"Ainda estamos a trabalhar os dados provisórios de 2022, mas pode-se confirmar a existência de um acréscimo"..A declaração é de Dina Oliveira, chefe de Divisão da Saúde Sexual, Reprodutiva, Infantil e Juvenil da Direção-Geral de Saúde (DGS), depois de confrontada com o aumento expressivo, noticiado pelo DN esta quarta-feira, de abortos em três dos países da Europa ocidental que já publicaram números de 2022 - Alemanha (mais 9,9%), Noruega (mais 10%) e Reino Unido (mais 17% em Inglaterra e Gales, no primeiro semestre de 2022, e mais 19% na Escócia, no ano todo) -, assim como com as certificações, por parte de médicos de consultas de interrupção de gravidez (IG) em hospitais portugueses, de que houve no ano passado uma subida na procura..No Hospital de Santa Maria, como este jornal referira já em fevereiro, o número de IG disparou em 2022 face a 2021 - o ano em que se tinha verificado no país a contabilidade mais baixa desde a legalização..Este estabelecimento de saúde da capital registou uma subida de 35%, de 630 para 841 IG, de um ano para o outro. Ainda de acordo com a informação prestada pelo hospital ao jornal, no início de 2023 continuava a notar-se "uma procura muito elevada" - tão elevada que o hospital tinha, em fevereiro, marcado uma consulta para depois do prazo legal de 10 semanas a uma mulher que o contactara e que teve de se dirigir a uma clínica privada..Uma afluência mais elevada em 2022 que em 2021 foi também garantida ao DN por médicos de três consultas de interrupção de gravidez - em Lisboa, Coimbra e no norte do país..Advertindo para o facto de a DGS ainda estar a analisar os dados, Dina Oliveira vê para já uma divergência portuguesa face ao ocorrido pelo menos na Noruega e Escócia: "Não se prevê aumento no grupo das adolescentes.".Também Maria José Alves, responsável pela consulta de gravidez não desejada da Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, garante ao DN não ter notado que houvesse mais adolescentes (menores até 19 anos) a procurar esta consulta em 2022..O mesmo diz Teresa Bombas, do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, no qual existe também uma consulta de interrupção de gravidez: "Em termos de idade não notei diferenças. Em Coimbra temos uma população muito jovem, por causa da Universidade, e não houve maior afluência dessa população.".Um coordenador da consulta de um hospital nortenho corrobora ao jornal a impressão das colegas: "Não noto que tenha havido mais jovens com menos de 19.".Em 2021, a taxa de aborto nas adolescentes em Portugal (número de IG por mil adolescentes) foi de 3,8, correspondendo a 1001 interrupções..Na Noruega, onde como em Portugal esta taxa vinha a descer desde a legalização da IG a pedido - que ali ocorreu em 1978 -, quando o segmento etário onde se verificaram mais abortos foi precisamente o dos 15 aos 19 anos (em 1980, a taxa de aborto adolescente foi de 22,5), verificou-se em 2022, com 864 IG, uma taxa de 5,5 nas adolescentes, que face à de 2021 (4,6) corresponde a um aumento de 20% e um regresso ao valor de 2018 (que foi exatamente de 5,5)..Na Escócia (5,5 milhões de habitantes), houve 2013 IG nas jovens dos 15 aos 19. Destas, 114 IG ocorreram em jovens abaixo dos 16, e 1899 dos 16 aos 19. Nesta última faixa etária, a taxa de aborto de 2022 é 17,2, a terceira mais elevada, atrás do segmento dos 25 aos 29 anos (22,3) e dos 20 aos 24 (27,4). Em 2021 a taxa de aborto nas adolescentes fora de 13, tendo assim registado um aumento de 31%..Não foi possível encontrar números comparáveis (com os mesmo intervalos etários) relativos à taxa de IG em adolescentes na Alemanha. Sabe-se porém que em 2022 contabilizaram-se ali 2728 em adolescentes abaixo dos 18 anos, quando em 2020, ano pandémico, tinham sido 2694; já em 2018 foram 2746, ou seja, parece ter-se naquele país regressado a valores pré-pandemia..Também na Suécia, que é um dos países da Europa ocidental com mais elevada taxa de aborto - em 2021, quando se contabilizou ali o menor número de IG desde 2002, essa taxa foi de 17,8, subindo em 2022 para 18 -, mas onde se tem vindo a verificar uma queda na IG adolescente (em 2006 era de 25 por mil) se registou uma subida na taxa nesse segmento, embora muito ligeira: de 8,26 para 8,65 (de 2366 IG entre 15 e 19 anos para 2529), correspondo a mais 4,7%..Além do aparente não aumento das IG nas adolescentes, Portugal contrasta, face aos quatro países referidos, na evolução da natalidade, que aumentou 5,5% em 2022 face a 2021: na Noruega desceu 8%, na Alemanha 0,9%, na Suécia registou-se o número de nascimentos mais baixo desde 2005, com uma queda de 8,3% face a 2021, e na Escócia foi de menos 1,7% (não há ainda números respeitantes a Inglaterra e Gales). Houve aliás uma quebra de natalidade na generalidade da Europa ocidental, surgindo Portugal em contraciclo..Não há até agora, da parte das autoridades dos três países que registaram um disparar no número de abortos em 2022, uma explicação estruturada para o aumento. Mette Løkeland-Stai, do Instituto de Saúde Pública da Noruega, diz não ser ainda possível dizer "se se trata de uma mudança de tendência ou apenas um resultado temporário da pandemia"; no site do governo federal alemão onde foram publicados os números de 2022, lê-se: "Os dados disponíveis não permitem identificar uma causa óbvia para este forte aumento.".Mas especialistas britânicos, em declarações aos media, relacionam o disparar dos abortos no país com as dificuldades económicas associadas à subida da inflação - na Escócia, houve mais do dobro dos abortos nas zonas deprimidas economicamente - e com um menor recurso a métodos contracetivos hormonais e de longa duração (como o DIU ou os implantes), que atribuem a cortes orçamentais nos serviços de saúde..Segundo o grupo de saúde sexual e reprodutiva do Colégio Britânico de Obstetrícia e Ginecologia, mais de oito milhões de mulheres em idade fértil vivem em áreas do Reino Unido nas quais os serviços de contraceção regionais (que deixaram de ser financiados pelo Serviço Nacional de Saúde e são geridos localmente pelas autarquias) fecharam ou sofreram cortes muito pronunciados..Também Mette Løkeland-Stai refere o facto de os media noruegueses terem noticiado recentemente um declínio no uso de contraceção hormonal pelas jovens, com a Associação de Farmacêuticos do país a confirmar uma diminuição na taxa de utilização de contracetivos..Sublinhando que a DGS está ainda a analisar os dados, Dina Oliveira lembra que este tipo de fenómeno é "multifactorial": "O decréscimo de 2020 e 2021 tem de ser enquadrado no contexto da pandemia, e o aumento que parece estar a verificar-se em vários países no pós-pandemia pode ser enquadrado com a existência de uma guerra, a inflação, o aumento do custo de vida...".É precisamente o contexto económico que surge a Teresa Bombas, do Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra e presidente do Comité do Aborto Seguro da Federação Internacional de Ginecologistas e Obstetras (FIGO), como muito importante nas decisões que as mulheres tomam: "Nas que comentam o motivo para abortar, há uma relação clara com a causa económica. O número de filhos que a família comporta está subjacente à maioria das decisões.".Já Maria José Alves, da Maternidade Alfredo da Costa, vê problemas no acesso a contraceção eficaz como outra das possíveis causas: "A pandemia afastou um pouco as pessoas de certos cuidados de saúde, as mulheres podem ter deixado de ir às consultas de planeamento familiar e algumas até fecharam. E tem havido uma má reposição de stocks de contracetivos em algumas ARS (Áreas Regionais de Saúde), nomeadamente em Lisboa e Vale do Tejo, que não compram certos tipos de contracetivos, por questões financeiras, por acharem que são muito caros.".Por outro lado, adverte esta obstetra, "os métodos de longa duração como o Dispositivo Intrauterino (DIU) e o implante - os mais eficazes para evitar a gravidez não desejada - têm de ser colocados por um especialista, e podem faltar nos centros de saúde pessoas com essas competências.".Ainda não foram publicados os dados nacionais relativos a 2022 quanto ao "acompanhamento adequado na área do planeamento familiar " para mulheres em idade fértil, mas o último relatório anual de Acesso a Cuidados de Saúde nos Estabelecimentos do SNS e Entidades Convencionadas dá a ver, no que esse acompanhamento respeita, um panorama pouco animador..Entre 2019 e 2021, a percentagem desta população (mulheres dos 15 aos 50) coberta por este cuidado de saúde desceu em todas as regiões do continente, de 35,8% para 28,3%; a zona com melhor cobertura é o norte, que passou de 47,9% para 39,2%; Lisboa e Vale do Tejo, sendo a região mais populosa, foi em 2021 a segunda com menos cobertura (20%, apenas à frente da ARS Algarve - 19%), descendo de 27,9% em 2019..Na Noruega, no site do Instituto de Saúde Pública, os dados sobre IG de 2022 são acompanhados de uma explicação sobre "medidas preventivas". Nesta, sublinha-se o facto de ser uma prioridade das autoridades prevenir gravidezes não desejadas, dando-se particular importância ao acesso, desde cedo, a contracetivos eficazes.."Focámo-nos especialmente nos grupos mais jovens, para os quais temos medidas como contraceção subsidiada, preservativos grátis, uma linha de apoio grátis sobre sexualidade, fortalecimento do serviço de saúde nas escolas e centros de saúde específicos para jovens", lê-se na página do Instituto de Saúde Pública Norueguês. "Constatou-se que uma das principais razões para a descida [até 2021] nas interrupções de gravidez nas jovens se deveu à contraceção subsidiada e ao facto de os jovens manterem o seu comportamento contracetivo na idade adulta. É interessante registar que a tendência para a descida no abandono escolar também ocorreu no segmento etário dos 20 aos 24. Vários estudos demonstram que é especialmente com o uso de contraceção de longa duração como o DIU ou o implante que se vê o efeito no número de abortos. No registo de prescrições, o número de prescrições para, por exemplo, implantes contraceptivos cresceu exponencialmente nos últimos anos.".No relatório português citado, o Programa Nacional de Saúde Reprodutiva-Planeamento Familiar não se encontra no capítulo dos "programas de saúde prioritários", mas no de "Outros programas e iniciativas de saúde"..Para Maria José Alves, é, precisamente, fundamental que esta área não seja descurada e seja vista como prioritária.."Caso se confirme em Portugal uma subida semelhante à ocorrida nesses outros países europeus, tem de se perceber o que aconteceu em 2022, e fazer desta questão prioridade", diz esta médica, que foi uma das caras da luta pela legalização do aborto em Portugal. "Os dados servem para tentarmos perceber o que podemos fazer melhor - é para isso que servem."