Como todos os anos em novembro - quando se celebra, a 25, o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres - fizeram-se discursos e publicaram-se contabilidades sobre participações de violência doméstica e mortes associadas a este crime. E, como todos os anos, o noticiário consistiu sobretudo na comparação com o ano anterior - se “subiu” ou “desceu”. A mensagem foi de que as participações estão a subir, e que os femicídios (homicídios de mulheres cuja “causa” é antes de mais serem mulheres) também..É certo que em relação à última década - ou seja, desde 2014 - o número de participações deste crime acelerou a partir de 2019; depois de uma “baixa” no período pandémico, houve um “salto” em 2022 (mais 15% que em 2021), para números que quase replicam o “recorde” de 2010, o ano com mais participações de sempre..Não é, no entanto, verdade que se tenha assistido a um aumento do homicídio de mulheres no contexto de VD (violência doméstica) - ainda que este indicador, a que o sociólogo Manuel Lisboa, um dos maiores especialistas nacionais na matéria, chama “o pico do pico do iceberg da violência doméstica”, seja, paradoxalmente, difícil de determinar..Segundo o Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA) - que há duas décadas reúne informação a partir do noticiário dos crimes - desde 2004 o ano com mais femicídios (categoria que inclui, além do contexto de VD, também o de violência sexual) foi 2008, com 40. De acordo com os relatórios anuais de segurança interna (os quais atribuem a 2008 “apenas” 10 homicídios em contexto de VD), porém, o ano “pior” em termos de mortes relacionadas com VD terá sido 2012, com 37. .Ainda segundo os dados das polícias, coligidos desde 2019 no portal de VD da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, em 2022 e 2023 contabilizaram-se, respetivamente, 24 e 17 mortes de mulheres. Este ano, até ao terceiro trimestre, apontam-se 15 mulheres mortas em contexto de violência doméstica. O OMA, contudo, encontrou 16 até novembro. E soma-lhes uma relacionado com violência sexual e três no seio de relações familiares..Segundo esta última fonte, desde 2014 que o número de femicídios nunca ultrapassou 25 (verificados quer em 2014 quer em 2015). Em 2022 houve os citados 24 e em 2019, 23. Os anos com menos “mortes intencionais de mulheres relacionadas com questões de género” foram 2016 e 2017, com 14 cada..Começa precisamente aqui, na dificuldade em encontrar números - até os números que necessariamente existem -, a incerteza em relação àquilo que, numa muito criticada alocução no 25 de novembro, o primeiro-ministro Luís Montenegro denominou de “desocultação”, ou “saída do armário”, do fenómeno..É que, malgrado a violência doméstica ser desde 2007 um dos crimes mais participados e, desde a mesma altura, de investigação prioritária, não é fácil determinar, com rigor, aquilo que se dá o nome de “séries longas”, e que pode permitir ter uma ideia sobre tendências: a evolução das participações ao longo de vários anos - de preferência, mais de uma década..O que sabemos com certeza - a certeza que nos dão os números “oficiais” das polícias, coligidos nos relatórios anuais de segurança interna (RASI) - é que, nas últimas duas décadas, 2010 é o ano com mais participações por VD: 31 235. Só em 2022 e 2023 se voltaram a registar números acima das três dezenas de milhar (respectivamente 30 488 e 30 461)..Foi aliás logo após a autonomização do crime, na reforma penal de 2007, que se verificou não só o mais elevado total de participações até hoje registado como os incrementos mais impressionantes. Se em 2007 as estatísticas das polícias davam a ver menos de 16 mil registos de “maus tratos de cônjuge ou análogo” (tipo criminal existente desde 1982 e que foi substituído pelo de violência doméstica), em 2008 a VD entre cônjuges, companheiros ou “ex” dava um salto para 24 818 - mais 55%. Adicionando os outros tipos de VD abrangidos pelo tipo criminal - violência entre ascendentes e descendentes, irmãos, etc - contabilizou-se o até aí número recorde de 27 743 participações/ocorrências..“Haver mais participações é uma evolução positiva”?.O salto em 2008 foi tão expressivo que no respetivo RASI a VD é indicada como responsável por cerca de 22% do aumento da criminalidade participada. Só a PSP, que recebeu nesse ano mais de metade das participações (63,6%), registou um acréscimo de 35,2% face a 2007..Mas esta tendência de subida já se verificava antes da autonomização do tipo criminal: no RASI de 2006 registava-se, com 14 232 ocorrências (mais 2 402), um aumento de 30% na participação do crime de “maus tratos de cônjuge ou análogo”, sendo que os outros dois tipos criminais referidos como tendo uma subida assinalável na categoria de crimes contra as pessoas - ofensa à integridade física simples e ameaça e coação - podem também estar relacionados com violência doméstica. É que, como denunciam as organizações que apoiam as vítimas, não era raro as polícias ou o MP “classificarem” como ofensa à integridade física, ameaça ou coação ocorrências de VD. Aliás é interessante notar que entre 2003 e 2013 o número de participações do crime de ofensas voluntárias à integridade física apresentou uma descida muito considerável e sustentada: de 44 296 para 25 627, ou seja menos 42% (10 anos depois, em 2023, este crime, sendo um dos mais numerosos na categoria “contra pessoas”, contabiliza 24 111 participações - bem menos que as de VD)..Temos pois que se assistiu a um aumento extraordinário de denúncias de VD na primeira década do século - aumento que não tem paralelo com qualquer outro verificado desde então. Significa tal que ocorreu nessa altura um súbito “acréscimo da violência doméstica” como fenómeno na sociedade portuguesa? Não é essa a leitura que encontramos nos relatórios policiais..Assinalando “o facto de o número de ocorrências [do crime de maus tratos] ter vindo a aumentar desde que este crime se tornou público [em 2000], o RASI de 2006 explicava “o aumento dos números de denúncias-crime expressos nas estatísticas oficiais” como “fruto de uma maior visibilidade do fenómeno, de campanhas públicas de sensibilização, maior consciencialização das vítimas para os seus direitos e maior exposição mediática. (…) Há um crescente trabalho em rede ao nível nacional e local, envolvendo diversos atores relevantes – operadores judiciários, autarquias, ipss’s, ong’s, etc. (…) A formação específica das forças de segurança e a sua maior abertura à sociedade civil tem sido um factor importante para uma maior sensibilização e preparação dos profissionais de polícia para lidarem com os casos de violência doméstica com que se deparam.”.E este RASI dizia mesmo, na respetiva página 51, que “o aumento das participações por violência doméstica no nosso país deve ser tendencialmente interpretado como uma evolução positiva, no sentido em que poderemos estar perante uma redução crescente das cifras negras e não um aumento real do fenómeno, a atestar uma maior consciência dos direitos das vítimas, um maior receio dos agressores, uma maior e melhor capacidade de resposta das autoridades policiais e uma maior pressão da opinião pública para a redução drástica da expressão do fenómeno”..Lembram alguma coisa, estas palavras com quase 20 anos? Certo: o discurso de 25 de novembro do primeiro-ministro. “Um dos fenómenos que aconteceu nos últimos anos foi precisamente que muita coisa saiu do armário onde estava escondida”, disse Montenegro. “Eu não quero, repito, chocar ninguém, mas tenho consciência de que o aumento a que assistimos em alguns anos [do crime de violência doméstica] não significa um aumento real, significa um aumento de conhecimento”..O que sai e o que fica no armário.Que se assistiu a um aumento do conhecimento do fenómeno não é discutível: basta lembrar, como faz a investigadora da Universidade Católica Marcela Valente Costa num artigo publicado em 2022 na Revista Ultracontinental de Literatura Jurídica, que “a consciência social da censurabilidade dos comportamentos que se traduzem em violência contra as mulheres, em especial no seio da família, é muito recente”. E que, se o primeiro Código Penal da democracia, de 1982, criou, como já vimos, o crime de maus-tratos entre cônjuges, com pena de seis meses a três anos, “o preenchimento dependia não só do ato de infligir maus-tratos físicos, de um tratamento cruel” mas essa conduta tinha “necessariamente de se fundar em malvadez ou egoísmo”. Ou seja, era preciso (foi assim até 1995) não só provar a agressão mas também a intenção - em vez de se concentrar no dano causado à vítima, a lei estava preocupada em compreender as intenções e natureza do agressor. Anota a jurista que tal demonstra o receio do legislador de “intervir penalmente em domínios que, tradicionalmente, pareciam querer prolongar um poder quase absoluto do marido (…)”..Esta relutância da lei, e portanto da sociedade, em ver e valorizar o crime que hoje denominamos de violência doméstica traduziu-se igualmente numa cegueira estatística: durante muito tempo, foi muito difícil ou mesmo impossível determinar quantas queixas de maus tratos no seio das relações conjugais ou análogas existiam, porque o crime englobava também os maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados..Por outro lado, a partir da autonomização do tipo criminal de VD, em 2007, não só foram explicitamente incluídas relações de namoro e entre pessoas do mesmo sexo, alargando-se o universo potencial de vítimas e agressores, como se foram integrando mais atos/crimes sob este “chapéu” - em 2018, por exemplo, deu-se, como aponta a autora citada, “a criminalização no contexto da violência doméstica da difusão de dados pessoais da vítima relativos à intimidade da vida privada, sem o consentimento desta”..Ao interpretar as chamadas “séries longas” de dados sobre VD é pois necessário ter em mente as sucessivas alterações ao tipo criminal, que podem também contribuir para um aumento no número das participações - e como as estatísticas policiais não incluem referência ao tipo de atos específicos em causa, a análise pode ser muito complicada..Que o diga o sociólogo Manuel Lisboa, que há décadas investiga o fenómeno. “Falta tanta coisa em termos de dados - é necessária, nesse aspeto, uma articulação devida entre os órgãos do estado, polícias e tribunais”. Por outro lado, sublinha, para realmente aferir se a prevalência do fenómeno na sociedade portuguesa está a diminuir ou aumentar é necessário fazer um inquérito nacional, o chamado “inquérito de vitimação”..“Houve dois inquéritos, um em 1995 e outro em 2007 e nunca mais se fez nada. O que sabemos dos inquéritos nacionais que foram efetuados, e de inquéritos regionais mais recentes, em Lisboa, de 2017, e nos Açores, de 2018/2019, é que há imensa gente que não vai às polícias queixar-se - a reação mais comum é ‘não fazerem nada’, mesmo quando sentem a vida em perigo, o que é muito aflitivo. Pelo que as participações às polícias não refletem a prevalência. Não se podem tirar conclusões sobre se o fenómeno aumenta ou diminui. Para se definir uma tendência tem de ter muitos pontos de observação ao longo do tempo. Temos de ter dados comparáveis com os dados anteriores.”.Ainda assim, o facto de haver, no cômputo das duas últimas décadas, menos mulheres a serem mortas no contexto de VD é para Manuel Lisboa um dos vários indicadores existentes de que talvez “as mulheres não deixem prolongar tanto a situação, que o grau de tolerância em relação a um conjunto de atos tenha vindo a diminuir. Aliás isso é um processo histórico, não é só português. Há menos criminalidade, mas há muito mais intolerância à violência”. .“As mulheres têm mais consciência da insuportabilidade”.Daniel Cotrim, psicólogo que na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) trabalha há mais de vinte anos com vítimas de VD, tem uma impressão semelhante: “As mulheres estão a pedir ajuda mais cedo, porque têm mais consciência da insuportabilidade, do que é violência. Quando comecei a trabalhar nisto, as que pediam ajuda tinham 60 e tal anos e, com os filhos já autónomos, decidiam que não aguentavam mais. Agora temos mulheres de 20 e tal anos.”.A este maior empoderamento e maior “rapidez” na chegada ao “não quero mais isto” corresponde porém uma escalada muito mais rápida na violência, adverte o psicólogo. “Porque a VD tem a ver com poder e controlo, e elas se querem ir embora. Agora falamos de três, quatro anos até à violência - se formos ver os femicídios, acontecem quatro a cinco anos desde o início da relação. As médias etárias nas casas-abrigo estão nos 30/40 anos, com filhos muito pequeninos.”.Podemos pois ter as duas coisas a ocorrer ao mesmo tempo: mais empoderamento das mulheres e mais crimes. Porque, frisa o técnico da APAV, malgrado tudo o que melhorou - em termos de legislação, de informação, de consciência na sociedade, de especialização e maior capacidade das polícias para lidar com o fenómeno -, “todos os estudos de incidência e prevalência internacionais dizem que por cada queixa que aparece há uma ou duas que ficam na escuridão. E temos um aumento das denúncias na APAV”..Acrescendo que, lembra, “em todas as análises retrospectivas efetuadas sobre homicídios no contexto de VD [análises que visam perceber o que correu mal no sistema para que aquela mulher acabasse morta] vemos sempre as mesmas recomendações: que os tribunais levem a sério as avaliações de risco das polícias, que os planos de segurança sejam revistos quando necessário. E temos de ter medidas mais cedo. A lei diz lá que se pode prender havendo flagrante delito. Quantas prisões aconteceram em flagrante delito?”.As vítimas têm de sentir que serão protegidas se denunciarem, prossegue o psicólogo. “Senão continuarão a calar. Até porque o sistema continua a julgá-las, a fazer sempre a mesma pergunta: ‘Se era mau, porque é que ficou?’ Quando a pergunta que tem de ser feita é ao agressor - ‘Porque é que agrediu?’”.Essa responsabilização da vítima, diz a jurista Maria Leonor Marciano, da UMAR, “também se verifica no assentar todo o peso do processo nela, exigindo-se-lhe que fale, que apresente provas, sob pena de nada andar para a frente”. Ora, argumenta, “o facto de estarmos perante um crime público, que não depende de queixa, significa que tem de haver uma atitude pró-activa do Ministério Público, no sentido de investigar, de encontrar provas. Porque os estudos dizem-nos que há sempre pessoas que sabem, que são testemunhas. E as testemunhas também têm de partilhar a responsabilidade - a violência doméstica é um problema social, de todos, implica um envolvimento da sociedade no combate ao crime.”.Como Daniel Cotrim, a jurista da UMAR choca-se com o contraste das casas-abrigo “lotadas” face ao diminuto número de medidas de coação impostas aos agressores. Apesar de estas medidas terem registado um aumento de 176% entre 2018 e 2024 (de 436 para 1204), e os reclusos preventivos relacionados com VD mais que triplicado (de 112 para 342) no mesmo período, o total de mulheres e crianças acolhidas na Rede Nacional de Apoio às Vítimas de VD pouco variou: eram no terceiro trimestre deste ano 1439 (746 mulheres e 693 crianças), quase tantas como no quarto trimestre de 2019 (1435). Quanto ao universo das vítimas com botão de pânico/tele-assistência (que, como é sabido, em vários casos não impediu homicídios), no terceiro trimestre de 2024 foram contabilizadas 5516 (face a 2041 no quarto trimestre de 2018). .“Muitas vezes perguntamos o que leva as mulheres a voltarem atrás, a voltarem para o agressor. É que elas ficam sem nada - sem emprego, sem casa, sem perspectiva. Há falta de respostas atempadas e adequadas. E perante isso as mulheres podem não fazer queixa segunda ou terceira vez porque já sabem que o sistema não funciona”, acusa a jurista da UMAR..“Estamos melhor? Mal seria que não estivéssemos”, conclui. “Mas o que temos não chega. Está na altura de revermos 20 anos de políticas públicas sobre violência doméstica. Temos de perceber como fazer a diferença. E também trabalhar na prevenção. Temos de incluir nos currículos escolares o direito à igualdade, trabalhar isto nas escolas.”.Porque, claro, há o substrato de tudo isto, de que fala Manuel Lisboa no livro Vidas Supensas, práticas e consequências da violência. A violência contra as mulheres na pandemia de Covid-19 em Portugal (2024): “A violência que é exercida contra as mulheres pelo facto de serem mulheres resulta antes de mais da desigualdade de poder atribuído numa determinada sociedade ao ser homem e mulher.(…) A violência contra as mulheres, particularmente a doméstica e de género, é a expressão dramatizada, e menos oculta, das desigualdades de género das nossas sociedades que estão presentes em todos domínios, dos públicos aos privados, nos campos económico, político, social e cultural.”