Duplo homicídio no Centro Ismaili. Como o tribunal quebrou o MP que era contra condenar Abdul Bashir à cadeia

A condenação à pena máxima, 25 anos, do regime penal português do homem que confessou ter esfaqueado até à morte, em 2023, duas mulheres no Centro Ismaili, em Lisboa, contrariou a tese do Ministério Público (MP) que defendia a inimputabilidade de Abdul Bashir, refugiado afegão, propondo o seu internamento por três anos. O MP sustentou a sua proposta com base em avaliações psiquiátricas, segundo as quais Bashir sofria de esquizofrenia no momento em que assassinou Farana e Mariana, mas o tribunal procurou uma segunda opinião junto de peritos psicólogos forenses. E foi esta que acabou por vingar. A defesa anunciou que vai recorrer, psiquiatras protestaram e o processo de decisão fez história na Justiça.Na sentença, a que o DN teve acesso, o tribunal explica por que concluiu que o MP estava errado, descrevendo todos os momentos da relação de Abdul Bashir com as vítimas - além das duas mulheres que o ajudavam a reconstruir a sua vida desde que chegara a Portugal, em 2021 (ver cronologia), também um professor do Centro Ismaili que lhe dava aulas de Português - até ao dia da tragédia.Vale a pena transcrever ipsis verbis a reconstituição feita no acórdão sobre esse momento que culminou com o esfaqueamento de Mariana Jadaugy, 24 anos, e Farana Sadrudin, 49. “O arguido dirigiu-se a Farana, de repente e de surpresa, e com a faca empunhada na mão direita, desferiu-lhe golpes no pescoço, originando uma grande perda de sangue, que a fizeram cair inconsciente. (…) Mariana foi na sua direção para auxiliar. Nesse momento, o arguido investiu contra ela e desferiu-lhe vários golpes com a faca na zona do pescoço, até esta ficar sentada no chão em grande dificuldade, com as mãos no pescoço a tentar estancar o sangue que jorrava. (…) por se ter apercebido de que a vítima ainda estava viva, dirigiu-se novamente junto desta e voltou a esfaqueá-la enquanto ela gritava. (…) a vítima já estava junto à porta do gabinete de Farana, quando o arguido a agarrou, pela terceira vez, e com maior força ainda, desferiu-lhe facadas em várias partes do corpo, incluindo na cabeça, para a matar de vez, tendo esta ficado inanimada no chão, coberta de sangue. (…) Entre o início do esfaqueamento e a hora do óbito, mediaram aproximadamente 30 minutos, em que Mariana sofreu dores e angústia por perceber que ia morrer sem conseguir ser salva por ninguém.”A “frieza de um psicopata”Por que o tribunal considerou como “não-provados” os factos relativos ao “estado de inimputabilidade” de Bashir à data da prática do factos?Refere o acórdão que “foram realizadas diversas perícias médico-legais, quer de psicologia, quer de psiquiatria forense (…) que divergem no essencial”. Na verdade, “só após a realização de vários exames, se conclui que o arguido padece de esquizofrenia e de perturbação de personalidade mista (perturbação narcisista e de personalidade antissocial)”, sendo que a questão aqui dirimida era a de saber “se, no momento da prática dos factos, o arguido estava afetado por ambas e, consequentemente, incapaz de se determinar segundo a sua vontade”.Para o tribunal “apenas uma das posições se mostra devidamente sustentada na demais prova produzida, sendo a mais coerente, mais consistente e mais próxima daquela que foi a realidade dos factos, trazida pelas testemunhas e pelos documentos juntos”. Não ficou, assim, “qualquer dúvida de que o arguido, no momento da prática dos factos, não estava condicionado por nenhuma doença mental grave que lhe retirasse a autodeterminação e consciência da ilicitude dos seus atos”.As três magistradas que assinam o acórdão consideraram que “a posição sustentada pelo médico psiquiatra na última perícia realizada mostra-se frágil e foi contraditada pela demais prova”, sendo que este “mostrou, também ele, fragilidades e desconhecimento dos factos”. Eis como os seus argumentos foram quebrados, ao elencar algumas diferenças entre um psicopata e um esquizofrénico, invocadas pelo psiquiatra. “Um psicopata não ia matar pessoas assim, sem lógica nenhuma, indiscriminadamente”. Refuta o tribunal: “Não foi o caso. O arguido não matou indiscriminadamente. Dirigiu-se concretamente às duas pessoas que o vinham a afrontar ao longo dos meses e que considerava responsáveis pela sua condição de vida pouco favorável.”Defende o psiquiatra que “a ação do arguido foi desorganizada, que tinha de eliminar as ameaças e que podiam ter sido 15 em vez de três. Tudo sem lógica nenhuma, tudo com base em ideias delirantes”. Discorda o tribunal, porque “o psicopata faz para não ser apanhado, faz de modo organizado. (…) O arguido também organizou os seus atos. Apesar de transportar uma faca consigo desde janeiro, apenas na véspera da viagem para o estrangeiro, decidiu eliminar as suas ameaças. E caso Mariana tivesse, desde logo, sucumbido, sem gritar, o arguido teria saído do Centro Ismaili sem ser surpreendido por ninguém.”Quanto à alegação de que Bashir “frisava bastante a questão da telepatia com a família Aga Khan e as invejas que isso criava”, as juízas contrapõem que “nada disso consta dos e-mails, ao contrário” do que aquele perito supunha. Estes “mostram, até à data dos factos, um indivíduo altivo, prepotente convicto de que, a si, tudo lhe era devido e que as vítimas tinham obrigação de tratar de todos os seus problemas com urgência. O arguido não aceitava bem quando tal não sucedia, quando o contrariavam, ou quando exigiam que tomasse determinada atitude ou comportamento. E essa frustração é bem patente nos e-mails que ia mandando à princesa Aga Khan dando nota de que Mariana e Farana não lhe resolviam os problemas. (…) Logo, não foi sem lógica ou sem qualquer racionalidade, que o arguido saiu da sala e se dirigiu ao gabinete onde se encontravam as duas vítimas. Caso contrário, se apenas quisesse eliminar ameaças, indiscriminadamente, já todos fariam parte do plano conspirativo contra si, começando, desde logo pela sala de aula.”Para reforçar esta tese é recordado ainda que, quando Bashir ia atacar o professor, que lhe gritou quando o viu de facas já ensanguentada na mão, e se cruzou com outro refugiado, não o atacou, dizendo antes para se afastar ou “se mataria”. “Se não havia qualquer racional na atuação do arguido e se este apenas queria libertar-se das ameaças, agindo sem qualquer lógica, então porque não atacou também” este homem, questionam as magistradas.43 facadas no corpo de MarianaDe igual modo, continuam no acórdão, “o concreto número de facadas desferidas na vítima Mariana, em momentos diversos, espelha um sentimento de raiva e não de defesa”. Primeiro, “desferiu vários golpes na zona do pescoço de Mariana, que ficou sentada no chão, e saiu da sala. Porém, ao ver que Soraia J. a tinha ido ajudar, volta à sala e, pela segunda vez, esfaqueia Mariana. Como esta ainda continuava viva, agarrou-a e desferiu-lhe novos golpes em várias partes do corpo, inclusivamente na cabeça. Num total de 43 golpes. (…) Quem tem apenas por móbil a sua defesa e fazer cessar uma ameaça (ainda que delirante) desfere 43 golpes? Não conseguimos entender como assim se pode concluir. Tanto mais, quando a vítima a quem foi dirigida tamanha violência era a que mais contacto tinha com o arguido e quem mais repreendia e solicitava que adequasse o seu comportamento às normas sociais e da instituição. Pelo que, não foi ao acaso que foi a mais atingida e com mais violência”.Em suma, é concluído, “a dinâmica dos factos resulta de uma ação lógica e apreensível a terceiros. A conduta do arguido não se mostrou aleatória, sem qualquer racional ou incompreensível. Teve fundamento para escolher umas vítimas em detrimento de outras, assente em factos passados com cada uma”. Numa perícia realizada em junho de 2023, quatro meses depois do assassinato, Abdul Bashir disse: “Estas duas mulheres vieram abusar de mim, da minha confiança (…) sempre me consigo controlar, mas se a minha vida não é importante, a delas também não é. Controlei-me dois anos, ninguém consegue ser paciente por este tempo tão longo.”O tribunal assinala que em nenhuma das avaliações à saúde mental do arguido, envolvendo também psiquiatria, quer antes, quer após os homicídios, foi detetada a esquizofrenia. Aliás, a 31 de outubro de 2023, observado por psiquiatra do Estabelecimento Prisional junto à PJ, o doente estava “calmo, comunicativo, sem sintomas, sem medicação”, situação que se “manteve até 26.2.2024”, o que “espelha o desconhecimento” demonstrado pelo psiquiatra em tribunal e “a necessidade de justificar comportamentos do arguido que contradizem o diagnóstico que pretendia defender.”Perante esta análise feita pelo psicólogo forense, o coletivo optou por considerar que Abdul Bashir é imputável e, por isso, terá de cumprir pena numa prisão, por oposição ao regime de internamento, caso fosse considerado inimputável.Finalmente, para a sua decisão, o tribunal teve ainda em conta o comportamento de Abdul Bashir ao longo de todas as sessões de julgamento: “manteve sempre uma postura atenta, interventiva, mas tranquila, querendo esclarecer e corrigir depoimentos prestados. Até no que reporta às concretas partes do corpo das vítimas que esfaqueou. Nunca transpareceu angústia ou medo. Nunca se emocionou. Pelo contrário, manteve sempre a frieza e a altivez no contacto visual, que foi constante durante o seu discurso”.Farana e Mariana perderam a vida, mas outras vidas ficaram para sempre marcadas. Os pais de Mariana, “a menina e a princesa da família”, ficaram “deprimidos, angustiados e traumatizados com a morte prematura e violenta da filha”. A mãe, “face ao quadro de depressão grave que desenvolveu, encontra-se de baixa médica desde maio de 2023”. O pai “passou a ser uma pessoa revoltada e introspetiva”. Os pais de Farana, na altura com 82 e 77 anos, sofrem. O professor, que sobreviveu às facadas, “passou a viver com pavor e medo (…) passou a sofrer de perturbações de sono (…) vive num estado depressivo (…) ficou sem qualquer atividade laboral até fevereiro de 2024”.O responsável foi Abdul Bashir, que Portugal acolheu e ajudou com os seus três filhos menores, sem que as autoridades gregas tenham informado que estava a ser investigado por suspeita de homicídio da sua mulher (ver cronologia em baixo) no campo de refugiados na Grécia. Confirmando o que o DN já tinha noticiado, o tribunal corrobora que aquele país emitiu um mandado de detenção em janeiro de 2022, mas com um apelido ligeiramente diferente (Khil em vez de Kheili) . Só depois do duplo homicídio foi emitido um mandado de detenção europeu com os dados pessoais corrigidos.Cronologia - Do Afeganistão à cadeia2016Novembro Abdul sai Afeganistão com mulher e 1 filho nascido em 2014 para a Turquia, onde vivem dois anos e nascem outros dois filhos, em 2016 e 2019.2019Julho - Chegam à Grécia indocumentados, à ilha Lesbos. Pedem proteção internacional e no dia a seguir são alojados no centro acolhimento.5 dezembro - Incêndio no contentor onde viviam mata a mulher17 dezembro - Transferidos para o continente grego.202019 outubro - Entrevista para concessão asilo. Pede retificação de apelido khil para kheili e nascido em 1994 em vez de 1990.5 novembro - Concedido asilo2021(data desconhecida) - MP grego abreinquérito-crime contra Abdul, por suspeita de homicídio da mulher.19 outubro - Abdul e os 3 filhos chegam a Portugal ao abrigo do programa de recolocação refugiados. É-lhes concedida proteção internacional. No processo não constava nenhuma suspeita de crime.Novembro - Começa a enviar mensagens a Farana, responsável pelo seu processo no Centro Ismaili.20225 janeiro - Tribunal grego emite mandado de detenção nacional em nome de Khil, nome anterior à retificação, nascido em 1990.24 janeiro- Abdul informa que está descontente com as suas condições de vida e que já não deseja o processo de reagrupamento familiar, nem colocar os filhos na escola.16 fevereiro- Viajam para a Alemanha.22 fevereiro- Requer asilo na Alemanha, que lhe é recusado por já o ter em Portugal.28 março- Envia SMS a Farana a assediá-la.19 abril- Regressa a Portugal.20 abril - Mariana passa a acompanhar o agregado familiar.7 maio Farana responde a Abdul dizendo para parar de enviar aquele tipo de mensagem.9 maio Abdul questiona Mariana sobre as aulas de Português e diz: “Tu gozas comigo, tem cuidado!”Neste mês de maio é rastreado três vezes no âmbito da saúde mental pela Cruz Vermelha e nenhuma patologia deste foro Ihe é detetada.2 setembro Volta a mandar SMS a Farana e a insistir numa relação. Farana refuta e reporta superiormente.Outubro Manda SMS a Mariana tentando aproximação romântica. Mariana sublinha que a sua relação é apenas profissional.22 dezembro Deste dia a 28.3.2023 envia várias mensagens à princesa Aga Khan queixando-se pela forma como é tratado.2023Janeiro Abdul passa a andar com faca de cozinha, com uma lâmina de 13,9cm por 4cm.6 março Mariana envia e-mail a Abdul, com Farana e o presidente da comunidade em cc a chamar a atenção para as recorrentes rejeições de emprego.8 março Mariana faz relatório sobre situação de Abdul e a sua postura de resistência à integração.15 março Emitido o alerta Schengen, com base no mandado de detenção grego.21 março Abdul envia e-mail ao presidente da comunidade a dizer que, dada a solidão que sente com os seus filhos, quer regressar ao Paquistão, onde tinha família, e pede apoio para a deportação.27 março Farana e Mariana conversam com Abdul sobre ter faltado a visita ao Zoo com os filhos, criticando a sua atitude.28 março Abdul mata Farana e Mariana.29 março Autoridades gregas emitem mandado de detenção europeu com ambos os apelidos e datas de nascimento de Abdul, na versão corrigida e na anterior.