Daniela Martins, através de uma intimação com o objetivo de proteger os dados das filhas, levou a que a CPI mudasse de nome em janeiro de 2025.
Daniela Martins, através de uma intimação com o objetivo de proteger os dados das filhas, levou a que a CPI mudasse de nome em janeiro de 2025.Foto: Gerardo Santos

Caso Gémeas: Parlamento vota relatório da CPI. PSD, PS e CDS prometem chumbo ao Chega

Termina a CPI em torno das duas crianças tratadas com o medicamento Zolgensma, mas o relatório final está longe de ser consensual. Documento final “não terá como base o relatório do Chega”.
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"Haverá uma maioria que permitirá a aprovação de um relatório final da Comissão [Parlamentar de Inquérito] que respeite a verdade daquilo que se passou na Comissão e que, obviamente, não terá como base o relatório do Chega”, explicou ao DN o deputado do CDS João Almeida, argumentando que este relatório preliminar emitido pelo partido liderado por André Ventura “não respeita a verdade dos factos e o apuramento que foi feito”. Com este chumbo assegurado, há um relatório alternativo, redigido em conjunto pelo PSD e CDS, que, ao contrário do documento do Chega, afasta qualquer envolvimento de Marcelo Rebelo de Sousa no processo. Por fim, o PS vaticina que o relatório do Chega não passará no crivo parlamentar, tendo em conta que a relatora do documento - a deputada do Chega Cristina Rodrigues - passou o relatório para o partido e por conter “muitas conclusões que não têm qualquer adesão aos factos”, defendeu ao DN o deputado socialista João Paulo Correia.

Tudo começou há seis anos, em março de 2019, de acordo com a cronologia que surge no relatório preliminar em torno deste caso elaborado pelo Chega, quando duas meninas, gémeas, nascidas no Brasil a 26 de outubro de 2018 e com progenitora com nacionalidade portuguesa, apresentaram os primeiros sintomas de atrofia muscular espinal tipo 1 (AME).

No mesmo ano, um mês depois, segundo a mesma cronologia, foi feito um agendamento para o consulado português, em São Paulo, para iniciar o processo de obtenção de nacionalidade portuguesa para as duas crianças.

Num exercício de prolepse, depois de um processo que implicou mais de um ano, entre 23 e 25 de junho de 2020 as duas meninas receberam o medicamento Zolgensma, em Lisboa, no Hospital de Santa Maria, com um custo estimado de cerca de 4 milhões de euros, no total, para tratar a AME.

Na verdade, segundo as declarações do presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) constituída de acordo com o requerimento potestativo do Chega, com o objetivo de apurar eventuais interferências políticas neste caso, o valor negociado ficou abaixo dos 2 milhões de euros por criança.

Pelo meio, há e-mails do filho de Marcelo Rebelo de Sousa, Nuno Rebelo de Sousa, que na altura dos factos liderava a Câmara Portuguesa de Comércio de São Paulo, com o objetivo de agilizar o processo de tratamento.

Entre as conclusões do Chega, plasmadas no relatório preliminar, são levantadas dúvidas quanto à obtenção da nacionalidade por parte das crianças.

Ainda que o partido destaque que as gémeas “obtiveram a nacionalidade originária, por via da atribuição e, consequentemente, são consideradas portuguesas desde o seu nascimento”, alega também que houve “falta de transparência na gestão dos processos, nomeadamente no que diz respeito aos agendamentos” para obtenção de nacionalidade junto dos consulados, assim como a “celeridade com que eram processados”.

Aém disto, o Chega alerta para “fortes suspeitas de interferência externa, com as declarações de Nuno Rebelo de Sousa ao indicar no e-mail enviado ao pai, o Presidente da República, em 21 de outubro de 2019”, com o assunto “Caso gêmeas”, referindo o nome das crianças e rematando com “Urgente”.

Face a estes argumentos, o Chega também conclui que “Nuno Rebelo de Sousa pediu ajuda ao pai” com o objetivo de “salvar as gémeas luso-brasileiras, tendo ficado provado que este tomou diligências acrescidas face ao que costuma fazer com outros cidadãos que a ele recorrem”.

“O Presidente da República agiu de forma consciente e intencional, pois foi ele próprio que mandatou dois funcionários da Casa Civil (Maria João Ruela e Frutuoso de Melo) para verificarem a situação das gémeas”, insiste o Chega num ponto do relatório mais à frente, acrescentando também que “independentemente disso, é absolutamente evidente que o secretário de Estado da Saúde” à altura dos factos, António Lacerda Sales, “interferiu neste processo, tendo dado ordem expressa e inequívoca para a marcação da consulta” para as crianças em Santa Maria, “bem sabendo que o que se pretendia não era uma mera consulta, mas sim o tratamento com Zolgensma”.

Em jeito de remate para estes argumentos, o Chega sublinha que todas estas diligências aconteceram com a consciência de “que isso implicaria um enorme esforço financeiro para o Hospital de Santa Maria” e com “discriminação de outras crianças em circunstâncias similares”, para além de que, acusa o partido, a marcação da consulta inicial no hospital não obedeceu a “um critério clínico”, mas antes a “um critério político”.

Estas conclusões surgiram ao fim de 78 horas e 54 minutos de 37 audições públicas a depoentes - incluindo Lacerda Sales e Nuno Rebelo de Sousa -, explica o Chega no relatório, sendo que houve ainda sete declarações por escrito, incluindo a do primeiro-ministro da altura, António Costa.

Além disto, houve atrasos na entrega do relatório preliminar, o que impediu a sua votação mais cedo, e houve três interrupções, que prolongaram a CPI para além dos 120 dias inicialmente previstos.

Já Marcelo Rebelo de Sousa argumentou, por escrito, que “o Presidente da República apenas responde politicamente perante o povo que o elegeu, e, nos termos do seu artigo 130.º, perante o Supremo Tribunal de Justiça”.

Porém, Marcelo deixou margem para se pronunciar mais sobre o tema, quando as conclusões forem tiradas.

“No caso vertente, sendo público que um número elevado de cidadãos irá ser ouvido, o Presidente da República, que já se pronunciou publicamente sobre a temática em apreço, reserva a sua decisão quanto a nova pronúncia, para momento posterior a todos os testemunhos, por forma a ponderar se existe matéria que o justifique”, revela o relatório do Chega, aludindo à resposta de Marcelo.

Conclusões dissonantes

“Agora, a questão é relativamente às propostas do PSD e do CDS e do PS”, explica João Almeida, antevendo o debate de hoje , que culminará, de certeza, com um relatório final, ainda que não seja o do Chega. Portanto, os partidos terão de se desdobrar para votar “as conclusões e as recomendações que sejam maioritárias e, de preferência, até consensuais para que os trabalhos da Comissão se concluam”, remata o deputado centrista.

No entanto, ainda há a possibilidade de o relatório final vir a ser debatido no plenário de amanhã, ainda que a aprovação seja exclusiva da CPI. Caso chegue ao hemiciclo, no último plenário desta legislatura, o relatório final pode gerar recomendações ao Governo, que poderá ter ou não tempo para as aplicar.

De qualquer forma, o relatório conjunto do PSD e do CDS começa por concluir, contrariando o Chega, que, “entre o pedido de agendamento da nacionalidade e a efetiva atribuição decorreram mais de cinco meses, pelo que não terá havido qualquer privilégio”.

De igual modo, centristas e sociais-democratas defendem que “existiu uma tentativa de intervenção externa com origem no filho do Presidente da República, mas não se confirmou qualquer intervenção especial da Casa Civil da Presidência da República, para além do normal reencaminhamento para avaliação do Governo”.

No entanto, em relação a Lacerda Sales, PSD e CDS sublinham que o antigo secretário de Estado da Saúde “faltou, mais do que uma vez, à verdade”, nomeadamente no que diz respeito à facilitação do acesso à primeira consulta em Santa Maria.

Para além disto, este partidos afirmam, com base no que foi apurado na CPI, que Santa Maria ficou “numa situação financeira complexa” depois dos tratamentos às duas crianças.

Por parte do PS, não há um relatório alternativo, mas a sugestão de “que os factos sejam as atas e o acervo documental da Comissão, que é parte do apuramento dos factos”, diz João Paulo Correia, firmando também aqui o chumbo do relatório do Chega, sustenta, evocando dois argumentos.

“Quando um deputado recebe a confiança da comissão para fazer uma proposta de relatório deve ser dela e não do partido”, explica o deputado socialista sobre Cristina Rodrigues, acrescentando que a forma como a deputada do Chega “apresentou o relatório” revela que é um documento do partido, o que, destaca, é “motivo para votar contra tudo. E, depois, tem muitas conclusões que não têm qualquer adesão aos factos e com base nisso também votaremos contra”.

Nome da comissão

O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa ordenou, a 9 de janeiro de 2025, na sequência de uma intimação por parte de Daniela Martins, a mãe das gémeas, que a CPI deixasse a designação As Gémeas Tratadas com Medicamento Zolgensma. Por este motivo, passou a chamar-se Comissão Parlamentar de Inquérito para Verificação da Legalidade e da Conduta dos Responsáveis Políticos Alegadamente Envolvidos na Prestação de Cuidados de Saúde a duas Crianças (Gémeas) Tratadas Com o Medicamento Zolgensma.

Nacionalidade

O relatório do Chega aponta uma “falta de transparência na gestão dos processos” de nacionalidade, enquanto PSD e CDS defendem que “entre o pedido de agendamento da nacionalidade e a efetiva atribuição decorreram mais de 5 meses, pelo que não terá havido qualquer privilégio”. PS também defende que não havia lista de espera, pelo que as crianças não foram beneficiadas em detrimento de outras.

Envolvimento político

Todos os partidos são unânimes ao apontar o dedo a Nuno Rebelo de Sousa quanto à tentativa de interferência no processo, mas só o Chega atribui responsabilidades ao Presidente da República. Lacerda Sales também é apontado como tendo interferido no processo de marcação da primeira consulta, mas só pelo Chega, PSD e CDS.

Saúde

PS defende que o preço do Zolgensma “ficou por apurar”, ainda que o partido conclua que ficou “próximo de 1,3 milhões de euros, cada”. Os socialistas defendem ainda que o relatório da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde “é incompleto”, por ter deixado de fora a “atuação da Casa Civil do Presidente da República, bem como a atuação dos médicos do Hospital D. Estefânia”.

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