Vários “notáveis” do PSD, com  Cavaco e Passos à cabeça,  assinaram em 2020 uma carta na qual exigem o fim da obrigatoriedade da disciplina de Cidadania. Em causa, os conteúdos relacionados com a sexualidade.
Vários “notáveis” do PSD, com Cavaco e Passos à cabeça, assinaram em 2020 uma carta na qual exigem o fim da obrigatoriedade da disciplina de Cidadania. Em causa, os conteúdos relacionados com a sexualidade.FOTO: Gerardo Santos

Educação para a Cidadania: afinal, as “amarras ideológicas e de fação” chamam-se educação sexual

Montenegro proclamou a revisão da disciplina de Cidadania como uma das grandes opções do Governo, para a libertar de “amarras ideológicas e de facção” - mas recusou dizer do que fala. Coube ao ministro da Educação explicar: apontou “a educação sexual”, que “gera algum mal estar em algumas famílias”.
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Afinal, era a educação sexual. As “amarras ideológicas e de fação” das quais Luís Montenegro jurou este domingo, no Congresso do PSD, libertar a disciplina de Educação para a Cidadania, numa afirmação que ergueu os delegados em aplauso retumbante mas desde então recusou explicar, foram traduzidas esta segunda-feira pelo seu ministro da Educação. Questionado por jornalistas à margem de uma reunião no ministério, esta segunda-feira, Fernando Alexandre, hesitante e a contragosto - chegou mesmo a desvalorizar o tema, dizendo que “não é o tema mais importante no sistema educativo” -, acabou por falar da “área de educação sexual, por exemplo”.

Será então a educação sexual, que o ministro da Educação afirmou gerar “mal-estar em algumas famílias”, aquilo a que Luís Montenegro apelida de “amarras ideológicas e de facção”: diz Fernando Alexandre que se trata de “matérias, como na área da educação sexual, que não têm sido consensuais” sobretudo por “serem lecionadas nos primeiros anos de escolaridade”.

Uma ideia que ao fim da tarde a deputada Ana Gabriela Cabilhas reiterou na SIC-N, quando questionada sobre as tais amarras da tal facção: “Vimos nos últimos tempos, no que diz respeito à educação sexual, que não é um tema consensual para muitos pais - e se não é consensual deve ser revisto”. 

Cabilhas não explicou a que acontecimentos “nos últimos tempos” se refere; também Fernando Alexandre não foi capaz de indicar a que manifestações de “mal-estar de algumas famílias”, ou “famílias preocupadas” aludia

Certo é que o ministro já tinha anunciado a revisão desta disciplina em setembro, tendo agora informado que há uma “equipa de peritos” a efetuar uma análise a esta e outras disciplinas, e que o resultado da análise só deverá ser conhecido em abril/maio de 2025.

O DN questionou o ministério sobre a identidade da equipa, assim como sobre os critérios e parâmetros da análise, tendo querido saber por que motivo, se está a decorrer uma análise, o ministro já anunciou a revisão da disciplina de Educação para a Cidadania

O jornal também perguntou que problemas detetou o ministro nos conteúdos de educação sexual. Lembrando que a educação sexual na escola é, desde os primórdios da democracia, combatida por determinados grupos ou "fações" da sociedade portuguesa, nomeadamente relacionados com a Igreja Católica, que defendem ser esse tipo de informação "monopólio da família", o DN perguntou ainda qual a posição do actual ministro da Educação sobre a matéria - se considera que a educação sexual deve ser obrigatoriamente ministrada na escola, como um direito dos alunos à informação e à saúde, ou devem ser as famílias a decidir o que estes podem saber e quando. Nenhuma destas perguntas teve resposta.

Nas já citadas declarações a jornalistas, esta segunda-feira, Fernando Alexandre asseverou porém não estar em causa tornar a disciplina opcional - “a menos que a avaliação [feita pelos peritos] nos surpreendesse muito”, ressalvou.

O mesmo já fora afirmado pelo seu secretário de Estado Adjunto e da Educação, Alexandre Homem Cristo, em setembro, em entrevista ao Expresso. Questionado sobre, precisamente, o facto de haver pais que consideram que a educação para a sexualidade “não compete à escola”, e portanto quererem retirar os filhos da disciplina, Homem Cristo respondeu de forma taxativa: "As disciplinas do currículo são obrigatórias. Os pais não podem escolhê-las nem decidir sobre os seus conteúdos.” 

Na verdade, a afirmação de Homem Cristo surge algo contraditória face ao que o ministro disse esta segunda-feira: afinal, Fernando Alexandre apresenta, antes da conclusão dos peritos contratados para a avaliar a disciplina, a “preocupação” das famílias como motivo da deliberação de a rever

O caso “Mesquita Guimarães” e a carta de Cavaco e Passos

Que preocupação e que famílias? 

Aquilo que desde logo se recorda a propósito de preocupações com a Educação para a Cidadania e a educação sexual é a carta “Em defesa das liberdades de educação” na qual em setembro de 2020 Cavaco Silva e Passos Coelho, entre várias outras “figuras” do PSD e do CDS como Mira Amaral, Manuela Ferreira Leite, Rui Machete, Adriano Moreira, Bagão Félix e Ribeiro e Castro, mais o socialista Sérgio Sousa Pinto, o então cardeal patriarca de Lisboa Manuel Clemente, a comentadora Maria João Avillez e a jornalista Graça Franco, pugnavam por aquilo a que apelidavam de “objeção de consciência de mães e pais quanto à frequência da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento”. Disciplina cujos conteúdos descreviam como “de facto muito densificados do ponto de vista das liberdades de educação em matéria cívica e moral” não podendo “ser impostos à liberdade de consciência”. 

A carta, recorde-se, surgiu na sequência do caso “Mesquita Guimarães”, o dos adolescentes cujos pais, pertencentes à organização conservadora católica Opus Dei, recusaram que estes frequentassem as aulas obrigatórias de Cidadania, por nelas se incluírem conteúdos relacionados com a sexualidade.

"Não aceito que digam, na escola, que somos uma folha em branco e que um homem e uma mulher juntos são uma construção social. (...) Não aceito que impinjam uma sexualidade ao desbarato porque é enganar as pessoas. Impinjam aos filhos deles, mas nunca aos meus", disse, em entrevista, o progenitor, para justificar a sua posição - que acabaria por chegar à barra dos tribunais.

Na mesma altura, foram lançadas várias petições visando o fim da obrigatoriedade da disciplina. Numa delas, assinada por Nuno Melo (atual presidente do CDS e ministro da Defesa), Telmo Correia (ex-deputado do CDS e hoje secretário de Estado da Administração Interna) e Paulo Núncio (deputado do CDS), exigia-se, em alternativa ao fim da respetiva obrigatoriedade, a “revisão da disciplina”. Reputando-a de “instrumento ideológico ao serviço da esquerda”, no qual “conteúdos consensuais convivem premeditadamente” com “temas ensinados exclusivamente na perspetiva dessa esquerda”, à margem da vontade dos pais e com “propósitos ideológicos”, os subscritores solicitavam que fossem expurgadas da disciplina “as temáticas relativamente às quais a sociedade se mostra profundamente dividida, ou em alternativa, persistindo-se no atual modelo, que a mesma disciplina tenha natureza opcional”.

A “ideologia de género” e o PSD

Um ano antes - em março de 2019 - fora o deputado do PSD Bruno Vitorino a bradar, a propósito de uma palestra de uma associação de defesa dos direitos das pessoas LGBTI numa escola secundária, contra o que designou, num post de Facebook, de “porcaria”. 

Em entrevista ao Expresso, o deputado, que assegurou ter “o apoio da esmagadora maioria dos deputados do PSD”, falou de “uma agenda da extrema-esquerda, devidamente organizada, e que quer impor, desde cedo, uma ideologia de género”. Perante a menção, pela entrevistadora, de que “a expressão e o conceito de ideologia de género são associados à extrema-direita e defendidos por movimentos como o Vox” (o partido Chega ainda não existia), o parlamentar respondeu com uma pergunta: “E?”   

Poucos meses depois, Bruno Vitorino integrava, com Hugo Soares (atual presidente da bancada social-democrata), o grupo de 85 deputados do PSD e CDS/PP que endereçaram ao Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização sucessiva de normas da lei, aprovada em 2018, na qual se estabelecia o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa.

Em declarações à Lusa, um dos deputados signatários, o social-democrata Miguel Morgado, insistia na expressão que a jornalista do Expresso associara à extrema-direita: “A ideologia de género, tal como qualquer outra ideologia, pode ser promovida e discutida no espaço público democrático. Decorre de vivermos em democracia num regime de liberdades. Mas a Constituição muito justamente proíbe que o Estado promova no sistema de ensino a propagação de ideologias, religiões ou doutrinas. É só isso que aqui está em causa na nossa iniciativa: a proteção da escola face às ideologias - no caso desta lei, a de género”.

O Tribunal Constitucional acabou por não analisar o conteúdo da lei, considerando-a inconstitucional por uma “tecnicalidade” - conclui que invadia a esfera de decisão da Assembleia da República. A lei acabaria por regressar sob a forma de projeto de lei, sendo aprovada no parlamento.

No mesmo congresso em que falou de “amarras ideológicas e de fação” a propósito da disciplina de Cidadania, o líder do PSD e da AD - coligação que, note-se, não tem no seu programa eleitoral uma palavra sobre a disciplina em causa, a preocupação com a educação sexual ou com quaisquer matérias relacionadas com aquilo que deputados do PSD presentes (Bruno Vitorino e Hugo Soares) e pretéritos (como Morgado) designam de “ideologia de género” - entronizou Leonor Beleza como vice-presidente do partido. 

Num texto inserto no livro Reflexões sobre a liberdade, Identidades e Famílias, coordenado pela  deputada do Bloco de Esquerda Joana Mortágua, a comentadora Maria Castello Branco e a economista e comentadora Susana Peralta, Leonor Beleza escreveu: “(…) eram tempos [refere-se aos anos 1970, pós 25 de Abril] em que a palavra ‘género’ ainda não era usada (mas o conceito, esse, tinha sido bem identificado por Simone de Beauvoir - On ne naît pas femme, on le devient (…)”.

Traduzindo: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. A frase de filósofa francesa (1908-1986) define a identidade de género como construção social. Ideia pacífica nas ciências humanas que vários membros do partido da feminista veterana Leonor Beleza crismam de "ideologia de género".

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