Há seis anos que não se registavam tantos abortos até às 10 semanas em Portugal. Depois de uma quebra acentuada das interrupções de gravidez (IG) durante os dois anos pandémicos (2020 e 2021), nos quais houve igualmente uma descida abrupta da natalidade - entre 2019 e 2021 o total anual de nados vivos reduziu-se em 8,1% - registaram-se, de acordo com o relatório sobre Acesso a Interrupção Voluntária da Gravidez no Serviço Nacional de Saúde, esta quarta-feira tornado público pela Entidade Reguladora da Saúde, 15 616 interrupções de gravidez por vontade da mulher em 2022, quase tantos como os 15 881 de 2016..Face ao ano anterior, em que se contabilizaram 13 782 IG, a subida é de 15%, a maior neste cuidado de saúde ao longo da última década, e o triplo da variação positiva verificada no número de nados vivos (que em 2022 foram mais 5,1%, passando de 79 582 para 83 661). Comparando com 2019, o último ano pré-pandémico - e o único desde 2012 no qual se tinha verificado um incremento no número de IG, com mais 2,6% (372), em relação a 2018 - o aumento é de 7,8%..O número de abortos por vontade da mulher em 2022 é uma das revelações do relatório da Entidade Reguladora da Saúde sobre o acesso a este cuidado de saúde, a partir de um "processo de avaliação" decidido pelo regulador na sequência da investigação publicada pelo DN em fevereiro..De acordo com o relatório, a ERS detetou várias situações nas quais a lei do aborto não está a ser cumprida, quer quanto ao prazo de espera para a primeira consulta - que não pode ultrapassar cinco dias - quer quanto aos circuitos, existindo até dois hospitais que não apresentam qualquer solução de encaminhamento das mulheres que os procuram para realização de IVG..No que respeita aos circuitos, lê-se no relatório, "verificaram-se três situações em que era vedada a realização de IVG a utentes não residentes na área de influência da unidade hospitalar ou a utentes não inscritas nos centros de saúde da área de referenciação da unidade hospitalar, e duas situações em que as utentes eram obrigadas a iniciarem o seu percurso pelos Cuidados de Saúde Primários." Caso do Hospital Garcia de Orta, como o DN reportara em fevereiro..Acresce que há centros de saúde que, apesar de informarem levar a cabo a consulta prévia (aquela que de acordo com a lei tem de ter lugar três dias antes do procedimento, sendo os três dias em causa os do "período de reflexão" obrigatório), desconhecem o protocolo dessa mesma consulta, nomeadamente quanto aos esclarecimentos que devem nessa ocasião ser prestados à mulher..A ERS também concluiu que houve "pelo menos 1366 situações em que o procedimento [o aborto] não foi realizado por ter sido ultrapassado o prazo legalmente estabelecido"..Recorde-se que o DN reportou um caso no qual, por o tempo de espera para a primeira consulta (no Hospital de Santa Maria) ultrapassar o prazo legal para a interrupção, a mulher em causa teve de optar pelo procedimento no privado (após a publicação da notícia, o hospital assumiu o erro e disponibilizou-se para a ressarcir)..Em termos de reclamações enviadas à ERS respeitando a IVG, diz o relatório que "a região de saúde do Algarve apresentou o pior desempenho relativo em 2022 e a região do Centro em 2023". Até 26 de julho de 2023, prossegue o documento, "existiam 11 reclamações classificadas com a categoria "'Restrição à Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG)', três com data de ocorrência de 2022 e 8 relativas ao ano de 2023, com a grande maioria das reclamações a visar estabelecimentos de saúde localizados na região de saúde de Lisboa e Vale do Tejo"..Por fim, foi confirmada a inexistência, já noticiada pelo DN, de um registo atualizado de objetores de consciência, quer por parte de hospitais e centros de saúde - que está previsto na lei - quer pela Ordem dos Médicos e pela Direção Geral de Saúde..Malgrado o aumento verificado em Portugal em 2022, a taxa de aborto - o total de IG por mil mulheres, calculada em função do número de mulheres em idade fértil (15/49 anos) - que, de acordo com o cálculo do DN, passa de 6,1 em 2021 para 7 em 2022, mantém-se entre as mais baixas da Europa ocidental, e a segunda mais baixa na Europa do Sul, atrás da Itália, cujos últimos dados são de 2020 (5,8). Já Espanha registou 10,7 em 2021 e a França 15,5..Olhando para os números relativos a IG em 2022 até agora publicados pelas autoridades de saúde de países da Europa ocidental (a maioria ainda não os publicou), parece haver fundamento para crer que a variação verificada em Portugal se insere, como o DN já reportara, numa tendência..Na Irlanda (4,9 milhões de habitantes), onde a interrupção de gravidez a pedido da mulher só é possível desde 2019 (após um referendo em 2018), ocorreu uma subida de 23% - isto se tivermos em conta a diferença face ao último ano pré-pandémico, 2019, quando foram contabilizadas 6455 interrupções de gravidez nas primeiras semanas ("early abortions", ou abortos a pedido da mulher) face às 8042 de 2022. Em 2021 o sistema tinha registado apenas 4577 IG, mas, de acordo com as autoridades de saúde irlandesas, houve um problema informático (caso tenhamos em conta este número, o aumento em 2022 é de 76%). Já em 2020 contaram-se 6455 "early abortions". Com os atuais números, a taxa de aborto irlandesa é agora de 6,7..Na Alemanha, país de mais de 84 milhões que apresenta uma das consistentemente mais baixas taxas de aborto na Europa - nos últimos dez anos, foi sempre inferior a 6 -, e que tinha em 2021, como Portugal, registado o número mais baixo desde o início da contabilização (a descriminalização ocorreu em 1995), houve um acréscimo de 9,9% (de 94600 para 104 mil) em 2022. De acordo com a página do Gabinete Federal de Estatística da Alemanha, é preciso recuar dez anos, a 2012, quando se contabilizaram 106 800 abortos, para encontrar um número superior ao de 2022..O aumento neste país, para o qual as autoridades de saúde dizem não ter até agora encontrado "uma causa óbvia", verificou-se ao longo de todo o ano, mas foi particularmente elevado no segundo e terceiro trimestres, com, respetivamente, mais 11,5% e mais 16,7% que nos períodos homólogos de 2021. A taxa de aborto alemã subiu assim para 6,3 e, de acordo com a última atualização, continua a aumentar em 2023..Também na Noruega, onde como na Alemanha e em Portugal o número de IG vinha a diminuir sustentadamente - no caso desde 2008 -, se verificou um aumento de 10% face a 2021, tendo-se registado 11967 IG face às 10875 de 2021. Já em comparação com 2019 (11734), a subida foi de cerca de 2%. Curiosamente, neste país de 5,4 milhões habitantes no qual o aborto a pedido da mulher é autorizado até às 12 semanas, 2022 foi, em contraste com o ocorrido em Portugal, um ano de quebra da natalidade - menos 8% face a 2021 -, cuja taxa foi a mais baixa de sempre desde que existem registos..No Reino Unido, país que tem das taxas de aborto mais elevadas da Europa ocidental (em 2021 eram de 18,6 e 13,5 em Inglaterra-Gales e Escócia, respetivamente), nos primeiros seis meses de 2022 - a publicação dos dados do segundo semestre foi adiada para janeiro de 2024 - verificaram-se em Inglaterra-Gales, face ao mesmo período de 2021, mais 17% IG (de 105 488 para 123 219). Na Escócia, o incremento, dizendo respeito ao ano todo, é de mais 19%, de 13 931 para 16 584..De sublinhar que, ao contrário do ocorrido na Alemanha e na Noruega - e também em Portugal -, Inglaterra e Gales (mais de 59 milhões de habitantes no conjunto) têm vindo a registar um aumento sustentado do número de IG ao longo das décadas: 2021 tinha sido, com 214869, o ano com mais abortos desde que este procedimento se tornou legal, há 56 anos; a tendência tem sido sempre crescente, verificando-se uma subida mais pronunciada desde 2016.