José Manuel Durão Barroso nasceu em Lisboa, em 1956. Formou-se em Direito na Universidade de Lisboa e completou estudos em Ciência Política na Universidade de Genebra. Entrou cedo na vida governativa, como secretário de Estado nos governos de Cavaco Silva, primeiro na Administração Interna e depois nos Negócios Estrangeiros, onde teve um papel relevante na política externa portuguesa, incluindo no processo que levou aos Acordos de Bicesse sobre a paz em Angola. Foi depois ministro dos Negócios Estrangeiros e, neste cargo, foi o primeiro governante português a reunir-se com o seu homólogo indonésio para iniciar as conversações que conduziram à autodeterminação de Timor-Leste. Liderou o PSD e tornou-se primeiro-ministro em 2002.Em 2004 deixou o Governo português para assumir a presidência da Comissão Europeia, cargo que exerceu durante uma década marcada por enormes desafios, incluindo a maior crise financeira internacional que atingiu a União Europeia desde a sua fundação. Nessas funções recebeu, em Oslo, em representação da União Europeia, o Prémio Nobel da Paz, pelo papel do projeto europeu na reconciliação do continente.Em 2021 voltou a um palco global na área da saúde pública, como presidente do Conselho de Administração da Aliança Global para as Vacinas (GAVI), num período decisivo após a pandemia de Covid-19. Foi ainda chairman da Goldman Sachs International e desempenha hoje funções académicas e de ensino em diversas universidades e instituições internacionais, entre as quais a Universidade Católica Portuguesa, onde é também diretor do centro de Estudos Europeus do Instituto de Estudos Políticos, e Professor convidado no Instituto Universitário Europeu em Florença,É uma das figuras portuguesas com maior projeção internacional das últimas décadas.Na sua carreira, esteve várias vezes no centro de momentos críticos globais. Hoje temos uma guerra na Europa, um mundo multipolar, democracias ameaçadas. À luz de toda esta experiência, como é que lê o mundo de hoje?Hoje vivemos uma das situações mais difíceis, do ponto de vista internacional, de que há memória pelo menos desde a Segunda Guerra Mundial. Por vezes idealizamos o passado e dramatizamos o presente, mas a verdade é que estamos numa situação internacional volátil, polarizada, fragmentada, extremamente perigosa, nomeadamente aqui na Europa. Os riscos são hoje maiores do que eram anteriormente. Isso acontece por uma série de tendências que já vinham a notar-se há algum tempo e que foram objeto de amplificação e aprofundamento mais recentemente.Desde a competição entre os grandes poderes mundiais até às consequências da pandemia. A pandemia levou a uma mudança de paradigma no que diz respeito às questões da segurança económica e, por extensão, da segurança em geral.Depois tivemos a invasão da Ucrânia pela Rússia. E, mais recentemente, a incerteza cresceu , com a nova Administração norte-americana.. Onde é que vê a ameaça mais premente? Na guerra na Europa, no Leste Europeu, no eixo Estados Unidos-China, com a nova administração norte-americana, na instabilidade do Médio Oriente? Ou essa erosão interna das democracias é o fator determinante?Claramente, a ameaça mais direta, mais urgente e mais grave é representada pela Rússia, porque estamos, de facto, numa situação de guerra na Europa. É uma guerra híbrida, como agora se diz, mas é uma guerra. Não é apenas a Ucrânia que está a ser alvo da agressão russa.Temos notícias claras de campanhas de desinformação, de sabotagem de cabos submarinos, de provocações com invasão do espaço aéreo de alguns países da União Europeia e da NATO. É aquilo a que se chama uma guerra híbrida. Aliás, a primeira-ministra dinamarquesa disse-o claramente: não estamos em paz, mas numa guerra híbrida.Aqui em Portugal, talvez por causa da distância relativamente ao teatro principal de operações, não sentimos a ameaça com a mesma urgência e dramatismo. Mas, recentemente, estive na Dinamarca, Suécia e na Polónia e, sobretudo nesta, sente-se essa urgência e a ameaça existencial que a Rússia representa para aquele país. Ora, a Polónia, os Bálticos e outros membros da União Europeia e da NATO, alguns com fronteira comum com a Rússia, são países aos quais estamos obrigados a dar assistência no caso de agressão .É, por isso, uma situação grave, que não deve ser subestimada.Acha que a Europa, coletivamente, subestimou demasiado tempo a ameaça russa?Talvez depois da invasão da Crimeia, que foi em 2014 - e eu lembro-me bem, porque ainda estava em funções -, isso tenha acontecido. Mas costumo dizer que não podemos julgar o passado com as lentes do presente, nomeadamente quando fazemos críticas fáceis aos decisores políticos. É um anacronismo estarmos a analisar uma situação passada com a informação que temos no presente.Penso que a Europa fez o que devia quando tentou aproveitar as hipóteses de uma modernização e democratização da Rússia. Era o que tínhamos de fazer, na altura. Infelizmente, por razões que têm a ver, sobretudo, com os desenvolvimentos internos da Rússia - embora possa ter havido também alguns erros no relacionamento, quer do lado europeu, quer do lado americano, sobretudo do americano -, a verdade é que não se concretizaram as expectativas de uma transição da Rússia para um modelo democrático, pluralista e de convivência pacífica com os outros países europeus.Mas quando depois se tornou evidente, e isso aconteceu de forma nítida em 2014 com a anexação da Crimeia, aí, de facto, com algumas exceções - nomeadamente o Reino Unido, que percebeu imediatamente o que estava em causa e começou ativamente a apoiar a defesa ucraniana, incluindo com treino das suas tropas -, a Europa cometeu erros de subestimação dos riscos..Os Estados Unidos, aliás, tiveram, no geral, uma posição de maior condescendência em relação à Rússia do que os europeus. Eu vi isso quando ,ainda com outras Administrações, negociávamos o acordo de associação com a Ucrânia. Foi a minha Comissão que negociou esse acordo.. Os Estados Unidos, aliás, tiveram, no geral, uma posição de maior condescendência em relação à Rússia do que os europeus. Eu vi isso quando ,ainda com outras Administrações, negociávamos o acordo de associação com a Ucrânia. Foi a minha Comissão que negociou esse acordo.. Mas, das várias reuniões que teve com Vladimir Putin, esperava esta atitude da Rússia e, concretamente, do presidente russo, antes da guerra?Putin foi o líder fora da União Europeia com quem mais me encontrei, porque na altura tínhamos cimeiras bianuais com a Rússia. Mesmo quando ele foi primeiro-ministro, entre a sua primeira e segunda presidência, vinha a Bruxelas como chefe de governo; e eu fui várias vezes a Moscovo e pude ver a sua evolução.Quando foi a invasão da Crimeia, ele mentiu de forma escandalosa numa conversa que tive com ele. Disse-me que não era uma invasão da Rússia o que se estava a passar, porque, se fossem as Forças Armadas russas, poderiam tomar Kiev em menos de duas semanas. É curioso ter dito isto já em 2014. Não é preciso sermos adeptos da psicanálise para perceber que isso era a manifestação involuntária de um desejo subentendido….Portanto, eu já não tinha qualquer confiança em Putin. Agora, honestamente, não pensava que ele fosse para a invasão generalizada que lançou em 2022, porque achava - como continuo a achar - que seria um erro tão grave, do próprio ponto de vista russo, que provavelmente não o faria.. Portanto, eu já não tinha qualquer confiança em Putin. Agora, honestamente, não pensava que ele fosse para a invasão generalizada que lançou em 2022, porque achava - como continuo a achar - que seria um erro tão grave, do próprio ponto de vista russo, que provavelmente não o faria. Esperava sim, e até o disse publicamente, que continuassem ações de intimidação, de provocação e de ocupação de alguns territórios, como aconteceu na sequência da anexação da Crimeia. Esperava uma fricção, uma guerra de baixa intensidade, mas não uma invasão convencional, embora ele a chamasse “Operação Militar Especial”, tentando inclusivamente tomar Kiev.E a realidade é que ao contrário do que alguns analistas dizem, a Rússia está a perder muito com esta guerra e tornou-se, hoje, um Estado cada vez mais dependente da China.Um exemplo para que quero chamar a atenção: quase em simultâneo com a invasão da Ucrânia, os chineses começaram a juntar, nos seus mapas oficiais, aos nomes russos da Sibéria , por exemplo as cidades de Khabarovsk e Vladivostok , nomes chineses - e os russos não protestaram. Khabarovsk (onde aliás fui uma vez para uma cimeira Rússia-UE) aparece agora como Boli , e Vladivostok , que em russo quer dizer “dominar o Oriente”, como Haishenwai, “Penhasco dos pepinos do mar”… Quem conhece um pouco de História e entende como os chineses funcionam sabe que isto é uma mensagem poderosíssima. Os chineses estão a dizer que não se esquecem de que aquele território da Sibéria era do Império Chinês que, num momento de fraqueza da China, a Rússia czarista invadiu e ainda hoje ocupa.Não estou a sugerir que haja um conflito territorial aberto entre China e Rússia; taticamente, a China vê hoje a Rússia como um aliado. Mas estou absolutamente convicto de que a Rússia está cada vez mais dependente da China. E os chineses não se esquecem de que foram vítimas de tratados desiguais impostos por potências como a Inglaterra e Japão e que também foram humilhados pela Rússia.A China está economicamente - e, ao que parece, até tecnologicamente - a viabilizar, em certa medida, a posição russa atual. Repare: se compararmos em termos de poder a Rússia e a China nos últimos 30 ou 40 anos, percebemos que é uma das grandes transformações que o mundo conheceu.. Os pratos da balança mudaram completamente…Sim. Durante a Guerra Fria, quem desafiava o poder Ocidental, e em particular a preeminência norte-americana, era a União Soviética. Com o colapso da União Soviética, quem ganhou com isso, quem é hoje o outro grande poder? É a China. A União Soviética nunca foi um challenger económico dos Estados Unidos; era um poder militar fortíssimo, pelo menos assim era percebido, mas não um rival económico e tecnológico. A China é..A China hoje, em muitas áreas, está equiparada ou até à frente do poder Ocidental. A Rússia está condenada, aparentemente, a ficar como um parceiro júnior da China.. A China hoje, em muitas áreas, está equiparada ou até à frente do poder Ocidental. A Rússia está condenada, aparentemente, a ficar como um parceiro júnior da China. Além disso, se o objetivo da Rússia era, como Putin disse, evitar um alargamento da NATO que enfraquecesse a Rússia, conseguiu exatamente o contrário: nunca houve realmente um plano consensual para a Ucrânia entrar na NATO - eu estive na Cimeira de Bucareste, onde os Estados Unidos propuseram um road- map para tal , mas os europeus, sobretudo a França e a Alemanha, disseram que não, porque não consideravam sensato integrar a Ucrânia na NATO.Mas, entretanto, a Rússia fez com que a Suécia e a Finlândia , países muito importantes, se tornassem membros da NATO - e a Finlândia com uma fronteira muito extensa com a Rússia. Na realidade, Putin enfraqueceu o seu próprio país e fortaleceu a NATO, que hoje está mais perto da Rússia, e mais forte com aqueles países e com maior prontidão e capacidades operacionais junto a sua fronteira..Não concordo, pois, com aqueles que dizem que foi uma jogada genial de Putin. Foi, a meu ver, algo gerado pelo ressentimento, que é profundo e sincero nele. Sobre esse aspeto histórico falei muitas vezes com Putin. Ele sente uma humilhação da Rússia e alimenta um ressentimento antiocidental. O ressentimento é uma emoção compreensível, mas não pode ser uma política..Não concordo, pois, com aqueles que dizem que foi uma jogada genial de Putin. Foi, a meu ver, algo gerado pelo ressentimento, que é profundo e sincero nele. Sobre esse aspeto histórico falei muitas vezes com Putin. Ele sente uma humilhação da Rússia e alimenta um ressentimento antiocidental. O ressentimento é uma emoção compreensível, mas não pode ser uma política.Mas Putin não parece muito disposto a recuar. No dia em que gravamos esta entrevista há notícias de um novo ataque a Kiev e, neste fim de semana, Zelensky irá aos Estados Unidos para tentar avançar com um acordo de paz. O que é que acha que pode resultar de um acordo de paz, em termos de cedências realistas?Em primeiro lugar, acho que, nesta matéria, mais do que tentarmos prever, é importante prepararmo-nos. A verdade é que não temos bola de cristal e podemos falhar as previsões. Mas, do ponto de vista político, o que interessa é estar preparado para todas as hipóteses.Não sou especialista militar, nem pretendo ser. Mas, baseio-me naquilo que dizem os melhores, incluindo os principais chefes militares europeus , e eles dizem que a Rússia pode estar a preparar uma ação contra outros países da NATO e da União Europeia. Ora, mesmo que o risco fosse considerado pequeno - nem que se trate de um grau de probabilidade de cinco ou 10% - não podemos ignorá-lo. O princípio da prudência impõe-se.Porquê? Porque a Rússia de Putin estabeleceu-se agora como uma economia de guerra. É praticamente a única coisa que pode fazer. A China é capaz de exportar praticamente tudo, compete em quase todas as áreas económicas, muitas vezes com vantagem sobre o Ocidente. A Rússia não. O modo de vida deles hoje é a guerra.É por isso que sou muito cético quanto à hipótese de haver uma verdadeira paz. Aliás, não creio que vá haver um acordo de paz sólido. O melhor a que podemos aspirar é um cessar-fogo, uma trégua ou separação de forças, evitando a continuação da morte de tanta gente - incluindo jovens russos, não apenas ucranianos, que estão a morrer vítimas desta política, a meu ver completamente errada, de Putin. Seria bom termos um cessar-fogo mas uma verdadeira e consolidada paz parece-me muito mais difícil..Não vejo, no futuro previsível, com ou sem Putin - porque, às vezes, se pergunta “e depois de Putin?” e pode até ser pior -, uma hipótese de acordo de paz estabilizado, com garantias suficientemente fortes e com um arranjo holístico para a segurança europeia..Mas nunca com cedência de territórios por parte da Ucrânia?Temos evitado falar disso porque compete à Ucrânia definir aquilo que está disposta a conceder num quadro de acordo credível. A meu ver, realisticamente, terá de haver algumas concessões, com certeza, mas não nos compete dizer o que a Ucrânia deve fazer.Mas repito: não vejo, no futuro previsível, com ou sem Putin - porque, às vezes, se pergunta “e depois de Putin?” e pode até ser pior -, uma hipótese de acordo de paz estabilizado, com garantias suficientemente fortes e com um arranjo holístico para a segurança europeia. Não estou a ver isso.É a razão pela qual, aqui na Europa e na NATO, temos de continuar a estar preparados para todas as hipóteses, incluindo as piores, embora desejando que não se concretizem.Mas, como sempre se disse: “Si vis pacem, para bellum.” A melhor maneira de termos paz é estarmos preparados para a guerra, para desencorajar o potencial agressor.Perante tudo aquilo que já nos disse, recordo a frase que deixou numa entrevista recente ao El Mundo: disse que a União Europeia precisa de líderes audazes, com senso de urgência. Sente que os líderes europeus não têm o perfil necessário para fazer face a estas ameaças?Eu referi-me à audácia e ao sentido de urgência mais precisamente em relação à questão da ajuda financeira e militar à Ucrânia, porque noutros domínios o que é preciso é sentido de longo prazo e até “paciência estratégica”. Sendo verdade que os nossos sistemas democráticos não facilitam essas decisões. Porquê? Porque são decisões com custos políticos imediatos e, naturalmente, os líderes em regimes democráticos tendem a privilegiar as decisões com impacto positivo do ponto de vista eleitoral.Estou preocupado com isso. Não é porque os líderes de hoje sejam, por definição, piores do que os de antigamente. Há um certo efeito de ilusão de ótica: tendemos muitas vezes a idealizar o passado.Eu lembro-me de que era muito jovem ministro dos Negócios Estrangeiros e, na altura, os ministros dos Negócios Estrangeiros faziam parte do Conselho Europeu. Tive a honra, logo nos anos 90 - em 1992, por exemplo -, de estar no Conselho Europeu, éramos apenas 12 países, com Helmut Kohl, Mitterrand, Felipe González, Jacques Delors… Posso dizer que, na altura, não era nada fácil; havia problemas de funcionamento muito grandes dentro da União Europeia. Agora, tendemos a idealizar esse passado.Não penso que, por definição, os líderes do passado fossem melhores do que os atuais. Mas as condições de exercício do poder democrático hoje são muito mais difíceis e exigentes, em parte por causa dos sistemas de comunicação.. Sistemas de comunicação?Sim. Naquele tempo, preocupávamo-nos com o telejornal das 20.00 horas. Hoje, é 24 horas por dia, 7 dias por semana.Naquele tempo, primeiros-ministros e presidentes tinham tempo para si próprios; muitos escreviam os seus discursos. Hoje, isso é praticamente impossível. A urgência da decisão e a sobrecarga no sistema decisório são muitíssimo maiores. Mudou muito o sistema de comunicação, a nível global e nacional..Em princípio, o nível de Educação médio é hoje mais elevado do que anteriormente. Mas o discurso político é muito mais pobre, radical e polarizado. A massificação do discurso político não contribuiu para o elevar; pelo contrário, há uma política cada vez mais vulgar e polarizada e até um discurso de ódio.. E isto tem um efeito paradoxal: em princípio, o nível de Educação médio é hoje mais elevado do que anteriormente. Mas o discurso político é muito mais pobre, radical e polarizado. A massificação do discurso político não contribuiu para o elevar; pelo contrário, há uma política cada vez mais vulgar e polarizada e até um discurso de ódio.Hoje é mais difícil a função política do que era nos anos 80 ou 90 nas nossas democracias.. E, por falar nisso, olhando agora para o outro lado do Atlântico: acha que Donald Trump é o tipo de líder audaz de que a Europa precisava para o momento em que vive? Ou isso seria um risco para os nossos valores europeus?Donald Trump é o grande disruptor. Estou convencido de que, quando se fizer a história deste período, se vai falar, em termos das democracias Ocidentais, num período pré e num período pós-Trump. Ele mudou a gramática da política, mudou a gramática da comunicação política, indo contra os media mainstream e procurando um contacto direto e permanente com as massas.Mudou também os códigos da diplomacia, por exemplo, na forma como se refere aos seus próprios aliados. Mudou não só a comunicação política, mas a própria democracia. A gramática da aceitabilidade mudou: coisas que anteriormente não podiam ser ditas no espaço público - podiam ser pensadas, mas não ditas -, hoje entraram no espaço público, em grande parte por causa do estilo, que não é apenas estilo, de Donald Trump.Foi possível este fenómeno nos Estados Unidos, que tem raízes anteriores a Trump, mas que ele levou à expressão máxima. Pode-se gostar ou não gostar dele, mas a verdade é que se tornou o ator dominante a nível global, não apenas nos EUA ou na Europa, mas no mundo. .Até pelas minhas funções, tenho estado um pouco por todo o lado, e é interessante ver que muitas conversas começam e acabam com Donald Trump - na China, na Indonésia, no Japão, no Brasil, no Golfo, em África. O tema dominante é Trump, porque está a mudar radicalmente a política.. Até pelas minhas funções, tenho estado um pouco por todo o lado, e é interessante ver que muitas conversas começam e acabam com Donald Trump - na China, na Indonésia, no Japão, no Brasil, no Golfo, em África. O tema dominante é Trump, porque está a mudar radicalmente a política.. Ou seja, considera que Donald Trump - mais concretamente os Estados Unidos sob Trump - podem continuar a ser considerados o farol das democracias? Os EUA celebram 250 anos no próximo ano…Para mim, os Estados Unidos, país que conheço relativamente bem - passei lá quatro anos, nas universidades de Georgetown, em Washington, e Princeton -, continuam a ser uma democracia. Não concordo com quem diz que deixaram de o ser. Há, de facto, um debate sobre isso, mas , apesar de tudo , existe um Estado de Direito a funcionar. Não podemos, quando não gostamos das decisões que um governo ou presidente toma, concluir automaticamente que isso é o fim da democracia..Os EUA abdicaram, com esta Administração, do papel que tinham como líderes de um movimento democrático global. É um desenvolvimento muito significativo.. Agora, não há dúvida de que o discurso da atual Administração Americana não é um discurso baseado em valores, mas em interesses. É já um lugar-comum dizer que se trata de uma visão transacional da política - e é verdade. Trump, na ligação com a Europa e com a NATO, não fala nos valores da democracia ou da liberdade; fala nos seus próprios interesses.Os Estados Unidos tomaram decisões de cancelar algumas campanhas e instrumentos que tinham para a promoção de valores democráticos no mundo: emissões de rádio internacionais, apoio a organizações não-governamentais para a democracia no chamado Sul global… Tudo isso está hoje suspenso ou encerrado. Os EUA abdicaram, com esta Administração, do papel que tinham como líderes de um movimento democrático global. É um desenvolvimento muito significativo.. Toda essa retórica ligada a valores democráticos, e também às questões da imigração, é adotada por vários dirigentes políticos europeus. Acha que isso também está a desgastar a base de confiança dos europeus nos Estados Unidos e na relação transatlântica histórica?Temos de reconhecer que estamos a passar um dos momentos mais difíceis da relação transatlântica desde que ela foi criada, nomeadamente com a fundação da NATO. Embora não seja a primeira grande crise - já houve a Crise do Suez, em 1956, que, a meu ver, foi um ponto histórico muito relevante e decisivo quando os EUA deixaram claro às principais potências europeias da época, França e Reino Unido, que não tinham o seu apoio e que elas teriam de abandonar a sua política colonial.Isso foi em 1956 e foi um choque que contribuiu para a criação da Comunidade Europeia: a França percebeu que não podia, sozinha, fazer face aos EUA e precisava de um espaço mais largo para afirmar a sua soberania. Mas, dito isto, o momento atual é também muito difícil.Se quisermos ser objetivos e usar alguma medida na análise, diria que a Cimeira da NATO em junho deste ano resolveu alguns aspetos. O que me dizem líderes da NATO, civis e militares, é que a NATO está a funcionar perfeitamente; a cooperação operacional entre militares norte-americanos e europeus é ótima, ou perto disso. É a razão pela qual não sou tão negativo como às vezes se é relativamente à relação transatlântica. Mas é óbvio que há problemas de confiança que deixam algumas marcas.. Com este reforço em curso do pilar europeu da NATO, como é que vê a NATO daqui a uma década? Acha que se vai manter fiel aos seus princípios fundadores de defesa coletiva, promoção de valores democráticos e resolução pacífica de conflitos, ou será muito diferente?Vamos ser honestos: a promoção de valores democráticos não foi sempre apanágio da NATO. Portugal foi membro fundador da NATO e não era uma democracia. A Grécia dos coronéis, a Turquia de certos períodos, fizeram e fazem parte da NATO. A NATO foi criada para conter a ameaça totalitária soviética, mas nem todos os seus membros foram sempre democracias. Há uma diferença na génese entre a NATO e a União Europeia: a UE sempre colocou como condição a adesão plena aos valores democráticos; a NATO não.Precisamente por isso, acho que o mais provável é manter-se o interesse de todos os membros na NATO, porque a ameaça russa continua - ainda que de outra forma - e porque os EUA dificilmente iriam contra os seus próprios interesses. Não há dúvida de que a NATO contribuiu imenso para a preeminência norte-americana. Sei que pode haver a tentação, em setores do movimento “Make America Great Again”, de um isolacionismo. Mas ,até agora, não vejo isolacionismo em Trump; vejo unilateralismo, que não é o mesmo.Seria difícil conceber que os Estados Unidos, que afirmam e projetam o seu poder através da NATO, pusessem em causa a própria Aliança. A meu ver, quando ameaçam, fazem-no mais em termos negociais. E, do lado europeu, também não vejo vontade de pôr em causa a NATO. Pelo contrário: vários países quiseram juntar-se à NATO - já falámos da Suécia e da Finlândia - e outros gostariam de o fazer..O mais provável é termos NATO no futuro, mas uma NATO baseada menos em valores e mais claramente em interesses. O que talvez seja mais transparente do que era no passado . Na realidade o fundamento principal da NATO é a proteção da soberania e da segurança dos seus membros.. Portanto, o mais provável é termos NATO no futuro, mas uma NATO baseada menos em valores e mais claramente em interesses. O que talvez seja mais transparente do que era no passado . Na realidade o fundamento principal da NATO é a proteção da soberania e da segurança dos seus membros.Isso é muito forte e não vejo os países abandonarem levianamente esse objetivo. O que não quer dizer que a Europa não possa e não deva desenvolver a sua própria identidade de Segurança e Defesa, o que eu defendo há muito tempo.A meu ver, isso não é contraditório com a NATO; pelo contrário. E, de certa forma, o presidente Trump contribuiu para essa identidade europeia de defesa quando lembrou aos europeus - de uma forma muito idiossincrática, temos de reconhecê-lo - aquilo que outros presidentes já tinham dito.Lembro-me de Clinton, Bush, Obama, em reuniões da NATO em que estive presente, desde os anos 80, a pedir aos europeus que aumentassem o seu esforço em Segurança e Defesa. Só com Trump isso aconteceu efetivamente. Essa é a verdade. Portanto, não vejo contradição entre uma defesa europeia mais assumida e o reforço da NATO.. Perante essa defesa mais assumida, tanto da Europa como, concretamente, de Portugal - com um dos maiores investimentos recentes em armamento e defesa -, que papel pode o nosso país ter neste processo geopolítico, enquanto país considerado estratégico, porque estamos precisamente no Atlântico, entre a Europa e os Estados Unidos?Isso, só por si, daria uma entrevista de fundo. Tenho estado a trabalhar nessas questões: há pouco tempo, a Comissão Europeia convidou-me para um grupo de alto nível de antigos líderes europeus que está a apoiar a reflexão sobre o futuro da defesa europeia. Entre outros, fazem parte desse grupo ex-primeiros-ministros como Carl Bildt (Suécia) ou Enrico Letta (Itália), e também Arseniy Yatse- nyuk (Ucrânia) e antigos presidentes das instituições europeias. Tenho, obviamente, procurado pensar como é que Portugal pode ter um papel neste domínio. Sinteticamente: Portugal, pela sua dimensão económica e demográfica, não é, nem pode ser, um grande poder em termos de hard power. Temos de ser realistas. Mas pode e deve ser mais relevante em termos de poder funcional e de contribuição estratégica para a defesa europeia e atlântica.Pode investir nas suas capacidades, e na sua vocação natural para ser um elemento-chave de um hub euro-atlântico de Defesa.Os Açores, por exemplo…Os Açores, evidentemente, fazem parte disso. Mas também outro ponto em que queria insistir: defesa e segurança não são apenas hardware. Sobretudo neste momento, em que as alianças são importantes, é fundamental a capacidade de articular interesses Ocidentais com interesses do chamado Sul Global.Não é por acaso que surgiu a expressão “Sul Global”. Há quem procure mobilizar o Sul Global contra o Norte Global, contra o que se chamava antes o Ocidente. Portugal pode ser uma articulação importante. Não haverá país melhor colocado para fazer isso do que Portugal, com o Brasil, com Angola, com Cabo Verde - países muito importantes do ponto de vista estratégico para o Atlântico. Cabo Verde, por exemplo, pode ter um papel muito mais relevante se os países Ocidentais quiserem reconhecê-lo e apoiá-lo.Portugal pode ter um papel de articulação nesta dimensão de segurança. Até agora isso é mais discurso do que realidade, mas há uma oportunidade com os fundos que vão ser investidos na Defesa, que não podem ser aplicados só em equipamento: têm de ser usados para potenciar capacidades industriais e tecnológicas da Europa e de Portugal.Por exemplo, uma área em que Portugal pode ser líder é a cibersegurança, porque isso não depende da dimensão do país. Há países pequenos, no Golfo, que se estão a tornar líderes nesta matéria. .Portugal não pode ser líder em poderio militar, mas, além das capacidades já demonstradas em termos de missões de paz e de ações no âmbito da UE e NATO, pode ser líder em cibersegurança, logística, informação e intelligence, e na articulação com países do Sul Global com quem temos ligações especiais.. Portugal não pode ser líder em poderio militar, mas, além das capacidades já demonstradas em termos de missões de paz e de ações no âmbito da UE e NATO, pode ser líder em cibersegurança, logística, informação e intelligence, e na articulação com países do Sul Global com quem temos ligações especiais.Não significa que esses países venham a fazer parte das nossas alianças formais, mas é necessário, em termos concretos, cooperar com eles e criar cumplicidades. Já temos, por exemplo, com o Brasil, cooperação na área de equipamento militar. Isso é um trunfo que Portugal pode levar à mesa europeia e da Aliança Atlântica - e, mesmo em termos de equipamentos, fornecendo capacidades. Vi que o primeiro-ministro, na sua visita recente à Ucrânia, tratou deste tema. Por exemplo, na área dos drones e de novos equipamentos já em desenvolvimento. Em Portugal há capacidades, incluindo startups, que podem desenvolver uma especificidade tecnológica portuguesa. O objetivo de 3,5% do PIB em despesas de Defesa nos países europeus representa muito dinheiro; há quem considere que é demais. A meu ver, o investimento na Defesa (veja-se o que se está a passar na Alemanha ) pode, deve e provavelmente será o maior catalisador do crescimento económico da Europa nos próximos anos.Aliás, quando hoje se fala em inovação tecnológica na Europa, onde é que ela está a acontecer? Na Ucrânia. A guerra não é uma boa notícia, mas é uma ocasião para inovação tecnológica.Esperemos que Portugal aproveite esta ocasião. Que estes fundos, incluindo os da União Europeia, como o programa SAFE, sejam bem utilizados e que as nossas opiniões públicas não vejam o investimento na Defesa apenas como um gasto, mas percebam o retorno em termos de capacidade industrial, tecnológica, de emprego e, de forma geral, upgrade das nossas capacidades nacionais.Vamos ter eleições presidenciais em janeiro próximo. Sabemos que é apoiante de Luís Marques Mendes - já o assumiu publicamente, é o candidato apoiado pelo seu partido. Que papel pode e deve ter um Presidente da República, como chefe Supremo das Forças Armadas, em todo este contexto geopolítico?Exatamente como comandante Supremo das Forças Armadas - e não só - o Presidente da República tem e pode ter um papel ainda mais importante nas questões estratégicas do país. É isso que se espera de um Presidente, respeitando, obviamente, as competências próprias do Governo, a quem compete conduzir a política externa e a política de defesa nacional. Mas o Presidente da República, como comandante Supremo das Forças Armadas, não pode estar fora da equação estratégica nacional, sobretudo numa situação como a atual, de guerra híbrida na Europa. Acho isso um dever essencial.. Marques Mendes é o líder para isso?Não gostaria de entrar muito na política interna , embora compreenda o vosso interesse. Mas não quero fugir à questão. Apoio o dr. Marques Mendes não apenas por ser do meu partido e por ter sido meu ministro - e foi um ministro competente e leal -, mas porque acho que tem as condições de patriotismo, experiência política, bom senso e sabedoria que o recomendam para uma função como Presidente da República..Apoio o dr. Marques Mendes não apenas por ser do meu partido e por ter sido meu ministro - e foi um ministro competente e leal -, mas porque acho que tem as condições de patriotismo, experiência política, bom senso e sabedoria que o recomendam para uma função como Presidente da República.. O atual Presidente da República prognosticou que o dr. Durão Barroso poderia vir a candidatar-se a Belém daqui a dez anos. Isso deixou-o a pensar?Esse prognóstico tem uma história. Há tempos, numa conferência da FLAD, nos Açores, o Presidente da República, de certa forma “desafiou-me” simpatica- mente , perguntando porque é que eu não seria candidato a Presidente. Eu, com a informalidade que tenho com ele - conhecemo-nos desde 1973, na Faculdade de Direito de Lisboa - respondi, ironicamente, que ainda era muito novo para ser candidato. E ele depois já evocou, pelo menos, duas vezes essa ideia publicamente. É nesse contexto que vejo essa observação. É só nesse contexto.Mas por que não avançou agora? Também se falou que poderia ser candidato agora nas próximas eleições…Já declarei publicamente que cheguei a uma altura da minha vida em que privilegio mais a liberdade do que o poder. Já fui primeiro-ministro, já fui presidente da Comissão Europeia, tive muitos anos de vida política. E, nesse aspeto, sou um crente absoluto no Eclesiastes, do Antigo Testamento: há um tempo para tudo na vida. E há outras pessoas que podem exercer esse cargo. E francamente não há ninguém insubstituível. A minha própria vida, neste momento, não está, nem tenciona estar, ligada a qualquer cargo político.Mas não descarta totalmente essa possibilidade?Não estou a contemplar de forma alguma qualquer cargo político no futuro previsível. Já não tenho a juventude que gostaria de ter: vou fazer 70 anos em março, se Deus quiser.Mas hoje em dia a questão da idade não se coloca tanto para um Presidente da República. Acha que os portugueses já fizeram as pazes consigo? Já passaram muitos anos desde que deixou o Governo para ir para Bruxelas.Estou perfeitamente consciente de que a minha decisão de ir para a Comissão Europeia - que voltaria a tomar hoje se a situação se colocasse - não foi compreendida por alguns dos meus compatriotas. Foi compreendida por outros e até muito saudada. Por exemplo, sempre me sensibilizou imenso o modo como os nossos emigrantes, por essa Europa fora, reagiram à ideia de terem um compatriota a presidir à União Europeia. Mas compreendo e aceito perfeitamente quem tenha outra opinião.Nos últimos cinco anos presidiu à Gavi, a Aliança Global para as Vacinas. Que lições é que este tipo de organização nos dá em termos de resposta coletiva às ameaças do mundo multipolar de hoje? Que experiência é que nos pode transmitir?Tive dois mandatos na Gavi, num total de cinco anos. Assumi essa posição ainda durante a Covid. Foram anos muito exigentes, porque conseguimos a distribuição de vacinas praticamente gratuitas a 2 mil milhões de pessoas no chamado Sul Global. Além das vacinas da Covid, mantivemos os programas de rotina de vacinação de crianças nos países menos desenvolvidos. Acho que é uma contribuição muito importante..A verdade é que hoje a ordem multilateral está em crise. A Gavi demonstra que, apesar de tudo, é possível, com um modelo de parceria público-privada focado num objetivo preciso - vacinar as crianças dos países mais pobres-, construir uma cooperação internacional relevante .. Num artigo que escrevi recentemente, procurei tirar algumas lições para o multilateralismo. A verdade é que hoje a ordem multilateral está em crise. A Gavi demonstra que, apesar de tudo, é possível, com um modelo de parceria público-privada focado num objetivo preciso - vacinar as crianças dos países mais pobres-, construir uma cooperação internacional relevante .Penso que, quando se trata de bens públicos globais, seria um erro que os poderes deste mundo levassem as suas divergências ideológicas e geopolíticas para esse domínio. Não há nada mais importante do que salvar a vida de crianças.Acho que há lições para o sistema multilateral. No futuro previsível, não vejo possibilidade de decisões efetivas com caráter universal . Há uma crise no sistema das Nações Unidas: desde a OMS à Organização Mundial do Comércio, passando pelo próprio Conselho de Segurança, que está paralisado. Mas talvez seja possível, através de objetivos claros e missões bem definidas, mobilizar recursos e cooperação para enfrentar desafios sérios como os do desenvolvimento sustentável .. Estamos quase a terminar esta nossa conversa, mas, para assinalar os 161 anos do Diário de Notícias, pedimos-lhe que escolhesse uma memória. Escolheu um artigo de Vasco Graça Moura, escrito em março de 2002, três dias depois das eleições que venceu, intitulado “A vitória do cherne”. Porque escolheu este texto? Foi uma espécie de “a vingança serve-se fria”?Sinceramente, não teve nada a ver com vingança. Foi exatamente o contrário: teve a ver com o facto de Vasco Graça Moura, um dos grandes nomes da nossa cultura - e hoje, infelizmente, não há muita gente como ele na política -, ter escrito um texto magnífico. Ele era eurodeputado independente pelo PSD e escreveu esse texto num estilo polémico, que lhe era próprio, mas que é também um texto de homenagem à minha mulher, que entretanto morreu, a Margarida (Sousa Uva).É no sentido de recordar a memória dela que evoco esse texto. Quando ela, durante a campanha, recitou o poema de Alexandre O’Neill - “Sigamos o cherne” -, houve muita gente no mundo político e jornalístico que a atacou de forma miserável, procurando humilhá-la para me atingir a mim. E Vasco Graça Moura, com uma prosa magnífica, desmascarou isso. Para mim, esse texto honra o Diário de Notícias.. Portanto, foi mais uma homenagem à minha primeira mulher, que morreu em 2016, do que qualquer outra razão . Não tenho ressentimentos, nem espírito de vingança. Talvez mais novo tivesse esse espírito combativo; hoje não o tenho em relação a ninguém. Mas não me posso esquecer de como atacaram injustamente a Margarida e como não compreenderam uma mensagem que, para mim, era muito bonita..Tenho memórias do Diário de Notícias ainda de antes do 25 de Abril. O meu pai lia o jornal todas as manhãs. O ardina passava e atirava o Diário de Notícias enrolado para a varanda do nosso primeiro andar. Eu corria para ver se conseguia apanhar o jornal antes do meu pai. Ele gostava muito de ler o Diário de Notícias e eu também. Foi um dos jornais com que aprendi a ler.. E tem mais memórias do Diário de Notícias, nestes 161 anos?Tenho memórias do Diário de Notícias ainda de antes do 25 de Abril. O meu pai lia o jornal todas as manhãs. O ardina passava e atirava o Diário de Notícias enrolado para a varanda do nosso primeiro andar. Eu corria para ver se conseguia apanhar o jornal antes do meu pai. Ele gostava muito de ler o Diário de Notícias e eu também. Foi um dos jornais com que aprendi a ler.Estamos a falar de um tempo bem antes de 1974. Não posso dizer que fosse um modelo de informação pluralista e livre, mas era bem escrito num bom português. E havia reportagens e conteúdos independentes do política do regime. Por isso, desde a minha infância, tenho memórias muito vivas do vosso jornal. Mais uma vez, desejo-vos muitas felicidades, porque o DN é uma grande instituição da nossa comunicação social e fico satisfeito por ver que, apesar das dificuldades por que passou, continua a afirmar-se no panorama da nossa vida pública.. Já que estamos a falar do DN, do jornalismo e da informação plural: no último Fórum Económico Mundial, a desinformação foi considerada a maior ameaça às democracias e o maior risco global a curto prazo. A quem é que acha que mais interessa a desinformação?A desinformação não é apenas uma ameaça à democracia; é uma ameaça à coesão social e à segurança nacional. Interessa a quem quer desestabilizar países vistos como adversários. Neste caso concreto, há campanhas de desinformação dirigidas contra as democracias europeias e contra a própria União Europeia, que vêm sobretudo da Rússia, mas não só. Querem semear a discórdia, excitar populismos e nacionalismos, enfraquecer a Europa no seu conjunto..O centro moderado não pode ser um centro fraco; deve ser afirmativo e ir para a luta mediática. Não é suprimindo a liberdade de expressão que se ganha essa luta, é sendo mais fortes também no combate político e comunicacional.. É, portanto, uma ameaça política contra a democracia, uma ameaça geopolítica contra a segurança nacional e uma ameaça social e cultural, no sentido de polarizar e dividir as sociedades. É um desafio difícil, porque temos de o combater sem pôr em causa a liberdade de informação e de expressão, valor chave nos nossos regimes pluralistas. O equilíbrio é difícil, mas penso que é possível.. É preciso haver um maior esforço de literacia mediática e que as forças verdadeiramente democráticas demonstrem coragem e convicção. O centro moderado não pode ser um centro fraco; deve ser afirmativo e ir para a luta mediática. Não é suprimindo a liberdade de expressão que se ganha essa luta, é sendo mais fortes também no combate político e comunicacional.. E os jornais de referência podem ser considerados instrumentos cruciais para reforçar essa resiliência face à polarização e às fake news?Acho que sim, razão pela qual devemos valorizar a imprensa e os órgãos de comunicação social de referência. Mas, ao mesmo tempo, não podemos abandonar o espaço das redes sociais. Não podemos deixar que sejam apenas “os maus da fita”, se me permitem a expressão, a ocupar esse espaço. Se não , perdemos a juventude.É preciso encontrar equilíbrio: os jornais de referência devem ser isso mesmo, uma referência; mas, no espaço público, as forças moderadas e liberais - no sentido da liberdade política - têm de travar esse combate, apoiando-se numa análise tão objetiva quanto possível da realidade. Aí, os jornais de referência têm um papel importante, porque podem ajudar a sociedade, não sendo instrumentalizados - isso seria contraditório com os valores democráticos e pluralistas -, mas ajudando na luta contra a desinformação, estabelecendo tanto quanto possível a verdade objetiva..Quem começou a dizer que não havia verdade objetiva, que tudo era construção, foi uma certa esquerda intelectual, há muitos anos, nomeadamente em França. Diziam alguns filósofos que todas as categorias são relativas, que os próprios géneros biológicos são meras construções, que tudo é construção mediática ou linguística. Não haveria “verdade”. Curiosamente, hoje quem domina esse espaço é a extrema-direita, que “cria a sua própria realidade”.. Este é aliás um tema filosófico interessante: quem começou a dizer que não havia verdade objetiva, que tudo era construção, foi uma certa esquerda intelectual, há muitos anos, nomeadamente em França. Diziam alguns filósofos que todas as categorias são relativas, que os próprios géneros biológicos são meras construções, que tudo é construção mediática ou linguística. Não haveria “verdade”. Curiosamente, hoje quem domina esse espaço é a extrema-direita, que “cria a sua própria realidade”.Embora reconhecendo, no plano da análise, que há uma dimensão de construção social e que a linguagem tem um papel próprio, penso que não podemos prescindir da ideia de objetividade, e da noção de que há factos e que podemos distinguir factos de opiniões. Se assim não for , caímos no mais absoluto relativismo e mesmo cinismo. Continuo a pensar que a verdade é possível - pode parecer fora de moda, mas tentar lutar por objetividade e racionalidade continua a justificar-se. Devemos estar unidos na luta contra a mentira e contra as campanhas de desinformação.De todos os líderes mundiais que conheceu qual o que mais admira?Nelson Mandela , verdadeiro líder carismático , pela mensagem de paz e reconciliação . Tive a honra de me reunir com ele pela primeira vez em Windhoek , a margem das cerimónias de independência da Namíbia , em Março de 1990, poucas semanas após a sua libertação da prisão e fiquei muito impressionado com ele.