoas seria dotar o “meio de mais recursos”, para que ele possa ser mais “apoiante e mais capacitante”. Portanto, a origem do problema está “na ausência total desse tipo de apoios”, porque faz com que seja “impensável que uma pessoa com deficiência intelectual possa exercer a parentalidade sem provocar riscos para outros”.Também por este motivo, Paula Campos Pinto defende que deve existir “uma legislação” que seja “mais severa relativamente à prática destes atos”.Tal como a lei está construída, uma “família pode chegar junto de um médico e, alegando que por uma questão de saúde, por uma questão de bem-estar, por uma questão de higiene, por uma questão de segurança, aquela pessoa deverá ser esterilizada”, explica a investigadora, sublinhando que, no final, “em alguns casos”, um determinado médico “poderá ter um maior grau de consciência e até colocar isto a um conselho ético do hospital”. “Mas há alguns outros que, sem grandes pudores”, procedem à cirurgia. Para Paula Pinto isto acontece porque nos médicos “radica também essa visão da pessoa com deficiência como alguém que não é pessoa completa”.O DN ouviu também a experiência que a Voz do Autista tem face a este tema, que passa “principalmente por mulheres com deficiência que foram esterilizadas”, explicou ao DN a presidente da associação, Sara Rocha.Questionada sobre quem é que alerta a associação para estas prática, Sara Rocha, que, segundo a própria, tem “multideficiência”, explica que é “muito raro ter cuidadores” que denunciam estas prática, “porque eles sabem a posição” da associação, o que faz com que tenham receio de serem julgados.“Na verdade, queremos é compreender as histórias e tentar evitar que aconteça novamente”, justifica Sara Rocha.Assim, “é difícil chegar a mulheres que foram esterilizadas, porque grande parte ainda está institucionalizada. Muitas delas estão dependentes das pessoas que tomaram essa decisão e, portanto, é muito difícil falarem”. Os casos que chegam à Voz do Autista estão relacionados com mudança de instituição, por exemplo, o “que faz com que elas tenham mais acesso ao exterior. Mas há muitas mulheres esterilizadas a quem ainda não conseguimos chegar”, destaca Sara Rocha. Questionada sobre os dados que existem sobre esterilizações forçadas, a presidente da Voz do Autista diz que não há, são difusos, sendo que o conhecimento que tem sobre o tema deve-se ao esforço em manter contactos.O que dificulta o acesso a dados concretos é o facto de não haver “desagregação por deficiência”, explica. “Quando estamos a falar de violência contra a mulher”, diz a dirigente associativa, seja “uma situação de violência, de esterilização forçada, seja aborto forçado, seja mesmo abuso ou violência doméstica”, não há a indicação que “tem deficiência ou não”. Para Sara Rocha, isto acontece porque, em geral “não tem interesse” para a maioria das pessoas. “É muito mais fácil, como está a acontecer agora. Sabemos de casos de mulheres que nos dizem que isto já não acontece. E é mais fácil dizer que não acontece do que ver se realmente acontece ou não”, desabafa.A Voz do Autista garante que recebe indicações de que as esterilizações forçadas continuam a acontecer, porque, “a partir do momento em que há o guardião legal, o regime de maior acompanhado, muitas vezes vão ao médico e fazem a cirurgia, o que é teoricamente ilegal”. “Não existe nada que diga que é assim que se deve fazer. Normalmente, teriam que pedir uma permissão especial ao tribunal e agora pedir uma permissão especial ao Comité de Ética. A informação que tenho é que o Comité de Ética não recebeu qualquer pedido. Quando falamos com as mulheres e com os familiares, com os casos que sabemos, normalmente não foi pedido nada. Foram ao médico e ficou tratado.”Questionada sobre se mantém esperança de que, por via do Parlamento, esta situação sofra alterações, Sara Rocha diz que tudo tem de ficar muito bem definido, mas o problema pode não ser apenas legal, porque, complementa, já existe “um formato legislativo que nem sequer está a ser cumprido. O que nós já temos não está a ser cumprido.”A “carnificina” e o consentimentoPara o professor de Direito na Universidade de Coimbra André Dias Pereira, fazer a esterilização antes dos 18 anos “é uma carnificina”, referindo ainda que, há 25 anos, quando este tema foi discutido no Tribunal Constitucional espanhol, “quando se defendeu que não era inconstitucional a esterilização das mulheres com deficiência mental”, o argumento fundamental era o de que esta prática iria permitir-lhes usufruir da liberdade sexual.Para além disto, “a ideia de que se pode retirar capacidade procriativa a um deficiente e que isso pode ser bom para o próprio ou para a família é algo que não é legítimo”, afirma.“Isto vai permitir-lhes ter uma vida sexual ativa durante décadas, enfim, sem a preocupação que não está no seu projeto de vida”, que seria a gravidez, lembra o professor, que traz à discussão outro argumento que entra em conflito com este: “Uma mulher até aos 18 anos e ainda por cima com doença mental não tem essa liberdade. Basicamente, está a ser vítima de abusos sexuais, porque está institucionalizada ou está dentro da família. Mesmo que seja um amiguinho, quer dizer, pode esperar 2 anos”, defende.No que diz respeito ao conceito de deficiência, o que se tenta fazer neste caso é “abandonar uma visão médica do doente para uma visão sociológica, ou seja, a sociedade é que não está preparada para lidar com a diferença”.“Se nos míopes a sociedade se enquadrou bem, pondo uns óculos e tal”, lembra, há muito a fazer na “área das deficiências mentais, incluindo os doentes com demência, o que conduz à matéria do tal maior acompanhado, que precisa de alguém que o acompanhe, que o apoie, que lhe dê ajuda para ir ao banco, para arrendar a casa”. Mas a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo ordenamento jurídico português, “diz que tudo o que tem a ver com a saúde e com os tratados, com os tais atos pessoais, casar, procriar, residir, a decisão de residir ou não residir num certo sítio deve ser sempre livre”, explica o também presidente da direção do Centro de Direito da Família e vice-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.Portanto, conclui André Dias Pereira, a esterilização sem consentimento de pessoas com deficiência configura “uma restrição de direitos fundamentais, do direito a procriar, a constituir família, direito à integridade física. Direito à saúde reprodutiva”, conclui.Esta ideia é corroborada também pela professora de Direito Paula Vítor, que acrescenta que “a esterilização não-terapêutica é inadmissível”. Portanto, se a mera possibilidade de gravidez puder pôr em perigo a vida de uma mulher, a esterilização é admitida, o que também é ressalvado no projeto de lei do Bloco de Esquerda.Porém, na base de todos estes processos, continua a professora, reside o próprio conceito de consentimento.“Quando falamos em prestar consentimento relativamente à esterilização, perguntamos quem presta. A primeira resposta tem que ser: a própria pessoa.”Paula Vítor também recorda que há situações em que é necessário questionar se as “pessoas com deficiência têm capacidade para prestar este consentimento”. Mesmo neste casos, insiste a jurista, “a primeira resposta tem de ser que sim. É a regra do Ordenamento Jurídico.”Mas há um equilíbrio entre figuras jurídicas que tem de ser tido em conta, continua Paula Vítor. “Ou a pessoa esteve sujeita a um processo judicial nos termos do qual se decretou uma medida de apoio”, como o estatuto de maior acompanhado, explica, ou então, como acontece em muitos casos, “há uma diminuição da capacidade”.E mesmo no casos em que é legal fazer a esterilização, como o que decorre do Regulamento de Deontologia Médica, “em que se prevê a utilização de métodos de esterilização irreversíveis a menores ou incapazes, no artigo 74, após pedido devidamente fundamentado, no sentido de evitar graves riscos para a vida, ou saúde de filhos hipotéticos”, argumenta Paula Vítor, “esta norma tem valor infra legal”. Isto significa, de acordo com a professora, que “existem artigos no Código Penal que se sobrepõem do ponto de vista hierárquico a esta norma e face aos quais é inadmissível esta prática”.