Ministério da Saúde não sabe quantos objetores há no SNS
É obrigatório que os clínicos objetores de consciência para a IVG assinem documento e o entreguem às direções de hospitais. Mas ninguém parece saber se tal está a ser cumprido, e muito menos quantos objetores há no SNS. A Direção-Geral da Saúde, que colige toda a informação sobre interrupção da gravidez, admite não ter essa informação.
"A lista dos objetores de consciência não é enviada à Direção-Geral da Saúde [DGS], nem pelos hospitais nem pela Ordem dos Médicos", afirmou esta quinta-feira no parlamento a responsável pela divisão Saúde Sexual e Reprodutiva da DGS, Dina Oliveira. "Esse registo existe nas instituições mas é muito mais uma questão da Ordem dos Médicos", certificou, na mesma ocasião, a diretora-geral da Saúde Graça Freitas.
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As duas responsáveis, que estiveram em audição na Comissão de Saúde a propósito do acesso à interrupção voluntária da gravidez no Serviço Nacional de Saúde (SNS), respondiam a uma pergunta da deputada Catarina Martins, coordenadora do Bloco de Esquerda, que queria saber se existe na DGS uma listagem dos objetores ou uma quantificação do seu número, e se alguma vez esse dado foi incluído nos relatórios, publicados anualmente pela instituição, sobre a aplicação da lei que desde 2007 permite a interrupção voluntária da gravidez (IVG) até às 10 semanas por vontade da mulher.
Ficou assim a saber-se nesta audição - a terceira da série surgida em resultado de uma investigação do DN, publicada em fevereiro, sobre as dificuldades de acesso à IVG no SNS - que malgrado a objeção de consciência para a IVG ser regulada, desde 2007, por uma portaria da DGS impondo que os clínicos objetores a declarem por escrito perante as direções das unidades, esta instituição não tem (se alguma vez teve ao longo dos quase 16 anos de aplicação da lei) informação atualizada sobre o número das ditas declarações e portanto sobre quantos objetores existem na rede pública de saúde.
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A mesma pergunta - se existe alguma contabilidade atualizada de qual o número de obstetras e ginecologistas que apresentaram objeção de consciência à IVG por vontade da mulher até às 10 semanas; se alguma vez, desde 2007, a tutela efetuou alguma; se, não havendo tal contabilidade, foi feita alguma estimativa dessa realidade - foi endereçada pelo DN ao ministério da Saúde há mais de duas semanas, não tendo até agora o jornal recebido qualquer resposta.
Parece pois lícito concluir que, apesar de a objeção de consciência ser o motivo apresentado por 13 dos 44 hospitais da rede pública para não efetuarem IVG, o ministério da Saúde não tem qualquer informação ou sequer estimativa sobre o número de objetores no SNS - e não se terá até muito recentemente interessado em obtê-la.
De facto, tal informação estará a ser coligida apenas neste momento, segundo foi anunciado pelo inspetor-geral das Atividades em Saúde (IGAS), Carlos Carapeto, no âmbito da auditoria sobre IVG que esta inspeção iniciou em março.
"Uma das perguntas que queremos ver respondida é: porque é que existem tantos estabelecimentos onde não se faz IVG?", disse o dirigente aos deputados, quando esteve a ser ouvido na mesma comissão a 1 de março, adiantando que o facto de a objeção de consciência ser o motivo legal para a não prestação, pelos hospitais, do serviço de IVG impõe que a IGAS efetue uma verificação do cumprimento das regras administrativas a ela associadas. Regras que, como já mencionado, impõem que uma declaração escrita seja entregue às direções clínicas ou às direções de departamento.
Hospitais não estão a exigir declarações aos objetores?
Sucede porém que, de acordo com informação recolhida pelo DN, há hospitais nos quais há muito que as declarações de objeção não são pedidas/entregues por escrito. Isto mesmo foi afiançado ao jornal por uma responsável da área da obstetrícia num estabelecimento de saúde do SNS e que prefere não ser identificada.
"Logo no início da aplicação da nova lei foram pedidas essas declarações, mas há muito que não as pedem", disse ao DN esta clínica, que confirma que o questionário da IGAS inclui perguntas sobre o número de objetores.
Como será então declarada e contabilizada a objeção de consciência dos médicos que entraram ao serviço ao longo dos quase 16 anos que decorreram desde a introdução da nova lei? E como poderão as direções clínicas e as administrações hospitalares determinar o encerramento das consultas de IVG com base no número de objetores ao seu serviço se, atendendo ao afirmado pela médica citada, as normas não estão a ser cumpridas?
Por outro lado, se a inspeção da IGAS é efetuada através de um questionário, estará em condições de avaliar se as declarações de objeção foram assinadas atempada e regularmente? E será que o relatório da IGAS, o qual segundo anunciado estará disponível em abril, coteja a data das declarações com a entrada ao serviço dos médicos e o encerramento - se foi o caso - da consulta da IVG em cada unidade?
Outra questão interessante é a de saber se a abordagem e o método investigativo da IGAS coincide com o da Entidade Reguladora da Saúde, cujos responsáveis - o presidente António Pimenta Marinho e os vogais Mariana Mota Torres e Franklin Marques - foram também ouvidos, na passada semana, na comissão de saúde parlamentar sobre o acesso ao aborto legal no SNS, tendo anunciado a decisão, tomada a 9 de março, de iniciar "um processo de monitorização", incidindo sobre "todos os prestadores de saúde", em relação à forma como a lei que permite a interrupção da gravidez está a ser cumprida.
"Determinámos fazer um estudo sobre a IVG mais aprofundado, que divulgaremos no mês de maio, e pode servir de apoio às decisões dos responsáveis políticos", disse o presidente da ERS. "Vamos ter uma ideia real do que existe e das medidas possíveis."
Ordem também não sabe quantos objetores há?
Confirmando terem sido detetadas, ao longo dos últimos anos, violações da lei no que se refere ao acesso à IVG no SNS, Pimenta Mariano adiantou que na sequência da investigação deste jornal o regulador criou um novo indicador especificamente para a IVG. E que uma das matérias de interesse da monitorização em curso é o número de objetores à IVG, pelo que a ERS requereu à Ordem dos Médicos (OM) que comunique quantos são.
O presidente da ERS exprimiu também estranheza perante a possibilidade de que a objeção de consciência possa abarcar todos os atos médicos necessários ao atendimento das mulheres que querem fazer uma IVG: "Parece-nos que os médicos não podem ser objetores de consciência para todas as atividades, como as ecografias, etc".
Curiosamente, também o DN requereu à Ordem dos Médicos informação sobre o número de objetores. Efetuado a 1 de março, e acompanhado de outras perguntas sobre objeção de consciência, esse pedido não obteve até agora resposta. O que poderá indiciar que também esta entidade não tem tal registo.
De resto uma das questões colocada pelo DN à OM é sobre se esta, à imagem da Ordem dos Enfermeiros (OE), exarou um regulamento atinente à objeção de consciência, já que não foi possível encontrar nada nesse sentido (o Código Deontológico dos médicos limita-se, sobre objeção de consciência, a estabelecer, no seu artigo 37º, que "o médico tem direito de recusar a prática de ato da sua profissão quando tal prática entre em conflito com a sua consciência moral, religiosa, ou humanitária, ou contradiga o disposto neste Código").
No regulamento da OE, publicado em 2017, estabelece-se que a objeção de consciência deve ser sempre comunicada ao Presidente do Conselho Jurisdicional Regional da Secção da Ordem onde o enfermeiro está inscrito, no prazo de 48 horas após a respetiva declaração. O DN também quis saber se é requerido aos médicos que comuniquem a respetiva objeção à OM - outra pergunta sem resposta um mês depois.
Não será pois esdrúxulo concluir que o número de objetores de consciência existente em Portugal, informação considerada fundamental pelas duas entidades públicas, IGAS e ERS, que estão a avaliar o acesso à IVG no SNS, é neste momento uma incógnita quer para as autoridades de saúde quer para a própria Ordem.
A ser assim, a única contabilização conhecida de objetores para a IVG tem mais de dez anos. Data de 2011 e foi tornada pública, precisamente, pela OM. Existiriam então "1341 clínicos objetores", dos quais "934 médicos de medicina geral e familiar e 407 ginecologistas obstetras", o que corresponderia, à época, respetivamente, a cerca de 27% dos obstetras e um pouco menos de 19% dos médicos de medicina geral e familiar.
Itália tem registo nacional - e público - do número de objetores
Em contraste, por exemplo em Itália existe um registo nacional de objetores de consciência para a IVG, que é publicado todos os anos e que permite avaliar, a nível nacional e regional, a variação no número de clínicos que assim se declaram. Essa variação evidencia que o número de objetores tem vindo a aumentar desde 1997, e que há regiões do país, nomeadamente no sul, onde atinge os 85% entre obstetras e ginecologistas.
Apesar de as autoridades de saúde do país garantirem que essa percentagem não põe em causa o acesso das mulheres à IVG, várias instituições internacionais, incluindo o Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas e o Comité Europeu dos Direitos Sociais, alertaram na última década para as dificuldades de acesso à IVG legal em Itália.
De acordo com um estudo da Universidade Bocconi, Milão, publicado em 2020, "a evidência empírica sugere que a objeção de consciência dificulta o acesso ao aborto a nível local. Impõe períodos de espera mais longos e distâncias mais longas, e portanto impõe custos mais elevados às mulheres que querem interromper a gravidez. A evidência também sugere que as mulheres de regiões mais pobres ou que sofrem de outro tipo de desvantagem económica experimentam maiores dificuldades de acesso ao aborto."
Às mesmas conclusões sobre a realidade portuguesa chegou Miguel Areosa Feio, na sua tese de mestrado de 2019 O Silêncio das Inocentes - Objeção de Consciência e Outras Barreiras na Implementação da Interrupção Voluntária de Gravidez, e num estudo académico subsequente (Lei do aborto em Portugal: barreiras atuais e desafios futuros), de 2021.
Entre as conclusões do seu trabalho, este académico evidencia a "falta de regulação da objeção de consciência" que, "através de mecanismos que não se coadunam com a responsabilidade e universalidade do SNS, indisponibilizam o procedimento nos serviços públicos do local onde residem as mulheres e colocam-nas em situações de vulnerabilidade e desfavorecimento." Ao mesmo tempo, escreve Areosa Feio, que a objeção de consciência "promove constrangimentos múltiplos no acesso aos serviços de aborto", a sua desregulação "faz com que alguns serviços se façam valer desse direito dos seus profissionais para fechar consultas de IG agravando o problema."
Esta desregulação, à qual, como já mencionado, o presidente da ERS aludiu quando falou, no parlamento, dos atos a cujo desempenho os médicos não devem poder objetar - como o efetuar das ecografias necessárias ao processo da IVG, por exemplo - tem sido acompanhada uma total ausência de monitorização, a qual derivará também da inexistência de normas reguladoras.
Em maio de 2022, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa adotou uma resolução sobre o acesso ao aborto legal, na qual considera que a negação de acesso ao aborto seguro pode constituir tortura ou tratamento cruel, desumano e degradante, e exorta os estados membros a tomarem as medidas necessárias para que a obstrução do acesso das pessoas a aborto legal ou à informação relevante sobre o mesmo é proibida e sancionada criminalmente ou de outra forma.
A mesma resolução recomenda aos estados que providenciem informação sobre aborto e assegurem o acesso efetivo ao aborto legal, quando consagrado na legislação nacional. A resolução insta ainda os estados a certificar que a objeção de consciência, quando prevista na lei, nunca restrinja o acesso real e em tempo ao aborto legal.