Política
04 dezembro 2021 às 09h14

MP dá como provado que vítima estava a atravessar autoestrada

Acusação por homicídio negligente deixa cair imputação de "condução perigosa", por MP considerar não ser previsível presença de peões na autoestrada. Mas não investiga o porquê dessa presença. Perito diz ao DN que as lesões descritas na vítima não parecem compatíveis com a descrição do acidente feita pelo MP.

Fernanda Câncio

Ao quilómetro 77,6 da AE6, pelas 13H08, Nuno Miguel Pausinho dos Santos encontrava-se no separador central e iniciou a travessia da faixa de rodagem em direção à berma do lado direito no sentido Caia/Marateca."

Para o Ministério Público, e segundo a acusação de homicídio por negligência, a que o DN teve acesso, não há dúvida de que Nuno Santos, o trabalhador que a 18 de junho foi colhido mortalmente na A6 pela viatura oficial do então ministro da Administração Interna Eduardo Cabrita, estava a atravessar a autoestrada quando foi atropelado. Esse facto leva a que, apesar de imputar ao motorista daquela viatura, Marco Pontes, homicídio negligente por circular acima do limite de velocidade e na faixa da esquerda, não o acuse pelo crime de condução perigosa. Isto porque, diz o MP, "não existe hipótese de condenação."

"Resulta à saciedade que Marco Pontes conduziu a viatura (...) na faixa da esquerda da AE6 e que o fez em excesso de velocidade (cerca de 163 Km/h), o que significa que violou as regras de circulação rodoviária (...)", lê-se no despacho assinado pela procuradora Catarina Silva. "Contudo, o preenchimento desses pressupostos não é suficiente, por si só, para concluir que estamos na perante a prática do crime de condução perigosa. (...) O que está em causa, para a verificação do crime de condução perigosa (...), não é simplesmente a violação de regras de trânsito, nem que desta violação resulte um perigo concreto, mas da previsibilidade do perigo atentas as circunstâncias. (...) Entendemos que, no caso concreto, não é possível extrair, ainda que indiciariamente, a previsibilidade do perigo que deu origem ao acidente de viação, pela simples razão de ser do conhecimento geral a proibição de circular apeado nas autoestradas, pelo que nada poderia fazer prever a opção de Nuno Santos."

Porém o MP parece entrar em contradição quando afirma, na justificação da acusação de homicídio por negligência, que "o acidente de viação e as suas consequências ficaram a dever-se à circunstância de Marco Pontes conduzir com manifesta falta de cuidado e de respeito pelas obrigação legalmente impostas, não prevendo, como podia e devia, a possibilidade de embate da viatura por si conduzida em Nuno Santos." Afinal, podia e devia prever o perigo de embate da viatura num peão na autoestrada, ou não?

Apesar de considerar haver indícios suficientes de que Nuno Santos estava a atravessar a autoestrada no momento do embate; que os trabalhos, a cargo da empresa Arquijardim (subcontratada pela concessionária Brisa), a decorrer naquele dia na A6 estavam delimitados ao lado direito da via; e que era na berma do lado direito que estava estacionada uma carrinha a sinalizar esses mesmos trabalhos - carrinha que, segundo o despacho, "se encontrava a cerca de 100/150 metros do local de realização dos trabalhos", ostentando, "no taipal de trás", "um sinal de trabalhos na estrada" e "como complemento dispunha do sinal de obrigação de contornar obstáculos à esquerda e duas luzes rotativas - o MP não parece ter considerado relevante para a "descoberta da verdade material" investigar o motivo pelo qual o malogrado trabalhador estava no local do atropelamento.

Uma vez que é expressamente proibido pelo Código da Estrada - e, como fonte da Brisa assegurou ao DN, pelas regras de segurança concessionária - a peões atravessarem a autoestrada, seria expectável que a acusação se debruçasse sobre esse facto, até porque este pode implicar aquilo a que em Direito se dá o nome de "concurso de responsabilidades", ou seja, uma divisão de responsabilidade, por violação dos deveres de cuidado por vários intervenientes, entre o motorista e a vítima do atropelamento, ou de quem possa mais ter responsabilidade nessa conduta.

Acresce que para um perito em segurança rodoviária ouvido pelo DN as lesões sofridas por Nuno Santos e referidas na acusação não parecem compatíveis com a descrição que esta faz do acidente e que resulta do relato das únicas testemunhas citadas - os passageiros da viatura oficial do MAI - e do próprio arguido.

Isto porque, diz este perito, "analisando cuidadosamente as lesões, estas não indiciam contacto com as pernas", como seria expectável no caso de alguém que é colhido na posição erecta. Seriam pois de esperar "fraturas ao nível do fémur e da tíbia, que não existem na descrição da acusação." O que está descrito, prossegue, são "grandes fraturas ao nível da bacia, o que indicia que a vítima poderia estar agachada na via, por exemplo a apanhar algum objeto."

Este especialista, que pediu para não ser identificado, também se intriga com o cálculo da velocidade a que seguia o BMW do MAI.

A acusação não esclarece como foi calculada, assumindo tratar-se de uma estimativa: "Na perícia efetuada pelos senhores peritos da Universidade do Minho, destinada a apurar a velocidade instantânea e a dinâmica do acidente, foi possível aferir que a velocidade instantânea se situou entre os 155 km/h e os 171km/h, apresentando-se a velocidade de 163 km/h como a mais provável."

O perito ouvido pelo DN estranha: "Se há rastos de travagem, é possível calcular a velocidade. Mas se, como já afirmou publicamente o advogado da família da vítima, não havia rastos de travagem, a velocidade ou foi lida da centralina do carro e nesse caso a gama de velocidade na acusação não faria sentido, ou então não se compreende como se obteve essa velocidade. Pode ter sido obtida considerando a distância de visibilidade do condutor, mas nesse caso o seu cálculo seria meramente especulativo. Faltam dados do processo que poderiam perceber melhor como foi determinada a velocidade."