Hospital de Santa Maria assume erro e vai custear as despesas do aborto de Camila

Camila contactou o Hospital de Santa Maria a 3 de fevereiro, comunicando estar grávida de oito semanas. Disseram-lhe que só podiam marcar consulta para 23 - já após o prazo legal de 10 semanas. Foi obrigada a dirigir-se ao privado e pagar do seu bolso a IVG. Agora, o hospital assume o erro e vai custear procedimento.

"A sério? Não estava nada à espera. Estou muito admirada, mas contente com o facto de que o hospital, apesar de me ter desiludido, faça isto. E espero que isto signifique uma mudança. Que ter contado o que me aconteceu sirva para alguma coisa."

É assim que Camila reage quando o DN lhe liga a informar que o Hospital de Santa Maria, perante o seu relato ao DN e a publicação dos mails que trocou com o hospital, desde o dia 3 de fevereiro, informando estar grávida de oito semanas e desejar interromper a gravidez, e recebendo como resposta que só tinham consulta para dia 23, decidiu custear o procedimento que se viu obrigada a fazer no privado, na Clínica dos Arcos, esta quarta-feira.

"Este processo assim fica mais leve para mim. Em vez de arrumar o processo numa gaveta preta, arrumo numa gaveta verde, de esperança" prossegue Camila. "É sinal de que há esperança de que as coisas mudem, de que as mulheres que os contactem não passem pelo que eu passei. Que façam as contas e marquem as consultas e ecografias em tempo e que não deixem acontecer com mais ninguém."

Em comunicado enviado ao DN, o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN) diz lamentar o caso, e assegura que este "merecerá detalhada análise interna para que situações semelhantes não voltem a suceder, estando disponível para custear todas as despesas da intervenção".

O hospital sublinha, como tinha feito já em resposta às perguntas colocadas pelo jornal, que recebe mulheres de todo o país, e que registou "um grande aumento de procura de consultas de Interrupção Voluntária da Gravidez nas últimas duas semanas. Procura muito elevada que já se tinha verificado no ano passado, sendo de referir que os seus meios e recursos humanos são os mesmos."

Assumindo que "a resposta nesta área é por regra garantida internamente, por profissionais do CHULN", adianta também, como já fora explicado ao jornal pelo diretor do departamento de obstetrícia, Diogo Ayres de Campos, que "quando tal não é possível, está protocolada resposta externa com uma entidade convencionada."

Este protocolo, explica o comunicado, "é acionado com o objetivo de que situações como a descrita pelo Diário de Notícias não sucedam."

Por outro lado, Ayres de Campos garantiu ao DN que "quando alguém aparece muito perto da data limite, o protocolo interno especifica que a situação deve ser tratada como urgente", assumindo assim que a resposta dada a Camila não seguiu o protocolo do hospital: "Não foi a resposta de acordo com o protocolo. Claramente que não. Havendo a suspeita de oito semanas é impensável marcar para dia 23."

"Se tivermos uma participação, vamos fazer um inquérito interno"

Garantindo "ser a primeira vez que se depara com uma situação destas" desde que é responsável pelo serviço (dirige-o desde o início de 2022), o médico não sabe explicar por que motivo, se o protocolo é tão claro, a pessoa que atendeu Camila não tratou a situação como urgente. "Esforçamo-nos para dar formação às pessoas, relembrar e tudo isso. Temos um protocolo escrito muito claro em relação a isso, que fornecemos a todos os nossos administrativos, sabendo para além do mais que é um tema extremamente delicado. Mas infelizmente nem sempre as pessoas respondem de acordo com aquilo que são as instruções. Se tivermos uma participação, vou obviamente fazer um inquérito interno."

Na verdade o protocolo, que Diogo Ayres de Campos enviou ao jornal, diz: "Se o tempo de gravidez for igual ou superior a nove semanas, o agendamento da primeira consulta deve ser considerado urgente." Donde se pode concluir que a administrativa que atendeu Camila talvez tenha seguido o protocolo demasiado à risca: oito semanas não está ali indicado como urgente.

Sendo que marcar uma primeira consulta de IVG para mais de dez dias depois do primeiro contacto com o hospital (no caso, 20 dias, ou seja, o quádruplo do imposto legalmente) incumpre a lei em qualquer circunstância - incumpriria ainda que a idade gestacional da gravidez em causa fosse quatro semanas, quanto mais às oito. Tal não pode ser assacado à administrativa que trocou mails com Camila, mas à organização do hospital.

Recorde-se que, questionado pelo jornal, com base no caso de Camila, sobre se considerava estar a cumprir o disposto legalmente no que respeita ao prazo máximo de cinco dias para a marcação da consulta de IVG - algo que a investigação do DN, cuja publicação se iniciou neste sábado, indicia não estar a acontecer em vários hospitais públicos -, o hospital não assumiu de imediato estar a violar a lei, dizendo: "O CHULN garante que as suas equipas trabalham e tudo fazem para assegurar que a resposta a esse direito das mulheres seja dada dentro de um prazo clinicamente adequado."

Hospital conta só dias úteis no prazo para consulta - lei fala em dias corridos

Acresce que, perguntado sobre qual a média de dias entre o primeiro contacto com o hospital e a consulta, o CHULN afirma que este foi em 2022 de 6,91 dias úteis e que em 2023 aumentou para 7,52 dias úteis. Mas a lei não fala em "dias úteis" - talvez porque a gravidez não salta sábados, domingos e feriados. A explicação pelo hospital dada para esta contabilidade é de que se baseia "nos dias em que há consulta". Fica-se assim sem se saber qual o prazo real médio verificado neste hospital entre o primeiro contacto e a consulta. E se a média nacional publicada nos relatórios da Direção-Geral de Saúde sobre IVG, e que segundo o último, conhecido em junho de 2022 e dizendo respeito ao período de 2018 a 2021, era de sete dias, diz respeito afinal a "dias úteis" ou, como a lei e o mero bom senso impõem, se refere a dias corridos.

No comunicado, como na resposta às perguntas do DN, o hospital informa que efetuou 851 IVG em 2022, mais 35% (221) que em 2021, sendo a idade gestacional média no momento da interrupção de oito semanas.

Já este ano contabilizou 91 IVG (66 em janeiro e 25 até esta quarta-feira). O número destes atos médicos em 2022 também registou um incremento, ainda que menor que o verificado face a 2021, em relação ao último ano pré-pandemia (2019), no qual se realizaram ali 766 IVG.

Em reação à investigação do DN, o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, começou por dizer que desconhecia situações como as relatadas pelo jornal, para depois admitir que a tutela tem conhecimento de entraves ao direito à IVG consagrado na lei e que vai resolver. De acordo com declarações de Pizarro esta terça-feira à Associação da Imprensa Estrangeira, esses entraves são muito fáceis de resolver: "O que vamos fazer? É fácil: vamos identificar exatamente quais são os sítios e vamos fazer com que haja consultas. E isso vai ser rápido, não é preciso comissões de inquérito nem grupo de trabalho; é fácil: vai passar a haver consultas nos centros onde não havia e eu daqui a umas semanas vou cá estar para prestar contas."

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