"Foram registados 104 mil abortos na Alemanha em 2022, o que corresponde a um aumento de 9,9% face ao ano anterior, no qual se havia contabilizado o número mais baixo - 94 600 - desde que há estatísticas. De acordo com o Gabinete Federal de Estatísticas, o número de abortos excedeu também os níveis ocorridos de 2014 a 2020, que variaram entre 99 mil e 101 mil. O ano mais recente em que o número de interrupções de gravidez (IG) foi mais alto que em 2022 é 2012 (106 800). Os dados disponíveis não permitem identificar uma causa óbvia para este forte aumento.".Este comunicado de imprensa das autoridades alemãs, de março de 2023, segue-se a comunicados anteriores, ainda em 2022, nos quais se dava a conhecer um aumento constante das IG ao longo do ano, particularmente pronunciado no segundo e terceiro trimestres: 11,5% e 16,7%, respetivamente..Uma tendência que, de acordo com o mais recente comunicado (de 26 de junho), se prolonga em 2023: houve mais 6,8% IG no primeiro trimestre do ano, face ao período homólogo anterior (no qual o crescimento fora de 4,8%). Mais uma vez, sublinha-se: "As razões desta evolução não podem ser avaliadas com base nos dados existentes. Não há qualquer conhecimento sobre as razões pessoais da decisão de abortar de acordo com as regras em vigor"..Com 84,3 milhões de habitantes, a Alemanha é um dos países da Europa ocidental que, como Portugal, tem apresentado uma taxa de aborto - o total de interrupções de gravidez (IG) por mil mulheres, calculada em função do número de mulheres em idade fértil (15/49 anos) - persistentemente baixa, mantendo-se inferior a 6 nos últimos dez anos (a taxa de Portugal em 2021, ano com o menor número de IG desde a descriminalização, foi 6,1)..E, também como Portugal, a Alemanha, depois de registar um máximo de IG legais alguns anos após a descriminalização (que ali ocorreu em 1995, tendo em 2001 contabilizado quase 135 mil IG), vinha a evidenciar uma diminuição sustentada deste cuidado de saúde..DestaquedestaqueA médica Mette Løkeland-Stai, do Instituto de Saúde Pública da Noruega, afirma "não ser ainda possível dizer se se trata de uma mudança de tendência ou apenas um resultado temporário da pandemia".O "brusco aumento" reconhecido pelas autoridades alemãs, que fez passar a taxa de aborto de 4,3 (a mais baixa de sempre, em 2021) para 6,3 - um aumento de quase 50% - está alinhado com o ocorrido na Noruega..Este é outro país no qual o número de IG vinha a diminuir paulatinamente - no caso desde 2008 - apesar de a taxa de aborto se manter ali, como de resto sucede na generalidade dos países nórdicos (à exceção da Finlândia), comparativamente elevada: fora 9 em 2021, o ano com menos IG desde o início da contabilidade, e passa agora para 9,8..A variação no número de IG verificada na Noruega foi de mais 10%; em 2022 registaram-se 11967 face às 10875 de 2021 (ou seja, um acréscimo de 1092). Já em comparação com 2019 (11734), o último ano pré-pandemia, a subida foi de cerca de 2%; a variação homóloga na Alemanha (entre 2019 e 2022) foi de quase 4%..Curiosamente, no pequeno país nórdico (5,4 milhões de habitantes) onde, como na Alemanha, o aborto a pedido da mulher é autorizado até às 12 semanas, 2022 foi um ano de quebra da natalidade - menos 8% -, cuja taxa foi a mais baixa de sempre desde que existem registos. Houve igualmente uma quebra na Alemanha, mas bastante menor: 0,9%..À semelhança das autoridades alemãs, as norueguesas não têm uma interpretação estruturada para o ocorrido: "Não é ainda possível dizer se se trata de uma mudança de tendência ou apenas um resultado temporário da pandemia", afirma a médica Mette Løkeland-Stai, do Instituto de Saúde Pública do país. Lembra porém ter sido "recentemente descoberto que há menos mulheres a usar contraceção hormonal"..Esta especialista, citada no site do instituto, refere-se a notícias recentes nos media noruegueses sobre um declínio no uso de contraceção hormonal pelas jovens, e ao facto de a Associação de Farmacêuticos do país ter confirmado uma diminuição na taxa de utilização..Ora o maior aumento nas IG, em termos de faixa etária, de 2021 para 2022, é precisamente na das adolescentes - mais 20%, de 4,6 para 5,5; mesmo face a 2019, quando a taxa foi de 4,9, regista-se uma subida neste segmento, que contrasta com uma ligeira diminuição no dos 20 aos 29 anos. (A título comparativo, de acordo com os cálculos efetuados pelo DN, em 2021, tendo havido em Portugal 1001 IG de adolescentes dos 15 aos 19 anos, a taxa em causa - número de abortos por mil - foi de 3,86)..Outro país nórdico que registou um aumento, embora bastante menos expressivo, nas IG de 2021 para 2022 foi a Suécia (10,5 milhões de habitantes) - de 33 697 para 35 450, ou seja mais 5,2%. A taxa de IG por mil mulheres em idade fértil passou ali de 17,8 para 18, contrariando o declínio que se vinha a verificar desde 2015..Ao mesmo tempo, o número de nados vivos foi neste país o mais baixo desde 2005, diminuindo 8,5% face ao a 2021..O total de IG regressou assim na Suécia a valores pré-pandémicos (2021 fora o ano com menos IG desde 2002). De relevar que a subida no número de IG nas adolescentes foi superior à subida geral: em 2021 tinham sido contabilizadas 2366, e em 2022 foram 2529, registando-se um aumento de cerca de 7%; quanto à taxa de IG nas adolescentes, subiu de 8,26 para 8,65, ou seja 4,7% (o que significa que se registou neste segmento uma subida superior à da taxa geral, que foi de 1,1%)..Os aumentos verificados na Alemanha e Noruega, apesar de considerados "bruscos", são ainda assim bastante menores que os registados no Reino Unido, país que tem das taxas de aborto mais elevadas da Europa ocidental (em 2021 eram de 18,6 e 13,5 em Inglaterra-Gales e Escócia, respetivamente)..Na mesma área geográfica, só a já referida Suécia e a França apresentam taxas de aborto da mesma ordem de grandeza - a francesa foi de 15,5 em 2021. Seguem-se, no mesmo ano, a de Espanha (10,7), da Holanda (8,7), da Bélgica (7,8), da Suíça e Finlândia (6,7) e Irlanda (3,8, muito abaixo da de 2020, 5,7; cálculos foram efetuados pelo DN)..Em 2018 a Dinamarca apresentava uma taxa de IG de 11,4; em 2020 as taxas de Itália (país já por duas vezes condenado pelo Comité dos Direitos Sociais Europeus pela dificuldade de acesso ao aborto legal) e Islândia eram, respetivamente, 5,4 e 11,3. Não se encontraram dados para o Luxemburgo, Áustria e Grécia..Mas voltemos ao Reino Unido: nos primeiros seis meses de 2022 - a publicação dos dados do segundo semestre foi adiada para janeiro de 2024 - verificaram-se em Inglaterra-Gales, face ao mesmo período de 2021, mais 17% IG (de 105 488 para 123 219); na Escócia, o incremento, dizendo respeito ao ano todo, é de mais 19%, de 13 931 para 16 584..De sublinhar que, ao contrário do ocorrido na Alemanha e na Noruega - e também em Portugal -, Inglaterra e Gales (mais de 59 milhões de habitantes no conjunto) têm vindo a registar um aumento sustentado do número de IG ao longo das décadas: 2021 tinha sido, com 214 869, o ano com mais abortos desde que este procedimento se tornou legal, há 56 anos; a tendência tem sido sempre crescente, verificando-se uma subida mais pronunciada desde 2016..DestaquedestaqueNo Reino Unido houve, em Inglaterra e Gales, um aumento de 17% no primeiro semestre de 2022; na Escócia, o incremento, dizendo respeito ao ano todo, é de 19%.Na Escócia (população 5 454 000), se se verifica igualmente uma evolução continuada no sentido do crescimento, nos últimos três anos o total de IG nunca chegou a 14 mil, verificando-se uma pequena descida de 2020 para 2021 (de 13896 para 13783)..Também se verificou na Escócia, como na Noruega e na Alemanha, um decréscimo no número de nados vivos, neste caso de cerca de 1,7% face a 2021, de 47 786 para 46 959 (a contabilidade dos nascimentos em Inglaterra e Gales em 2022 ainda não foi divulgada)..O aumento muito acentuado de abortos no Reino Unido fora já, antes de serem conhecidos os números oficiais de 2022 quer de Inglaterra e Gales (publicados a 23 de junho) quer da Escócia (divulgados a 30 de maio), objeto de notícia.."Não há dúvida de que estamos a ver níveis sem precedentes de procura neste momento, todos os serviços de aborto estão com mais trabalho do que nunca", dizia em janeiro de 2023 um responsável da MSI Reproductive Choices UK (organização não governamental pró-escolha que tem mais de 60 clínicas no país) ao jornal britânico The Guardian..Ainda de acordo com o Guardian, a tendência de crescimento acelerado do número de abortos no país pode confirmar-se em 2023: a MSI terá tratado mais 47% de mulheres nas primeiras semanas do ano que no mesmo período em 2022, e fez mais 51% consultas telefónicas. Também o Serviço Nacional de Saúde britânico assumiu ao jornal o aumento na procura de serviços de aborto..A MSI é igualmente citada pelo British Medical Journal (BMJ), no seu número de janeiro de 2023, num artigo sob o título "Procura de aborto dispara enquanto os serviços de contraceção diminuem e custo de vida aumenta". O aumento da procura "em todos os serviços que providenciam IG" é confirmado pelo respetivo diretor, Jonathan Lord, vice-presidente da task force de aborto do Colégio de Obstetrícia..Para Lord, a explicação estará na crise económica, no aumento do custo de vida e na dificuldade de acesso a boa contraceção. Embora, frisa, a contraceção seja grátis nos serviços de saúde, os cortes orçamentais levaram ao fecho de muitos desses serviços e à diminuição no pessoal, implicando elevados tempos de espera. Para muitas mulheres que precisam de contraceção de emergência - a chamada "pílula do dia seguinte" -, diz o médico, comprá-la na farmácia pode ser a única opção, o que custa até 30 libras (35 euros)..A preocupação é partilhada por Ranee Thakar, presidente do Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, que confirma "a procura crescente de serviços de aborto numa altura em que há uma imensa pressão em todo o Serviço Nacional de Saúde" e o facto de "os serviços de saúde sexual e reprodutiva estarem sobrecarregados"..Destaquedestaque"Procura de aborto dispara enquanto os serviços de contraceção diminuem e custo de vida aumenta", titulava em janeiro de 2023 o British Medical Journal.Já antes da pandemia, em novembro de 2019, refere a BMJ, o Grupo de Aconselhamento em Contraceção tinha revelado que os gastos em contraceção por parte das autoridades regionais tinham sofrido um corte de 18% desde 2015; metade das autarquias fechara esses serviços desde essa altura..Aliás, a Faculdade de Saúde Sexual e Reprodutiva (grupo especializado do Royal College of Obstetricians and Gynaecologists) tinha já alertado em 2018 para o facto de mais de oito milhões de mulheres em idade fértil viverem em áreas do Reino Unido nas quais esses cortes ocorreram..A dificuldade de acesso a contraceção não é mencionada no único relatório britânico detalhado sobre os números de aborto de 2022 - o da Escócia. Mas há revelações no documento que podem ir ao encontro dessa explicação..Nomeadamente o facto de se ter verificado uma inversão na tendência de duas décadas de descida constante da IG nas adolescentes - como na Noruega, a Escócia regista um aumento expressivo nesta faixa etária.."Nos últimos 20 anos, a mais alta taxa de IG tem-se verificado no grupo dos 20 aos 24 anos, ao qual respeita mais de um quarto (27%) das IG em 2022", lê-se no documento. "Tendo havido uma tendência geral de descida, nos últimos 20 anos, das IG em adolescentes, houve agora um aumento assinalável nos grupos dos 16 aos 19, dos 20 aos 24 e dos 25 aos 29 entre 2021 e 2022"..O número de IG nas jovens dos 15 aos 19 foi de 2013; destas, 114 IG correspondendo ao segmento abaixo dos 16, e 1899 respeitando à faixa dos 16 aos 19. Nesta última, a taxa de aborto foi em 2022 de 17,2, a terceira mais elevada, atrás do segmento dos 25 aos 29 anos (22,3) e dos 20 aos 24 (27,4)..(O padrão etário das IG em Inglaterra e Gales no ano passado não foi ainda revelado; porém, como na Escócia, a taxa de aborto entre as mais jovens vinha ali a diminuir, de uma taxa de 15 abortos por mil adolescentes em 2011 para 6,4 em 2021)..Outra informação importante que consta no relatório escocês é a associação entre IG e privação material: houve em 2022 mais do dobro de abortos nas zonas economicamente deprimidas que nas mais abastadas..Destaquedestaque"A subida reflete aquilo que estamos a ver nos últimos 18 meses - um enorme aumento no número das mulheres que vêm ter connosco, particularmente mulheres que estão muito preocupadas com o custo de vida." (Rachael Clarke, British Pregnancy Advisory Service) .Essa associação, como referido, fora já efetuada pelos especialistas britânicos que, previamente à publicação dos números oficiais, comentavam o aumento da procura de serviços de IG; outra organização não governamental, a British Pregnancy Advisory Service, que se apresenta como "o serviço líder de aborto no Reino Unido" reagiu à divulgação do relatório escocês dizendo: "Não estamos absolutamente nada surpreendidos"..Em declarações à revista Cosmopolitan, Rachael Clarke, representante desta ONG, disse que a subida "reflete aquilo que estamos a ver nos últimos 18 meses - um enorme aumento no número das mulheres que vêm ter connosco, particularmente mulheres que estão muito preocupadas com o custo de vida e o impacto que vai ter nelas e nas suas famílias. Acho que estamos a ver cada vez mais mulheres que há uns anos poderiam escolher manter a gravidez mas que estão a ser confrontadas com decisões muito difíceis em relação ao futuro do seu emprego, à manutenção da sua habitação, e à sua capacidade de continuar a pagar comida, eletricidade e aquecimento.".Portugal, país no qual, como já referido, se tem vindo a verificar, na última década, uma descida constante no número de IG - só entre 2018 e 2021 a diminuição foi de 18,8% - também está a assistir a um fenómeno similar ao ocorrido nos três países referidos..Enquanto se aguarda a publicação do relatório da Direção-Geral da Saúde (DGS) sobre a IG em 2022, o DN contactou médicos que trabalham na consulta de interrupção de gravidez em vários pontos do país; todos certificam ter notado um aumento de procura nos seus serviços..Nesse caso está a obstetra Teresa Bombas, do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra. Questionada sobre se notou alguma alteração semelhante à ocorrida na Escócia no aborto adolescente, nega: "Em termos de idade não notei diferenças. Em Coimbra temos uma população muito jovem, por causa da Universidade, e não houve maior afluência dessa população. Há é, nas mulheres que comentam o motivo para abortar, uma relação clara com a causa económica. O número de filhos que a família comporta está subjacente à maioria das decisões.".Um médico responsável pela consulta de IG de um hospital do norte confirma igualmente subida na procura, assim como uma homóloga de um hospital lisboeta..De resto, já em fevereiro o Hospital de Santa Maria tinha, em resposta a perguntas do DN, relatado "um aumento exponencial da procura" no início de 2023, na sequência de uma "procura muito elevada" no ano anterior, no qual se tinha verificado uma subida de 35% face a 2021 - 851 IG em comparação com 630. Tendo como referência o último ano pré-pandemia, 2019 (no qual se tinha verificado um ligeiro aumento em relação a 2018), a diferença em relação a 2022 também é de acréscimo, mas bastante menor: 11,2%..Destaquedestaque"Ainda estamos a trabalhar os dados provisórios de 2022, mas pode-se confirmar a existência de um acréscimo. (...) Não se prevê aumento nas adolescentes." (Dina Oliveira, DGS).Confrontada com o aumento de IG da Alemanha, Noruega e Reino Unido, e com as informações recolhidas pelo DN em relação ao panorama nacional, Dina Oliveira, a chefe de Divisão da Saúde Sexual, Reprodutiva, Infantil e Juvenil da DGS, confirma a tendência.."Ainda estamos a trabalhar os dados provisórios de 2022, mas pode-se confirmar a existência de um acréscimo", diz esta responsável. Quanto a possíveis interpretações, é cedo: "A DGS está a analisar, mas estes fenómenos são multifactoriais. O decréscimo de 2020 e 2021 tem de ser enquadrado no contexto da pandemia, e o aumento que parece estar a verificar-se em vários países no pós-pandemia pode ser enquadrado com a existência de uma guerra, a inflação, o aumento do custo de vida...".Para já, informa, os dados provisórios não parecem indicar alterações nos padrões que se têm vindo a constatar desde há anos: "Não se prevê aumento nas adolescentes [em 2020/2021 eram 8% do total] e observa-se a continuação do crescimento da IG nas mulheres estrangeiras"..Este crescimento nas estrangeiras - em 2020 eram já um quarto das mulheres que recorreram a IG, com um acréscimo de 49% entre 2016 e 2021 que corresponde em números brutos a 3073 neste último ano - acompanha o do número de nados vivos de mulheres estrangeiras e foi em parte responsável pela variação positiva de 5,12% na natalidade entre 2021 e 2022..Variação na natalidade na qual Portugal está em contraciclo em relação à generalidade dos países da Europa ocidental. Além da Alemanha, Noruega, Escócia e Suécia, também França, Espanha, Grécia, Bélgica, Áustria, Suíça, Luxemburgo, Holanda, Finlândia, Dinamarca e Islândia contabilizaram menos nascimentos em 2022 que em 2021.