Conselho de Ética quer lei sobre objeção de consciência
“O conhecimento prévio e rigoroso da realidade em relação ao número de objetores é fundamental”, diz Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), no seu primeiro parecer sobre objeção de consciência (OC). No qual defende que a comunicação prévia e “geral” da objeção na instituição de saúde na qual o profissional presta serviço deve ser condição para o exercício da mesma, propondo igualmente a obrigatoriedade da comunicação às ordens (o que já sucede no caso dos enfermeiros e dos farmacêuticos, mas não no dos médicos).
Neste documento aprovado por maioria, o CNECV (órgão consultivo independente do Estado, criado em 1990 e composto por 21 especialistas da área da Bioética) também defende que as instituições de saúde devem, “como última opção (…), poder contratar profissionais que afirmem não ser objetores de consciência para o procedimento que seja necessário garantir” - ou seja, que possam usar esse critério para contratação - e que o poder legislativo “deve elaborar regulamentação homogénea da OC que permita tanto o respeito pela sua invocação, como a defesa dos direitos dos cidadãos”.
O CNECV exige ainda às instituições de saúde que, além de disporem de “informação detalhada e atualizada sobre os profissionais de saúde objetores”, estabeleçam, “em colaboração com a tutela, processos exequíveis e ágeis para o encaminhamento das pessoas, sempre que necessário, assegurando o devido acesso a cuidados”. E propugna que “a OC deve ser condicionada à garantia da execução do ato ou atos objetados pelo profissional” - fazendo assim depender o direito à objeção da certificação de que os cidadãos não são prejudicados.
Quase 41 anos depois de a objeção de consciência em saúde (recusa de proceder a um determinado tratamento ou cuidado alegando que este contende com os valores do profissional) ter sido consagrada no ordenamento jurídico português - foi pela primeira vez expressamente admitida em 1984, para a esterilização voluntária e inseminação artificial e para a interrupção de gravidez não punível - este parecer, cujos relatores foram Margarida Godinho Costa (jurista), Maria de Lurdes Martins (enfermeira), Miguel Ricou (psicólogo) e Rosalvo Almeida (médico neurologista), surge após os grupos parlamentares do PS, BE, PCP, Livre e PAN terem (em projetos de lei "chumbados"), proposto a regulamentação da OC no âmbito da interrupção de gravidez, precisamente no sentido de evitar que aquela funcione como obstrução àquele cuidado de saúde.
Recorde-se que cerca de um terço dos hospitais portugueses não têm consulta de interrupção de gravidez (IG) devido à alegada objeção de todo o corpo médico. E que a primeira contabilização de objetores para a IG no SNS, efetuada em 2023, em relatórios distintos, pela Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) e pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS) - na sequência de uma investigação do DN sobre a violação da lei do aborto no SNS -, concluía, segundo a ERS, existirem apenas 81 médicos obstetras e ginecologistas (ou 13% do total) a efetuar interrupções até às 10 semanas por decisão exclusiva da mulher, enquanto a IGAS informava que 533 clínicos da especialidade haviam declarado OC para o mesmo procedimento.
Por outro lado, e malgrado a lei desde 2007 estabelecer, em relação à objeção para a IG, que os profissionais têm de a declarar em documento assinado e entregue à direção clínica da unidade onde trabalham, a ERS constatou, a partir ”das respostas remetidas pelos prestadores", a "inexistência" de "um registo completo e atualizado de todos os profissionais de saúde objetores de consciência, tanto nos cuidados hospitalares como nos cuidados primários", e decorrentemente “a impossibilidade de estabelecer uma relação entre a disponibilidade de médicos não objetores de consciência com contrato de trabalho e a capacidade de resposta em matéria de IVG.”
A esta conclusão da ERS, que veio confirmar relatos efetuados ao DN por profissionais de saúde, os quais garantiam que nas respetivas unidades “não se praticava” a declaração de OC, não se seguiu, até agora, qualquer ação quer da direção do SNS quer da tutela governamental. Sendo certo que a relatada (pela ERS) ausência de fiabilidade do registo de objetores no SNS impõe que se questione como podem as unidades de saúde alegar a OC como motivo para não efetuarem abortos até às 10 semanas, colocando a hipótese de que se verifiquem casos de "objeção institucional" - o que é legalmente vedado, uma vez que a objeção de consciência apenas pode ser individual.
Preocupação com desigualdade e discriminação
Mas regressemos ao parecer do CNECV. O qual, para a constitucionalista Teresa Violante, que tem investigado sobre objeção de consciência, “faz concretizações muito importantes que reforçam a necessidade de intervenção legislativa nesta matéria para garantir a adequada compatibilização dos diferentes valores constitucionais em presença, bem como a concretização das condições de exercício da objeção de consciência, sobretudo nas situações em que a dignidade dos pacientes ou a prestação do serviço podem estar em risco”.
Dividido em duas partes, como explica ao DN um dos relatores, Miguel Ricou, o documento do CNECV inclui um relatório e o parecer propriamente dito, sendo que só este último foi votado maioritariamente. O que significará que o relatório só vinculará os autores, aos quais a presidente do órgão, Maria do Céu Patrão Neves, juntou a sua assinatura.
“O grande objetivo deste parecer”, diz Ricou, “foi o de conseguir promover uma reflexão alargada do que é a OC na saúde, das diversas perspetivas existentes, para conseguir, por um lado, promover uma conceptualização adequada da mesma. Por outro, importava refletir sobre os direitos que podem conflituar com ela, nomeadamente o direito de acesso aos cuidados de saúde. Finalmente, era necessário definir eticamente as respostas mais adequadas para harmonizar o exercício destes direitos, a fim de indicar direções para a elaboração da necessária legislação genérica sobre OC, única forma de promover uma mudança positiva a este nível”.
No relatório, adverte-se para o facto de que, “na prática quotidiana, a invocação de OC pode constituir um obstáculo ao direito à saúde, bem como uma discriminação no acesso que poderá prejudicar determinadas minorias e agudizar as desigualdades existentes na sociedade”, e aponta-se como exemplo dessa desigualdade e discriminação “as mulheres que solicitam a interrupção voluntária da gravidez, principalmente até às 10 semanas, sendo este um dos procedimentos alvo mais comuns da OC por profissionais de saúde, cuja omissão poderá ter consequências negativas reais para a saúde reprodutiva e para a vida da mulher”.
Como o DN já noticiou, os objetores para a IG por exclusiva decisão da mulher - que é, no SNS, maioritariamente um processo medicamentoso - são mais do triplo dos que objetam ao aborto pelos outros motivos previstos na lei (anomalia fetal, com prazo até às 24 semanas, risco para a saúde física ou psíquica da mulher, até às 12, e gravidez decorrente de crime contra a autodeterminação sexual, até às 16). Esta objeção de consciência “em massa” - e sobre a qual, como veremos de seguida, o relatório do parecer do CNECV levanta sérias dúvidas de legitimidade - tem como consequência existirem áreas do país nas quais as mulheres são obrigadas a viajar centenas ou mesmo milhares de quilómetros (como sucede nos Açores) para obter um cuidado de saúde que a lei lhes garante.
Este facto corresponde, como estipulou o Comité Europeu dos Direitos Sociais - em duas decisões, votadas favoravelmente por Portugal, nas quais este organismo do Conselho da Europa condena a Itália - a violação do direito à saúde e discriminação no direito à saúde.
Recusando uma percentagem importante dos hospitais italianos (35%), alegando OC dos profissionais, providenciar o serviço de interrupção de gravidez previsto na lei, o Comité conclui que desse facto resulta que “as mulheres que procuram serviços de aborto possam encontrar, na prática, dificuldades substanciais na obtenção desse acesso, apesar de a lei o garantir (...). Em alguns casos, dado o caráter urgente dos procedimentos, as mulheres que desejam interromper a gravidez podem ser forçadas a procurar outros serviços de saúde, em Itália ou no estrangeiro (...), ou a interromper a gravidez sem o apoio e o controlo das autoridades de saúde competentes (…), ou ser de todo impedidas de aceder aos serviços de aborto a que têm direito legal”, situações que "podem envolver riscos consideráveis para a saúde e o bem-estar das mulheres em causa”.
Objeção por recusa de trabalho ou pressão social é ilegítima
Para além destas deliberações do Comité, existem outros órgãos internacionais a chamar a atenção para os efeitos que a objeção de consciência desregrada pode ter sobre o direito à saúde. É o caso do grupo de trabalho do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que alerta para o facto de “a deficiente regulação da objeção de consciência constituir um obstáculo para as mulheres quando exercem o seu direito de aceder a todos os serviços de saúde sexual e reprodutiva”.
Outro exemplo é o do "Relatório Matic", resolução do PE de 2021 que urge os Estados-membros a "criar e aplicar medidas regulatórias e de implementação eficazes de modo a assegurar que a cláusula "de consciência" não (...) interfere com o direito dos cidadãos a acesso efetivo a cuidados e serviços de saúde".
Como grande parte das aludidas deliberações europeias, esta diz respeito à IG e outros cuidados de saúde reprodutiva que afetam sobretudo mulheres, frisando que "por vezes a prática nos Estados Membros permite que os médicos, e às vezes instituições como um todo, recusem providenciar cuidados médicos com base na "cláusula de consciência", levando à negação da IG (...), pondo em perigo as vidas e os direitos das mulheres (...)."
Não referindo estas posições de órgãos internacionais, o relatório do parecer do CNECV frisa no entanto que a OC não se pode exercer “como um juízo moral do profissional de saúde sobre a pessoa que o procura ou como um instrumento de discriminação ou de violação de direitos fundamentais das outras pessoas (…)”, nem “como pressão para a mudança de normas em vigor”.
Adverte também para o facto - que o Comité Europeu dos Direitos Sociais aborda numa das suas deliberações sobre o caso italiano - de que a invocação de objeção “pode provocar desigualdade entre profissionais, ou por benefício dos objetores e/ou prejuízo dos restantes, decorrente do alívio da carga laboral (…). Importará, pois, que a recusa em relação à prática de certos atos não provoque uma sobrecarga sobre os outros profissionais podendo, no limite, constituir-se como uma motivação para a OC.”
A esta ideia, que tem sido referida na literatura científica e em algumas investigações jornalísticas, de que haverá, no caso da interrupção de gravidez, profissionais de saúde que se assumem como objetores por “objeção ao trabalho”, ou porque consideram a IG um procedimento “desinteressante”, associa-se a da pressão dos pares, das instituições ou do meio, naquilo que o CNECV designa de “objeção social” (OS).
A “objeção social” constitui, explica-se no documento, a “recusa de determinados procedimentos motivada pela pressão social dos pares (colegas de trabalho ou hierarquia) ou da comunidade onde o profissional exerce”. O qual invocará objeção “não por o procedimento em causa ofender alguns dos seus valores, mas pelo desconforto que sente em o realizar num contexto profissional ou social em que é visto predominantemente como criticável”.
Ora, vinca relatório do parecer, este tipo de recusa “é totalmente desprovido de legitimidade ética e legal”. E põe a hipótese de ser este tipo falseado de objeção “um dos motivos para que, em Portugal, apenas 13% dos médicos especialistas em Ginecologia-Obstetrícia realizem IVG”.
Para tentar obstar a este uso ilegítimo da OC, o parecer do CNECV considera que as instituições de saúde e as ordens profissionais devem “disponibilizar formação sólida sobre o direito à objeção”.
Pode-se objetar a qualquer procedimento?
Nem o relatório nem o parecer se debruçam sobre uma matéria que, na investigação do DN sobre objeção de consciência em saúde, publicada ao longo do ano de 2013, causou o espanto da ex-ministra da Saúde Marta Temido quando o DN a confrontou com ela.
É que os códigos deontológicos das Ordens (dos Médicos, Enfermeiros e Farmacêuticos), assim como as respetivas direções, encaram a objeção de consciência como podendo ser invocada em relação a qualquer procedimento e não apenas naqueles que estão discriminados na legislação como permitindo essa invocação.
Assim, por exemplo, a Ordem dos Farmacêuticos considera que um farmacêutico hospitalar pode recusar entregar uma caixa de medicamentos (abortivos) requisitada por um médico e a Ordem dos Enfermeiros considera que um enfermeiro objetor para a IG pode recusar colher sangue para análise a uma mulher que vai interromper a gravidez, ou participar numa consulta de seguimento, pós interrupção, da mesma mulher.
Esta perspetiva não se aplica apenas a cuidados de saúde "à roda" da interrupção de gravidez: há, de acordo com a respetiva Ordem, enfermeiros que invocam OC para a transfusão de sangue e hemoderivados - foram 10 a fazê-lo em 2023.
Situações de que Marta Temido confessou ao DN nunca ter ouvido falar, manifestando a convicção de que serão ilegais: "Creio que a OC só é declarável em cuidados de saúde em relação aos quais existem disposições legais que a permitem." Tendo sido vários anos administradora hospitalar, sem alguma vez ter tido que apreciar uma queixa relativa a objeção de consciência, a ex-governante admitiu que se trata de "uma realidade pouco estudada e pouco aprofundada".
O parecer do CNECV será, assim, um primeiro contributo para que deixe de o ser.