“Um crime investiga-se, não se transforma em debate público. Ser a violência doméstica crime público — ou seja, pode ser denunciado por qualquer pessoa e não apenas pela vítima — não significa que se possa falar do assunto depois de a alegada vítima estar morta (aliás, já é complicado quando as pessoas estão vivas), não dá carta branca para falar das coisas independentemente da vontade de uma pessoa que já não está, como se a pessoa que morreu não fosse tida nem achada, não tivesse direito a nenhum tipo de respeito e privacidade. Quando alguém morre há que ter cuidados acrescidos. Não se pode concluir que, lançando-se a suspeita de que uma figura pública foi vítima de um crime público, é tudo público — isso é devassa, é espectacularização, é pornografia. É uma forma de violência póstuma.”É assim, com indignação e palavras duras, que Maria João Faustino, doutorada em psicologia e investigadora em temas de violência de género e estudos feministas, reage a uma situação na qual, ante a morte inesperada de uma mulher que era figura pública, surja uma alegação, num escrito publicado num órgão de comunicação social, de que essa mulher, malgrado nunca o ter denunciado às autoridades, confidenciou ao autor do escrito ter sido vítima de violência doméstica durante uma determinada relação.“Nada disto”, prossegue Maria João Faustino, “é dizer que a violência doméstica é um assunto privado. De modo algum: se alguém está na posse de alguma informação relevante em termos criminais, então deve revelá-la — com cuidado, nas instâncias e no tempo próprios. Havendo matéria e havendo suspeita fundada, e um alegado agressor vivo, deve haver investigação, que pode inclusive ser jornalística, mas respeitando a família e o tempo necessário. O que não pode haver é um debate público, um deleite público, uma exploração macabra, uma monetização da tragédia. Senão o que temos é uma forma de profanação de cadáver.”Visto da área do Direito Penal, o caso suscita igual repugnância a Teresa Quintela de Brito, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). “Uma denúncia de um crime para o ser tem de ser acompanhada do relato de indícios, elementos factuais, que tornem verosímil a própria denúncia”, diz esta penalista ao DN. “Ou seja, a denúncia tem de ter alguma base de fundamentação. Não é por dizer ‘eu sou amigo e ela disse-me’ que a afirmação de que houve um crime tem credibilidade. Afirmá-lo, sem mais, seria de uma ligeireza, de uma falta de seriedade, até de uma insensibilidade, muito grandes — e mais ainda se a alegada vítima estiver morta, e a sua morte for recente.”Também a penalista Inês Ferreira Leite, que se notabilizou, como membro da associação feminista Capazes, na exigência de que o juiz desembargador do Tribunal da Relação do Porto Neto de Moura fosse punido pelas considerações insultuosas e caluniosas para as vítimas, e desculpabilizadoras para os agressores, que incluiu em acórdãos sobre casos de violência doméstica (o magistrado acabaria por ser punido pelo Conselho Superior de Magistratura e afastado das decisões sobre recursos criminais), considera que “uma pessoa séria que efetivamente tenha suspeitas fundadas da existência de um crime de violência doméstica do qual teria sido vítima alguém que já morreu ou vai às autoridades ou, no caso de se tratar de um jornalista, faz investigação jornalística. Qualquer outra coisa, designadamente lançar para praça pública uma alegação sem consubstanciar, será só atirar lama.” E pode, lembra, constituir em si um crime — quer de difamação, quer de devassa da vida privada, quer de ofensa à memória de pessoa falecida.“O MP não tem bases suficientes para abrir um inquérito” Ainda assim, perante o bruaá criado por uma afirmação como a descrita — na qual alguém garantisse e reiterasse, através de escritos públicos, que determinada pessoa, cuja morte sobreviera dias antes, fora vítima de violência doméstica, e que essa pessoa ponderara até, a dada altura, efetuar uma denúncia, mas desistira de o fazer —, deveria o Ministério Público instaurar um inquérito-crime?A opinião das duas penalistas ouvidas pelo jornal é de que não, mesmo na eventualidade de o crime em causa, cujo prazo de prescrição a partir dos factos é de 10 anos, não ter ainda prescrevido. Teresa Quintela de Brito explica melhor porquê. “O artigo 244º, ‘denúncia facultativa’, do Código de Processo Penal (CPP), diz que qualquer pessoa que tiver notícia de um crime pode denunciá-lo ao MP ou a outra autoridade judiciária, ou aos órgãos de polícia criminal, salvo se o procedimento depender de queixa ou acusação particular (o que não se aplica na violência doméstica).” Mas, volta a advertir, no caso em análise não houve — que se saiba — denúncia. E, prossegue, “uma das funções do MP perante uma denúncia é decidir se esta tem alguma plausibilidade e perante isso decidir se abre ou não um inquérito-crime. Isto resulta do artigo 53º, número 2, do CPP: ‘Compete em especial ao MP receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes.’”Para concluir: “Num caso em que não houve uma denúncia, mas apenas alguém que faz umas afirmações muito por alto, que não apresenta quaisquer factos que permitam dizer que há indícios da prática de um crime de violência doméstica, eu diria que o MP perante algo tão vago, tão estranho, tão sem sustentação não tem bases suficientes para, por iniciativa própria, abrir um inquérito.”No mesmo sentido se pronuncia, cortante, Inês Ferreira Leite: “O MP não vai abrir um inquérito de cada vez que alguém escreve uma coisa qualquer num jornal. Há uma margem de ponderação.”Além de que, reflete, “se tecnicamente o facto de a vítima ter falecido não obsta à existência do processo, há a questão de como se faz a prova. E, nesta situação abstrata, estando a alegada vítima morta e existindo, muito provavelmente, da parte da família e dos amigos, pudor em promover a continuação da dúvida sobre se foi ou não vítima, é complicado. Sendo importante sublinhar que, se tivesse existido de facto violência doméstica, não haveria motivo para haver vergonha por parte da família e amigos. Mas, ainda assim, poderiam pensar o que eu pensaria: se ela não quis fazer queixa, quem sou eu para o fazer?” Teresa Quintela de Brito concorda: “No caso em análise e pelas razões apontadas por Inês Ferreira Leite, a prova da existência de um ou mais crimes de violência doméstica contra uma pessoa falecida (o que não constitui novidade, pois, infelizmente, muitas são as pessoas mortas em contexto de violência doméstica) tornar-se-ia não apenas mais difícil, mas quase impossível.”“Se fosse do MP o que faria era chamar o autor dos escritos”Não havendo motivo para abrir um inquérito crime, deveria o MP efetuar aquilo a que dá o nome de “averiguação preventiva”, ou seja, uma averiguação sem as características do processo criminal, na qual se procura perceber se existe matéria para esse mesmo processo (como aquela que a Procuradoria-Geral da República anunciou ter aberto em relação à empresa familiar do primeiro-ministro, a Spinumviva)?“Não me parece”, responde Teresa Quintela de Brito. “Não sei sequer se teria base para chamar a pessoa que fez as afirmações, por se tratar de afirmações genéricas e não sustentadas, sem qualquer referência a factos, datas, etc. Mas é possível admitir que o MP — que também é composto de pessoas sensíveis — poderia, num contexto em que a alegada vítima tinha acabado de morrer e perante os inevitáveis zunzuns, deixar passar algum tempo, para tentar perceber melhor a situação antes de fazer o que quer que fosse. Por causa da questão humana, do respeito pela memória da pessoa morta, que teria optado por nunca dizer nada, e por se estar perante afirmações sem sustentação.”Inês Ferreira Leite tem uma visão algo distinta. “Face a uma situação como a descrita, na qual existiria necessariamente algum alarme social, se fosse do MP o que faria era chamar o autor dos escritos em privado, para saber se teria algo que permitisse achar que havia indícios de crime. Como o MP pode fazer averiguações preliminares, com certeza que aquela pessoa, tendo feito aquelas afirmações, estaria disponível para explicar em que se baseou.”E se, imaginando, a pessoa em causa, para “provar” o que disse, relatasse ou “comprovasse” conversas com a alegada vítima, por exemplo, mensagens escritas ou de áudio? Se fosse o caso, diz esta penalista, depende. “A utilização de conversas ou mensagens privadas é crime de devassa da vida privada se, por hipótese, alguém revelar essas conversas ou as publicar num meio de comunicação social ou nas redes sociais. Mas se se for ao MP com esse tipo de provas, se mensagens privadas provarem ou indiciarem um crime, e o crime for grave, o interesse de justiça e proteção da vítima — ou de futuras vítimas — prevalece, não se pratica crime nenhum, não há devassa, está-se a cumprir o seu direito/dever de denúncia”.Releve-se que o crime de devassa da vida privada, previsto no artigo 192º do Código Penal (CP), e que pune com pena de prisão até três anos quem, “sem consentimento e com a intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar e sexual”, “divulgar factos relativos à vida privada de outra pessoa”, não é punível quando for praticado “como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e relevante”.Mas se, existindo a imputação de um crime, não forem apresentadas provas, poder-se-á estar perante o crime de difamação. Este, tipificado no artigo 180º do CP, tem pena até seis meses de prisão e pune quem, “dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir tal imputação ou juízo”. A conduta não é punível quando “a imputação for feita para realizar interesses legítimos e o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.” Tal exceção, porém, não se aplica quando “se tratar de imputação de facto relativo à vida privada e familiar”. Quanto ao crime de violência doméstica, descrito no artigo 152º do CP, é cometido por quem, "de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns" a, por exemplo, "cônjuge ou ex-cônjuge", sendo punido com pena de prisão de dois a cinco anos (agravada se das ações descritas resultar ofensa à integridade física grave ou morte). .Violência doméstica: sobe, desce ou ninguém sabe?.Violência doméstica é igual a tortura, diz juiz do Tribunal Europeu.Relação de Lisboa acusa tribunal açoriano de "violência institucional" e de "vitimização secundária"."Portugal é um agressor das mulheres"