Há mais de 40 anos que a objeção de consciência (OC) em saúde surgiu na legislação portuguesa - na lei 3/84, “Educação Sexual e Planeamento Familiar”, a propósito da esterilização voluntária e inseminação artificial, e na chamada primeira lei do aborto, do mesmo ano. Mas até agora esta recusa, por parte de profissionais de saúde, de efetuar (ou participar em) procedimentos legais alegando razões de consciência nunca fora objeto de análise pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), órgão consultivo independente criado em 1990 e composto por 21 especialistas da área..Será um debate aceso, o que está a ocorrer no conselho, já que existem nele posições muito distintas: desde a de quem considera que os profissionais de saúde têm o direito, inclusive no sistema de saúde público, de objetar a qualquer cuidado de saúde, sem declaração prévia, “caso a caso” e sem obedecer a qualquer regulamentação adicional, e quem defenda que é necessária uma regulamentação específica - e até uma lei sobre objeção de consciência..Entre os últimos está o psicólogo Miguel Ricou, que publicou em 2023 dois artigos científicos sobre objeção de consciência (em psicologia e no contexto da morte assistida), e há muito preconiza a existência de um parecer do CNECV sobre o tema, assim como uma regulamentação geral deste direito reconhecido em Portugal aos profissionais de saúde..Considerando que se está perante dois direitos conflituantes, o do profissional às suas convicções e o do doente/cidadão que deseja aceder a um determinado cuidado garantido pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) -, Ricou, como explicou ao DN em dezembro de 2023, vê a necessidade de “salvaguardar todos os valores envolvidos. Não se pode simplesmente dizer ‘têm direito à objeção’ e pronto, como se fosse um direito inalienável e indiscutível, que está acima de tudo - porque não está. Não se pode permitir que ponha em causa os direitos das outras pessoas”..Sublinhando que “o que legitima a possibilidade da objeção é a existência de valores que são controversos na sociedade, mas é preciso não esquecer que os profissionais de saúde trabalham para as pessoas, não para si próprios”, o psicólogo e especialista em Bioética defende que a OC tem de ser sujeita a declaração prévia: “Os objetores têm de estar inscritos, por duas razões: para as pessoas não serem confrontadas com um objetor – por uma questão de tempo, de custos, e de dignidade –, e para organização dos serviços.” E adverte ainda: “A OC tem de se referir a um ato muito específico. No caso da interrupção de gravidez, por exemplo, é ao abortamento, não pode ter a ver com exames preparatórios, etc.” Por tudo isto, conclui, “tem de haver uma lei sobre objeção de consciência genérica. E organizarem-se os serviços para que as pessoas tenham, efetivamente, acesso aos cuidados de saúde previstos na lei"..10 enfermeiros objetores a transfusões de sangue.Quando fala de organização dos serviços, Miguel Ricou está a referir-se sobretudo à interrupção de gravidez (IG), cujo acesso, como o DN reportou numa investigação publicada a partir de fevereiro de 2023, é muito dificultado no SNS devido à quantidade de médicos objetores. De acordo com o relatório da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) que em setembro de 2023, na sequência da referida investigação do jornal, pela primeira vez avaliou o acesso à IG no SNS, 87% dos obstetras que trabalham nos hospitais públicos são objetores para o aborto por exclusiva decisão da mulher (até às 10 semanas); de acordo com o relatório que a Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS) elaborou, também em 2023, sobre o mesmo tema, os objetores para a IG por exclusiva decisão da mulher são mais do triplo dos que objetam ao aborto pelos outros motivos previstos na lei. O que leva a que haja áreas do país onde as mulheres são obrigadas a viajar centenas ou mesmo milhares de quilómetros (como sucedeu até 2024 nos Açores) para obter um cuidado de saúde que a lei da República lhes garante..Mas, como referido, há no CNECV sensibilidades muito diferentes da de Miguel Ricou. Desde logo a do bastonário da Ordem dos Médicos (OM), Carlos Cortes. Para a Ordem, e de acordo com o respetivo Estatuto, a objeção de consciência é um direito lato dos médicos e aplica-se a qualquer ato da profissão (o mesmo consideram a Ordem dos Enfermeiros e a dos Farmacêuticos); até à última alteração, em abril de 2024, o estatuto da OM referia como opcional a declaração de objeção dos médicos em relação à IG, quando a lei (16/2007) a impõe. Também outro membro do CNECV, o igualmente médico Rui Nunes, defende que “um objetor pode objetar a tudo, a objeção de consciência é ato a ato". .Uma posição que, desde logo, parece não se ater ao disposto na Lei de Bases da Saúde (2019), na qual se lê que os profissionais de saúde devem respeitar os direitos da pessoa a quem prestam cuidados, podendo “exercer a objeção de consciência, nos termos da lei”. Uma vez que em toda a legislação atinente à saúde só se prevê a possibilidade de invocação de OC em determinadas situações - além das já citadas, também na procriação assistida (lei de 2006), e no que respeita às diretivas antecipadas de vontade (vulgo “testamento vital”, de 2012) -, dir-se-á que esta só pode ser invocada nesses casos..A prática, porém, demonstra que não é essa a interpretação que impera. A ponto de, como o DN noticiou, existirem enfermeiros que se declaram objetores de consciência para as transfusões de sangue. Eram em 2023, segundo comunicou a respetiva Ordem profissional ao DN, uma dezena: “Atualmente existem 10 enfermeiros registados como sendo objetores de consciência no âmbito da transfusão de sangue e hemoderivados.”.Quando no final de 2023 o jornal confrontou André Dias Pereira, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e atual vice-presidente do CNECV, com esta realidade, o jurista ficou pasmado: nunca ouvira falar de tal coisa e reputou-a de “sem qualquer sentido”..“O direito à recusa de transfusão é do doente”, explicou ao jornal. “Profissionais de saúde não podem objetar a uma transfusão necessária. Se há enfermeiros ou médicos que são testemunhas de Jeová [congregação cristã que recusa as transfusões] escolham especialidades em que não haja transfusões.”.Certo porém é que los hay, e a Ordem dos Enfermeiros (OE) não vê nisso problema legal ou deontológico. Como, disse ao DN, não os vê em que haja enfermeiros que, invocando OC, recusam colher sangue a mulheres que vão fazer uma interrupção de gravidez. Esta situação, revelada pelo jornal em maio de 2023, foi considerada pela OE como fazendo parte da objeção de consciência ao aborto: “A objeção aplica-se a todos os atos que estão envolvidos naquilo que é o procedimento, antes e depois, da IVG [interrupção voluntária de gravidez]”..Há inclusive, como uma enfermeira de um hospital do centro do país garantiu ao DN, colegas seus que “nem boa tarde dizem às mulheres que vão interromper a gravidez”. Yuriy Schmakto, diretor do departamento de obstetrícia do Hospital da Horta (Açores) também disse ao jornal observar esse tipo de atitude: “Há profissionais que recusam entrar numa sala onde está uma dessas mulheres. Não gostam mesmo das mulheres que abortam”..Posição da Ordem dos Enfermeiros é “discriminatória e estigmatizante”.A posição da Ordem dos Enfermeiros sobre a abrangência da objeção não é consensual na classe: Lucília Nunes, ex-presidente do Conselho Jurisdicional da OE (de 2004 a 2008) e ex-vice-presidente do CNECV (2015/2020), discorda com veemência..“Tirar sangue para análise a uma mulher que vai fazer IG não é um ato que concorra para a finalidade a que o enfermeiro objeta, que é a interrupção; não é um ato de interrupção”, disse ao DN, em dezembro de 2023, esta enfermeira especialista em Ética. “A objeção não pode ter essa abrangência, é para a IG, não para todos os atos anteriores ou posteriores. Acho um exagero recusarem tirar sangue para um controlo analítico; do mesmo modo, acho inconcebível a recusa de participar numa consulta posterior, que é uma consulta de literacia para a saúde; não vejo mesmo razão, porque o ato já foi realizado. Não se pode dizer que se pode objetar antes, durante e depois - espanta-me que haja quem defenda isso.” E conclui: “As recusas de prestação de cuidados de saúde a montante e a jusante do ato a que se objeta são discriminatórias, no sentido mais puro da ideia de discriminar, separar - mas é também no sentido de serem estigmatizantes.”.A posição de Lucília Nunes é consentânea com a de dois tribunais superiores europeus que se debruçaram sobre a questão - o Supremo Tribunal de Itália, em 2021, e o homólogo do Reino Unido, em 2014. Ambos deliberaram que os profissionais de saúde que objetem ao aborto têm o direito de recusar participar nos procedimentos abortivos, sejam eles cirúrgicos ou medicamentosos, mas não o de negar assistência antes e depois, uma vez que o direito à saúde das mulheres tem de ser sempre protegido e assegurado. O tribunal britânico frisou que os cuidados de enfermagem que “se seguem ao ato”, e de um modo geral todos os cuidados que não eram crime antes da lei que naquele país descriminalizou o aborto (em 1967), não estão incluídos no direito à objeção de consciência. O mesmo acórdão considera que a objeção de consciência de um médico tem apenas a ver com a IG propriamente dita, não podendo aplicar-se sequer à certificação da idade gestacional da gravidez e sobre se a situação se enquadra (ou não) na previsão legal. Significando que uma ecografia de datação não está abrangida pela objeção de consciência..Em Portugal, até hoje nenhum tribunal se debruçou sobre a OC. Mas o país deve ter em conta pelo menos as decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, nas quais os juízes de Estrasburgo estipulam que o direito dos profissionais de saúde à objeção não pode prejudicar ou limitar o direito à saúde dos outros cidadãos, e que nesse conflito entre direitos o segundo deve prevalecer. Pelo que consideraram lícita a opção da Suécia de só contratar, no sistema público, obstetras não objetores à interupção de gravidez. Igualmente relevantes são as deliberações do Comité Europeu dos Direitos Sociais, o qual por duas vezes condenou a Itália pela dificuldade de acesso à interrupção de gravidez no sistema público devido ao elevado número de objetores (o que, como referido, também sucede em Portugal), exigindo que, quando admitida, a OC seja regulada e monitorizada..ERS acha que o assunto está “suficientemente densificado”; PS e BE querem mais regulamentação .Malgrado este enquadramento jurisprudencial, só em 2023 a IGAS e a ERS tentaram proceder a uma monitorização dos profissionais objetores à IG. E apesar de se ter concluído que havia serviços de saúde a violar até a parca regulamentação existente, dizendo desconhecer a obrigação dos profissionais de se declararem (ou não) objetores, nenhuma das duas propôs, nas conclusões dos seus relatórios, uma melhor regulamentação da OC..É certo que o presidente da ERS, o médico António Pimenta Marinho, aventou tal necessidade nas audições parlamentares ocorridas na sequência da citada investigação do DN: “Parece-nos que os médicos não podem ser objetores de consciência para todas as atividades, como as ecografias, etc”. Mas após várias insistências do jornal, perguntando se este órgão preparava alguma recomendação sobre OC, a resposta formal, em agosto deste ano, é de que não faz falta..Porque, crê a ERS, a OC está “abundantemente densificada em legislação que diretamente regula áreas de atuação em que a convocação do direito de objetor de consciência se coloca com maior acuidade” (na maioria das leis em causa, a “densificação” limita-se à certificação de que a objeção é possível), e existe “suficiente densificação deontológica” (referindo-se aos estatutos deontológicos das profissões). .Os grupos parlamentares do PS e BE acham o contrário: nos recentes projetos de lei em que propõem o alargamento do prazo, atualmente de 10 semanas, da IG por decisão exclusiva da mulher (o PS para 12 semanas e o BE para 14), também regulamentam a OC, estipulando limites para a sua invocação, nomeadamente deixando claro que só pode valer para o ato da interrupção em si, e não para os cuidados de saúde anteriores e posteriores.."A objeção de consciência não inclui a recusa de assistência médica ou outra a mulheres antes ou depois de uma interrupção voluntária da gravidez”, lê-se no diploma do PS. No do BE, frisa-se que a OC “refere-se ao ato de abortamento e não a outros atos, não podendo em circunstância alguma ser uma objeção contra uma determinada pessoa ou contra a sua livre escolha.”.No diploma do Bloco também se estatui, à imagem do que sucede em Itália, a existência, nas unidades de saúde, de “uma lista atualizada de profissionais objetores de consciência em relação à interrupção voluntária da gravidez”, para que seja possível “planear, organizar e garantir o pleno funcionamento dos seus serviços”. E reforça-se a obrigação de declaração da OC: “Os médicos ou demais profissionais que desejem exercer o seu direito de objeção de consciência devem fazê-lo num prazo de até 60 dias após a sua contratação para o SNS, em documento escrito e assinado, apresentado ao responsável do seu serviço, ao conselho de administração da unidade ou unidades de saúde onde trabalhem, assim como, caso exista, à respetiva ordem profissional”..Já o PS adverte que, se a objeção de consciência “corresponde ao exercício de um direito com guarida constitucional”, não pode ser usado como “obstrução” - aquilo que os deputados socialistas consideram suceder quando os profissionais de saúde não se opõem a realizar interrupções de gravidez em geral (por exemplo por malformação, com prazo máximo de 24 semanas, ou quando exista perigo para a saúde física ou psíquica da mulher, até às 12 semanas) mas recusam proceder à que se deve à exclusiva decisão da mulher. “Quando os profissionais de saúde manifestam objeção de consciência apenas em relação ao aborto por opção da mulher, estando disponíveis para o realizar noutras situações, tal, para vários autores, consubstancia, na verdade, obstrução de consciência, porque discorda-se da decisão das mulheres e tenta-se impedi-las de exercer o seu direito” lê-se no preâmbulo do documento, que cita o grupo de trabalho do Conselho de Direitos Humanos da ONU: “A deficiente regulação da objeção de consciência constitui um obstáculo para as mulheres quando exercem o seu direito de aceder a todos os serviços de saúde sexual e reprodutiva”..Alertas e propostas que decerto estarão em cima da mesa no debate que decorre no CNECV.