"Portugal é um agressor das mulheres"
"Estou num centro de atendimento em Almada. Ainda ontem tivemos uma situação aqui de um tribunal da zona: como o homem só proferia injúrias e ameaças, disseram, isso não merecia a qualificação de violência doméstica."
Isto no início de ano em que já foram assassinadas 10 mulheres e uma criança de 2 anos em contexto de violência doméstica. Elisabete Brasil suspira: "É uma irritação constante." A trabalhar com vítimas de violência doméstica desde 1997 na UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta - recusa ainda assim a desesperança. "Precisamos de acreditar que é possível. Muitas mulheres saíram do ciclo de violência, alguma coisa mudou. Apesar de tudo as mulheres continuam a confiar e a apresentar denúncia. Mas também há muitas que acham que não vale a pena, porque têm a ideia de que não serve de nada. Pedem-nos apoio para sair das relações sem recorrer à polícia e tribunais." Um resguardo, uma atitude defensiva por parte das mulheres que, considera, "é um mau sinal num país que declarou este crime como público há quase 20 anos".
A UMAR ainda não fez uma contabilização das mulheres que querem tentar resolver as coisas sem apresentar queixa, mas "em termos empíricos resulta a sensação de que o número de vezes em que esta conversa salta tem vindo a crescer".
Daniel Cotrim, psicólogo e na Associação Portuguesa de Apoio à Vítima desde 2001, tem o mesmo feeling. "Estamos preocupados com as cifras negras [casos não denunciados]. Os números de denúncias têm estabilizado de há dois anos para cá - os nossos, da APAV, e os do Relatório Anual de Segurança Interna, que são diferentes porque os do RASI são os das pessoas que saíram das situações, tomaram uma atitude, e a nós recorrem muitas pessoas que estão ainda sem saber o que fazer, num limbo, que procuram informação, ajuda. Mas temos a noção de que as condições económico-financeiras têm muita importância nisso, nomeadamente a casa, a morada, sobretudo desde que os preços têm vindo a subir esse fator é importantíssimo."
Por outro lado, alerta, houve uma alteração muito importante da vitimologia. "As relações são muito mais violentas do que aquelas que nos chegavam há uns anos. Há 15 anos estaria a falar com mulheres com mais de 60 anos e períodos abusivos com mais de 30, e que só tinham decidido sair da situação porque os filhos estavam autónomos. E, de há quatro anos para cá, estamos a falar de períodos de seis anos de relação." A explicação que encontra para o facto de se passar "muito mais depressa da violência psicológica para a física é que as vítimas tentam libertar-se mais cedo, têm mais informação, mais acesso a ajuda. E a violência brutaliza-se." Aliás, comenta, se antes o álcool era geralmente um fator de ignição, agora "muitas delas dizem que o marido bebia para se acalmar, depois de lhes bater e de as violar".
Curioso então que seja precisamente nos últimos quatro anos que Cotrim situa uma alteração cultural na forma de encarar o fenómeno. "Quando comecei a trabalhar não existia o crime de violência doméstica [foi criado com esse nome em 2007; antes estava integrado no de maus-tratos] e o polícia mandava a pessoa para casa porque o Benfica perdeu e coitado do homem tinha-se enervado. Há 20 anos começámos a desocultar o crime; depois passou-se um período em que violência doméstica era vista como um crime, que não se tolera. E nos últimos três ou quatro anos parece ter voltado a tolerância. Voltei a ouvir discursos que não pensava nunca mais ouvir - "o que é que ela fez", o discurso da culpabilidade. Que é muito potenciado pelas redes sociais, pela desinformação, pelo lado bisbilhoteiro, voyeurista, de espetáculo, que normaliza. E tenho ouvido coisas horríveis na TV, de advogados, comentários que culpabilizam as vítimas de violência de género."
Um efeito clássico: quando as vítimas deixam de querer ser vítimas, ou os dominados se sublevam, os dominadores/agressores redobram a crueldade no desígnio de manter o domínio.
Mais veterana ainda nesta área, Margarida Medina Martins, da Associação das Mulheres contra a Violência, vai para 26 anos a trabalhar com violência de género. Não consegue, porém, corroborar a análise de Daniel Cotrim: "Há ciclos - há fases em que temos mulheres mais idosas e outras em que as temos mais jovens. Tanto nos aparecem miúdas de 16 anos a solicitar apoio como mulheres com 60, 70. Não posso dizer que na AMCM tenhamos uma curva."
E quanto à alteração no grau de violência? "A violência doméstica não é toda igual - é como trabalhar com explosivos. Pode haver um homicídio de um dia para o outro." E quando, como agora, há uma sucessão rápida de homicídios, isso pode ter uma leitura? "O que está a acontecer massivamente é o reflexo da falta. Nenhum governo conseguiu passar para o aparelho de Estado o compromisso da luta contra a violência doméstica e de género. Está tudo em autogestão. Percebemos a relevância de se tornar este crime público [o que significa que qualquer pessoa o pode denunciar, e não apenas a vítima, e também que uma vez denunciado a vítima não pode desistir da queixa], mas é um preço muito alto para as mulheres. Porque não houve toda uma estratégia de prevenção para evitar os homicídios nem a criação de uma estratégia - e estão a ser postas em risco pela máquina do crime público."
Balanço? "Neste ano faz 20 anos de planos nacionais contra a violência doméstica. Devemos ser dos países mais avançados, em relação a instrumentos, estratégia, planos. Temos na sua essência o desenho todo. Temos ainda pontualmente nas forças de segurança a desvalorização, mas dos profissionais no terreno são os que estão mais avançados, porque houve um grande investimento na formação das polícias. Temos uma rede de casas abrigo e de acolhimento de emergência. Mas falta a contenção. Estamos numa fase em que só a prisão e a coação podem conter os agressores. O problema é a máquina." Faz uma pausa. "Às vezes fico cansada e zangada com o mundo."
A voz seca e dura de Medina Martins e as suas frases curtas e lapidares são uma outra forma de transmitir a exasperação resiliente de Elisabete e de Daniel Cotrim. "Estou a falar consigo numa casa de abrigo e estão aqui 11 mulheres que vão conseguir a sua casa e um emprego", diz o psicólogo. "Na teoria, a casa abrigo serve para proteger pessoas em situação de risco, por um certo período. Mas na justiça entretanto a coisa para e o indivíduo continua a passear-se na terra dele. E como explicamos a estas pessoas que aqui estiveram escondidas que vão sair e o risco se mantém? Porque é que há mais casas abrigo, porque é que sei quantas mulheres estiveram em casa abrigo e não sei quantas medidas de coação foram aplicadas aos agressores, nem quantas prisões preventivas foram aplicadas?" Por outro lado, prossegue, "quando tentamos que apliquem a medida de coação [existente desde 1991] de afastamento do agressor de casa, ouvimos muitas vezes: "Podemos fazer isso, mas ele coitado vai para onde?" E então afastamos a vítima de casa."
Elisabete Brasil faz-se eco da mesma fúria: "Nas análises retrospetivas dos homicídios nunca vemos essa medida aplicada. É um problema do Ministério Público (MP), que não a pede, e do juiz de instrução criminal, que não a decreta. E há quem ponha em causa a constitucionalidade da medida; quando há legislação que imponha aos agressores alguma restrição fala-se logo em inconstitucionalidade. Tem graça, nunca foi alegada a inconstitucionalidade da teleassistência, que segue a mulher para todo o lado. E todos os anos estão em casas abrigo mais de 3000 mulheres e crianças, mas o número de agressores com medidas de coação é irrisório - sendo certo que nem sequer temos esses números."
Quer a equipa nomeada em 2018 pela PGR, ainda no consulado de Joana Marques Vidal, para "fazer um manual de boas práticas do MP para a violência doméstica", quer o recente comunicado do governo, PGR e Comissão para a Igualdade de Género falam da necessidade de conhecer as medidas de coação aplicadas aos agressores e seu impacto.
Mas não são só esses dados que faltam. É da UMAR a contabilidade anual de mulheres mortas e das tentativas de homicídio em contexto de violência doméstica, feita a partir das notícias: as estatísticas do Ministério da Justiça não permitem determinar com exatidão o número de mulheres assassinadas nesse contexto, como a ministra Francisca van Dunem apontou num relatório de 2015 como procuradora-geral distrital de Lisboa.
"Temos um problema com os indicadores, ainda. É necessário ter idades, sexos, relações entre vítimas e agressores, de modo que seja possível uma comparação a nível nacional e mesmo entre Estados", vinca Elisabete. "Porque o crime de violência doméstica inclui agressões a ascendentes e descendentes, e nas estatísticas não existe a separação."
E, como frisava a então procuradora Van Dunem num relatório de 2015, as vítimas da violência doméstica, incluindo as mortais, são muitas vezes não a pessoa que tinha a relação com o homicida mas alguém próximo: a sogra e a filha, como no caso recente do Seixal, ou uma advogada, em 2014. Como se lia no citado documento, a violência doméstica/de género poderá ser a principal causa de homicídio doloso em Portugal.
Poderá. No entanto, como diz Daniel Cotrim, "se calhar o crime de violência doméstica ainda não é visto por muita gente como um crime mesmo, mas uma questão social - porque a leitura destas situações está muito pejada de estereótipos e mitos".
Voltamos sempre, lamenta Elisabete Brasil, "à questão da naturalização da violência. Porque isso acaba por ter um efeito prático na altura da decisão, determina que se aplique ou não uma medida. Quando estou a avaliar como é que a pessoa foi agredida, se o foi ou não, e a gravidade dessa agressão, estou a usar a minha subjetividade. E aí vêm ao de cima os nossos internos netos de moura, vem ao de cima tudo".
Daí que, crê, "faria muito mais sentido termos tribunais especializados a trabalhar estas questões. Para quê haver Departamentos de Investigação e Ação Penal com secções especializadas em violência doméstica se quem lá está não tem especial formação para isso? Porque o que se tem de perguntar é como é que há magistrados a despromover um crime de violência doméstica para ameaças e coação [refere o caso do Seixal, em que após a PSP ter classificado a situação como de violência doméstica e de risco grave, o MP considerou que se tratava de um crime de ameaças e coação]; por que é que uns magistrados promovem medidas de coação e outros não." E depois, lembra Margarida Medina Martins, quando uma mulher é morta, ninguém é responsabilizado pelas decisões que tomou ou não tomou. "Em 25 anos, não se parou de fazer planos nacionais, mas a comunidade não foi tocada. Não temos uma cultura de instrumentos vinculativos. É crime público mas é opcional."
Todo o sistema pactua, conclui Elisabete. "O Estado português é também um agressor. Tem de haver uma maior responsabilização por parte do Estado, e tem de se começar a assacar ao Estado a sua responsabilidade em instâncias nacionais e internacionais. Porque quando não se aplica as leis do país está a dar-se uma permissão velada para cometer crimes."