Disciplina de cidadania. Esquerda fala em retrocesso na educação sexual e critica “amarras ideológicas”
"Retrocesso". Esta é a palavra mais usada para os partidos de Esquerda se referirem às alterações que o Governo pretende fazer na disciplina de Cidadania. O novo guião dedica menos atenção a temas como a sexualidade ou bem-estar animal e mais à literacia financeira ou ao empreendedorismo.
O PS acusou esta terça-feira, 22 de julho, o Governo de querer fazer o país “retroceder mais de 40 anos” na educação sexual, apelando à mobilização de toda a sociedade civil para impedir estas alterações de “extrema gravidade” na disciplina de Cidadania.
“O Governo prepara-se para tomar uma decisão que o PS considera muito grave em matéria de educação para a cidadania e de educação sexual. A primeira vez que este parlamento aprovou uma lei sobre este assunto foi em 1984 e, portanto, estamos a falar de um recuo de décadas na valorização dos direitos humanos, da educação das nossas crianças, da educação sexual”, criticou a vice-presidente da bancada do PS, Mariana Vieira da Silva, em declarações aos jornalistas no parlamento.
Segundo a deputada do PS, “é de extrema gravidade que o Governo pretenda dar um passo” que fará o país “retroceder mais de 40 anos” numa altura em que em todo o mundo há “um agravamento das desigualdades entre homens e mulheres e, em particular, entre rapazes e raparigas”.
“Está em vigor uma lei desta Assembleia da República de 2009 que obriga a que, nas escolas, a educação sexual seja parte quer dos programas das disciplinas quer depois da educação para a cidadania. Podemos estar a ver o início de um processo de agravamento de crises de saúde pública em Portugal muitíssimo grave”, alertou.
Apelo à mobilização
O apelo do PS, segundo Mariana Vieira da Silva, é que toda a sociedade civil participe na “curta discussão pública” que o Governo preparou sobre o tema, que decorre até 01 de agosto.
“Que todos nos mobilizemos para garantir que direitos humanos, direitos sexuais e reprodutivos, direito à educação sexual não são algo do passado nas nossas escolas, mas são algo do presente e do futuro”, pediu.
A deputada do PS referiu que, daquilo que é do seu conhecimento, “o Governo não mudará nada na lei”, o que significa que “o programa que vai aprovar não cumprirá a lei aprovada em 2009”.
De acordo com Mariana Vieira da Sila, nesta “nova fase” do Governo da AD, “é surpreendente, preocupante e mais um sinal de uma clara aproximação à agenda do Chega” que o executivo de Luís Montenegro se aproxime “dos discursos mais radicais nestas matérias, que põe em causa consensos nacionais com décadas e trabalho que é feito nas escolas e nos centros de saúde”.
Já sobre o relatório da inspeção-geral da saúde que concluiu que um utente que morreu de enfarte, em outubro, em Bragança, após o INEM demorar 1:20 a chegar, poderia ter sobrevivido se o socorro fosse imediato, a socialista disse que há ainda oito relatórios em falta.
"Mas desde fevereiro, desde que a Inspeção Geral das Atividades em Saúde confirmou que mais de metade das chamadas ficou por atender, que para o PS as responsabilidades políticas deviam ser tiradas por parte da ministra da Saúde", reiterou.
Também aos jornalistas, a dirigente do BE Joana Mortágua apelou a um “grande movimento” de pais e comunidades escolares contra estas alterações.
“Não podemos permitir que o Governo instrumentalize os direitos das crianças para disputar votos com a extrema-direita e com o Chega. A educação sexual é essencial para prevenir o abuso sexual de menores, a educação sexual é essencial para respeitar os direitos das crianças”, salientou a ex-deputada.
Joana Mortágua realçou que “a educação sexual é um direito humano de todas as crianças e dos jovens” e acusou o executivo de estar a legitimar “teorias da conspiração da extrema-direita sobre os conteúdos da educação sexual, atropelando tudo o que são as boas práticas, as recomendações internacionais, tudo o que é científico".
“As crianças ou aprendem sobre estes conteúdos fundamentais na escola acompanhadas por profissionais ou então vão aprendê-los no TikTok com influencers, muitas vezes que não respeitam e violam os direitos das mulheres e que têm perspetivas não saudáveis sobre estas matérias”, alertou.
Livre critica "amarras ideológicas"
O Livre, por seu lado, acusou o Governo de ceder à extrema-direita e direita conservadora ao “colocar amarras ideológicas” na disciplina de Cidadania, e o PCP criticou “um retrocesso” que revela “conceções políticas e ideológicas” de PSD e CDS.
Em declarações aos jornalistas na Assembleia da República, a deputada do Livre Filipa Pinto disse que o partido “vê com preocupação” a retirada de conteúdos da disciplina de cidadania e apontou “uma alteração na posição” do ministro da Educação.
“Parece-nos que aqui a intenção do ministro de retirar as amarras ideológicas à disciplina de cidadania revela-se o contrário. Está precisamente a colocar amarras ideológicas numa disciplina que não tinha nada de ideológico, e está a fazê-lo para ceder às pressões da direita conservadora e da extrema-direita”, criticou.
Para Filipa Pinto, estas alterações são ainda mais preocupantes numa altura em que aumentam os casos da violência no namoro ou da violência doméstica, uma vez que estes são temas abordados nesta disciplina neste momento.
“Consideramos que isso é um retrocesso, achamos que o senhor ministro devia repensar essa questão. Eu sei que a disciplina está em consulta pública, mas parece-nos que não será nada incorporado que seja no sentido contrário a este que o senhor ministro revelou”, lamentou.
Por sua vez, a líder parlamentar do PCP, Paula Santos, considerou que as alterações à disciplina da Cidadania propostas pelo Governo são “um retrocesso” e revelam as “conceções políticas e ideológicas do PSD e do CDS”.
Defendendo que a educação sexual é de “grande importância” para proteger a saúde dos jovens, incluindo para prevenir doenças sexualmente transmissíveis e evitar gravidezes precoces, Paula Santos acusou o Governo de estar a colocar tudo isso em causa por “uma questão de opção política e ideológica”.
“A educação sexual já hoje está na legislação portuguesa. O problema é que não está a ser efetivada em todas as escolas. E, portanto, estas opções e o que vem a público e está em consulta pública gera grandes preocupações”, disse.
Já a porta-voz do PAN, Inês Sousa Real, manifestou “muita preocupação” com o que considerou ser um “grave retrocesso” na disciplina de Cidadania, acusando o executivo de estar a desproteger os mais jovens, num contexto de aumento da violência no namoro, e de estar a ceder “à agenda populista da extrema-direita”.
“Luís Montenegro fez-se um noivo bastante difícil. Inicialmente era ‘não é não’, mas, pelos vistos, não resistiu ao namoro de André Ventura e do ‘não é não’, passámos de um ‘talvez’ para um ‘sim’”, ironizou e disse não saber quando haverá um “convite para o casamento”.
As matérias relacionadas com a identidade de género vão ficar de fora nas novas Aprendizagens Essenciais para a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento por serem demasiado complexas, justificou na segunda-feira o ministro da Educação, Ciência e Inovação.
A nova Estratégia Nacional para a Educação para a Cidadania (ENEC) e as Aprendizagens Essenciais para a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento entraram em consulta pública e o novo guião dedica menos atenção a temas como a sexualidade ou bem-estar animal e mais à literacia financeira ou ao empreendedorismo.
Há duas semanas, quando o Ministério anunciou as alterações à disciplina em conferência de imprensa, o secretário de Estado Adjunto e da Educação, Alexandre Homem Cristo, explicou que, no que respeita aos temas, seria feita uma reestruturação sem que “nenhum fosse deixado cair”.
Até agora, a disciplina contava com 17 domínios, incluindo alguns mais polémicos como a igualdade de género ou sexualidade, mas nem todos eram obrigatórios.